Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59644/21.9YIPRT.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
CREDOR
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário:
- No âmbito do PER, o incumprimento do dever previsto no nº 1 do artigo 17-D não exime os credores não notificados da sujeição ao conteúdo do plano de recuperação.

- A comunicação do devedor constitui um plus, relativamente à notificação e publicidade do despacho feitas nos termos dos artigos 37º e 38º do CIRE, mas não as substitui.

- A violação do dever previsto no nº 1 do artigo 17º-D não constitui violação processual geradora de nulidade processual ou do efeito do plano de recuperação sobre todos os credores, participantes ou não, constituindo tão-somente, matéria a ser discutida em ação de responsabilidade civil nos termos do nº 11 do mesmo artigo 17º-D.

(Sumário pela Relatora)

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

A presente ação surgiu duma Injunção, da iniciativa da Autora Datacomp-Sistemas de Informática, S.A., com sede na Rua Sanches Coelho, n.º 3-7.º Esq.º, Lisboa, contra a Ré U-Cargest, Sgps S.A., com sede na Rua do Comércio, n.º 6, Beja.

Tendo a Autora pedido o pagamento pela Ré da quantia de € 164.441,10 (dívida principal, taxa de justiça e juros) acrescida de juros vincendos.

A Ré deduziu oposição, pugnando pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido, alegando que foi sujeita a um PER e, nesse âmbito foi aprovado um plano de revitalização que está em curso, que por lei vincula todos os credores, e que, no caso da A., face à natureza do seu crédito, prevê a redução da dívida a 10% do capital inicial, com perdão de juros e comissões, a ser paga em 108 prestações.

Em saneador sentença o tribunal a quo sustentado nos fundamentos da oposição, proferiu decisão julgando a ação improcedente e absolvendo a Ré do pedido.

Inconformada com a decisão veio a Autora recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:

A) Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 17.ºD do CIRE, quando apresente um processo especial de revitalização, incumbe ao devedor, na sequência da notificação do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, comunicar a todos os seus credores por carta registada, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando os credores a participar nas mesmas e informando que a documentação a que refere no artigo 24.º, n.º 1, do CIRE se encontra na secretaria do Tribunal para consulta;

B) É aceite pela Recorrida na sua contestação o facto de não ter comunicado à Recorrente, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 17.ºD do CIRE, de que tinha apresentado um processo especial de revitalização e a convidá-la a participar nas negociações;

C) A Recorrente não tomou conhecimento do processo especial de revitalização por que a Recorrida não lhe comunicou por carta registada, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-a a participar nas mesmas, ficando impedida de negociar, votar e impugnar a aprovação do plano;

D) ao contrário do que faz o Tribunal a quo, não se deve considerar que a publicação no portal Citius do despacho a que se refere o n.º 5 do artigo17.º-C do CIRE para reclamar créditos afasta o vício do não envio da comunicação nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 17.ºD do CIRE;

E) Não é exigível que a Recorrente (ou qualquer outra empresa ou particular) consulte diariamente o Portal Citius na busca de publicações que lhe diga respeito ou interesse;

F) A publicação no portal Citius do despacho a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C do CIRE para reclamar créditos deve ser conciliada com a comunicação por carta registada a efetuar nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 17.ºD do CIRE;

G) Acresce que o Plano Especial de Revitalização não permite a reclamação de créditos em data posterior, ao contrário do que acontece no processo de insolvência;

H) O decurso do prazo de 20 dias para reclamar créditos no processo especial de revitalização preclude o direito de o credor participar nas negociações e votação;

I) Uma interpretação do artigo 17º-E, nº 1, do CIRE que considere ser aplicável tal preceito aos credores que não participaram nas negociações em consequência do incumprimento pelo devedor da comunicação prevista no n.º 1 do artigo 17.ºD do CIRE, configura uma situação de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais - cf. art. 20° da Constituição da República Portuguesa;

J) Como decorre dos factos provados, a devedor principal Motorconta, Lda cumpriu até 09-01-2020, data posterior à apresentação e aprovação do plano no processo especial de revitalização;

K) O crédito sobre a Recorrida, resultante de uma fiança prestada, só se tornou efetivo em data posterior à apresentação e aprovação do processo especial de revitalização em causa, com o incumprimento da obrigação do devedor principal Motorconta, Lda, pelo que o plano aprovado nunca podia (incluir) esse crédito.

Pede assim que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que condene a Recorrida integralmente no pedido.

Em contra-alegações a Ré respondeu:

A) O plano aprovado no processo especial de revitalização apresentado pela Recorrida é oponível à Recorrente;

B) Em 16.04.2019 a recorrida apresentou um processo especial de revitalização que correu termos sob o n.º 8288/19.7T8LSB do Juízo do Comércio de Lisboa, Juiz 4, no qual foi aprovado um plano de recuperação homologado por sentença transitada em julgado em 29-11-2019;

C) O Crédito da recorrente é anterior à apresentação do processo especial de revitalização, pelo que é abrangido pelo mesmo;

D) A vinculação da sentença de homologação não distingue entre credores que tenham participado nas negociações ou que não tenham participado, vinculando, expressamente, todos eles;

E) O processo especial de revitalização (PER) é publicitado por meio pela lei considerado idóneo (portal citius) com concessão de prazos para reclamação de créditos e impugnação da lista provisória dos mesmos;

F) Na data da apresentação do plano especial de revitalização (PER), a devedora originária estava a cumprir o acordo de pagamento celebrado com a recorrente, pelo que esta não reclamou o seu potencial crédito à recorrida;

G) Ao contrário do que alega a recorrente, o não envio da carta a um credor não é gerador de qualquer nulidade processual ou ineficácia da decisão que homologou o plano;

H) A carta em causa não é um ato relevante e imprescindível para o exercício dos direitos dos credores;

I) Não se encontra prevista em qualquer norma legal a ineficácia do plano relativamente a um concreto credor;

J) No CIRE não consta qualquer norma que determine a ineficácia do plano que seja aprovado e homologado.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão deve o recurso apresentado ser considerado improcedente


II


Com base na prova documental e no acordo das partes o tribunal a quo deu como provado o elenco de factos que segue, a que acrescentámos o facto 13, resultante de acordo das partes:

1) A Motorconta-Serviços de Gestão e Contabilidade, Lda. integrava o grupo económico que tinha como sociedade dominante a ré;

2) A ré detinha a 100% o capital social da Motorconta;

3) A pedido da Motorconta, a autora efetuou transferências bancárias no montante de, pelo menos, 210.000,00€, destinadas a apoiar a tesouraria da ré;

4) Por escrito de 22-06-2017, a autora, a ré e a Motorconta assinaram um documento intitulado "Acordo de Reconhecimento de Dívida e de Pagamento em Prestações", no qual ficou acordado o seguinte:

- A Motorconta confessava-se devedora à requerente pela quantia total de 210.000,00€;

- A Motorconta obrigava-se a pagar à requerente a referida quantia em 54 prestações mensais, sucessivas, a cada dia 9, de 1000,00€ entre 09-12-2017 e 09-05-2018; de 2500,00€ entre 09-06-2018 e 09-05-2019; 3000,00€ entre 09-06-2019 e 09-05-2020; 3500,00€ entre 09-06-2020 e 09-05-2021 e 8000,00€ entre 09-06-2021 e 09-05-2022;

- No caso de incumprimento de qualquer uma das prestações, venciam-se juros à taxa de Euribor a 12 meses, acrescida da taxa de spread de 4,25%;

- A ré constituiu-se fiadora e principal pagadora da Motorconta, com renúncia expressa ao benefício da excussão prévia.

5) A Mortorconta pagou até 09-01-2020;

6) Apesar de interpelada para pagar as prestações ainda em dívida, não o fez.

7) Pelo que, em 27-07-2020, a autora comunicou à ré e à Motorconta a perda do benefício do prazo e imediato vencimento de todas as prestações;

8) Em 16-04-2019 a ré apresentou um Processo Especial de Revitalização, que correu termos sob o n.º 8288/19.7T8LSB, do Juízo do Comércio de Lisboa, Juiz 4;

9) No âmbito desse processo foi aprovado um plano de revitalização homologado por sentença transitada em julgado em 29-11-2019;

10) O plano prevê além do mais o seguinte:

F- Créditos condicionais nos termos do art. 50º nº 1 do CIRE (crédito, cuja própria génese, isto é, o nascimento ou a constituição na e para a ordem jurídica se encontra na contingência de futura verificação de um facto que não se sabe se irá ocorrer)

(…)

Créditos comuns que não beneficiam de qualquer garantia sobre ativos da devedora.

A revitalizanda prevê que a generalidade dos créditos comuns não será exigida, pois os mesmos são originados por créditos e responsabilidades nas sociedades suas participadas, e que à data se encontrem incumprimento.

- Caso se venha a verificar o seu nascimento, constituição ou incumprimento, será a revitalizanda exclusivamente responsável pelo seu pagamento, nas seguintes condições: pagamento de 10% do capital em dívida efetuado nos seguintes termos:

* Pagamento em 108 prestações mensais e sucessivas, após um período de carência de 36 meses de capital;

* Os pagamentos anuais de capital são os que abaixo se apresentam em percentagem:-Ano 4 ao Ano 11 – 1,1215%/ano

- Ano 12 – 91,0280%/ano

* Juros calculados à taxa fixa de 0,5%;

* Capitalização dos juros dos primeiros 36 meses;

* Redução de 90% do capital em dívida;

* Os montantes vencidos relativos a juros moratórios, juros de mora, a despesas e a qualquer tipo de comissões não serão pagos;

* Isenção de Comissões relativas à operação de reestruturação financeira e a gestão de contas, na revitalizada derivado da assunção dos créditos supra descritos.

11) O crédito da autora está abrangido na referida categoria de créditos;

12) A autora não participou nas negociações que levaram à aprovação do plano de revitalização.

13) A Ré não comunicou à Autora de que tinha apresentado um processo especial de revitalização convidando-a a participar nas negociações.


III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (arts. 635º, 3 e 639, 1 e 2 CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.608º in fine), é a seguinte a questão a decidir:

O acordo obtido no processo especial de revitalização não pode afetar o direito de crédito da Autora relativamente à qual não foi cumprido o dever de comunicação previsto no artº. 17º-D, nº. 1 do CIRE ?

Vejamos.

O pedido da A. de condenação da Ré no pagamento da quantia de € 164.441,10 acrescida de juros de mora vincendos, advém do facto de a Ré se ter constituído fiadora da dívida de que a autora é credora sobre a sociedade Mortorconta-Serviços de Gestão e Contabilidade, Lda (devedora principal)

A Ré constitui-se fiadora em 22-06-2017.

A devedora principal, que nestes autos não é parte, pagou até 09-01-2020.

Em 27-07-2020 a A. comunicou à devedora principal a perda do benefício do prazo e o vencimento de todas as prestações.

Em 19-04-2019 a Ré/fiadora apresentou um processo especial de revitalização. O plano de revitalização foi homologado por sentença transitada em julgado em 29-11-2019.

Em tal data a devedora principal mantinha o cumprimento da dívida perante a Autora.

Dispõe o DL n.º 53/2004, de 18 de Março (CIRE) na redação em vigor à data dos factos (DL n.º 84/2019, de 28/06)[1], nos seus artigos:

Artigo 17.º-A

Finalidade e natureza do processo especial de revitalização

1 - O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

2 - O processo referido no número anterior pode ser utilizado por qualquer empresa que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação e apresente declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.º.

Artigo 17.º-B

Noção de situação económica difícil

Para efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito.

Artigo 17.º-C

Requerimento e formalidades

3 - A empresa apresenta no tribunal competente para declarar a sua insolvência requerimento comunicando a manifestação de vontade referida no n.º 1, acompanhado dos seguintes elementos:

4 - Recebido o requerimento referido no número anterior, o juiz nomeia de imediato, por despacho, administrador judicial provisório, aplicando-se o disposto nos artigos 32.º a 34.º com as devidas adaptações.

Artigo 17.º-D

Tramitação subsequente

1 - Logo que seja notificada do despacho a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, a empresa comunica, de imediato e por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º e a proposta de plano se encontram patentes na secretaria do tribunal, para consulta.

2 - Qualquer credor dispõe de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos.

3 - A lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.

4 - Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.

5 - Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o administrador judicial provisório nomeado e a empresa, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius.

6 - Durante as negociações a empresa presta toda a informação pertinente aos seus credores e ao administrador judicial provisório que haja sido nomeado para que as mesmas se possam realizar de forma transparente e equitativa, devendo manter sempre atualizada e completa a informação facultada ao administrador judicial provisório e aos credores.

7 - Os credores que decidam participar nas negociações em curso declaram-no à empresa por carta registada, podendo fazê-lo durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, sendo tais declarações juntas ao processo.

11 - A empresa, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquela ser uma pessoa coletiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a ação intentada para apurar as aludidas responsabilidades.

Artigo 17.º-F

Conclusão das negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização da empresa

10 - A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.

Referindo a lei como requisito para a apresentação ao PER que a empresa se não encontre em insolvência atual, mas tão só em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente, é de concluir que a empresa pode não ter incorrido em incumprimento em relação a todos os credores ou parte deles, podendo até não estar ainda vencida alguma dívida em tal momento, mas a sua situação económica se ter tornado difícil ao ponto de antever a possibilidade de vir a não cumprir pontualmente as suas obrigações.

Assim, na comunicação a que alude o art. 17-D, 1 devem-se incluir todos os credores, ainda que os respetivos créditos se não mostrem ainda vencidos, podendo mesmo estarem a ser cumpridos, bastando que se esteja na iminência de um incumprimento generalizado se se não prevenir, de imediato, junto dos credores uma negociação revitalizante.

A Ré havia-se constituído fiadora e principal pagadora da Motorconta, aqui terceira, de uma dívida desta perante a Autora, com renúncia expressa ao benefício da excussão prévia.

Ora a relação debitória da Ré para com a Autora decorre dessa prestação de fiança.

A Ré quando se apresentou ao PER não fora ainda chamada a cumprir porquanto a principal devedora se mantinha em cumprimento, mas não podia ignorar, quando se apresentou ao PER, a sua situação de fiadora atual, eventual devedora no futuro, desde logo por força da acessoriedade legal da fiança e da renúncia ao benefício de excussão prévia, a que se vinculara anteriormente.

Sendo a Ré fiadora duma dívida à A., estava obrigada a proceder à comunicação prevista no art. 17º- D, nº1 do CIRE, relativamente à Autora, convidando-a a participar e informando-a da documentação e a proposta de plano apresentada.

Não o tendo feito, poderá a credora manter o seu crédito à margem do PER?

Sustenta a autora que sim, pois que, não tendo participado nas negociações do plano de revitalização, não se encontra abrangida pelo mesmo. O PER não lhe foi sequer comunicado nos termos do citado art. 17-D, nº1.

Não nos cabe apreciar se a A. poderá ainda no próprio PER fazer valer os seus direitos invocando uma violação não negligenciável das regras procedimentais, com eventual anulação da lista provisória de credores e dos atos processuais subsequentes. Tal questão só no âmbito dos autos do processo especial de recuperação, poderá ser suscitada e decidida.

O que nestes autos cumpre decidir é se a Autora pode valer-se dessa omissão fazendo valer o seu crédito contra a Ré, por inteiro.

No presente litígio não há controvérsia quanto à existência originária da dívida.

Os autos nasceram com um requerimento de injunção. A injunção é um procedimento que permite a um credor de uma dívida fazer uso de um documento com potencial para ser considerado título executivo, e recorrer a um processo judicial de execução para recuperar junto do devedor o montante em dívida.

Após a apresentação do requerimento de injunção pelo credor, o eventual devedor é notificado desse requerimento e, se não se opuser ao mesmo, é emitido o referido título executivo. Caso se oponha, o processo é remetido para um tribunal.

Foi o que aconteceu no presente caso, sendo que, na oposição a devedora não negou a existência da dívida, antes invocou a sua sujeição a um PER.

Assim, a existência do crédito da Autora e da correspondente dívida e fiança prestadas pela Ré não estão dependentes de um julgamento.

O próprio facto 11) dá como provado que “O crédito da autora está abrangido na referida categoria de créditos”, por referência ao plano aprovado.

Entendeu o tribunal a quo que o crédito da autora, sendo real, mostra-se indubitavelmente abrangido pelo plano aprovado, não podendo, por agora, exigir o seu pagamento.

No que assentimos.

A previsão do n.º 10[2] do art.º 17º-F do CIRE dispõe que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C (decisão que nomeia o administrador judicial provisório), e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.

Ao dispor que vincula os credores, mesmo os não reclamantes ou não participantes, não distingue nestes últimos, os que foram dos que não foram destinatários da comunicação a que alude o art. 17-D nº1 por parte da devedora ou, mesmo de notificação por parte do administrador judicial provisório, que eventualmente e face à contabilidade que lhe seja apresentada, deles se aperceba.

Onde o legislador não distingue não caberá ao intérprete distinguir. Credores afetados pelo plano de revitalização, serão assim todos e não apenas os indicados pelo devedor, ou incluídos pelo administrador judicial provisório em função da contabilidade apresentada, desde que constituídos anteriormente (ainda que sob condição, como no caso da fiança dependente do evento - incumprimento do afiançado) ou, com vencimento anterior à instauração do PER.

Embora o crédito se tivesse vencido em 27-07-2020, ou seja, em data ulterior à homologação do plano de revitalização ocorrida em 29-11-2019, não pode deixar de estar por ele abrangido, uma vez que foi constituído em 22-06-2017, ou seja, em momento anterior à homologação do plano.

Pelo que, deverá tal crédito ser considerado abrangido pelo plano de revitalização homologado.

Mas para além do argumento que advém da interpretação literal da norma, outros, sustentados numa interpretação sistemática, reforçam tal conclusão, subestimando o relevo dado a tal comunicação.

Permitindo concluir que a comunicação em falta não é condição de prosseguimento do PER.

Sendo obrigação da empresa devedora que se sujeita ao PER informar do início do processo e convidar todos os credores a participar nas negociações (artº 17º-D nº1), o prazo para apresentação das reclamações de créditos não se conta desde a receção daquela comunicação, mas sim da publicação no portal Citius do despacho judicial de nomeação do administrador judicial provisório.

Como referem, com grande clareza, Nuno Salazar Casanova / David Sequeira Dinis in PER - O Processo Especial de Revitalização, p. 45-49:

“Nem podia ser de outra forma, pois se fosse condição do prosseguimento do PER a receção de todos os credores de uma comunicação do devedor, estaria seguramente gorada a possibilidade de concluir o PER num curto espaço de tempo. Basta pensar nos casos em que os credores não consigam ser imediatamente notificados, desde logo pelo simples facto de o devedor não ter os seus endereços atualizados ou por não se encontrarem temporariamente na sua residência. A notificação efetiva dos credores, por vezes na ordem das centenas, seria um obstáculo quase intransponível a um processo que se pretende célere e expedito.

Dir-se-á, então, que o prosseguimento do PER depende da comunicação pelo devedor, mas já não de a mesma ser efetivamente recebida pelos credores. Mas isso seria uma solução bizarra, pois fazia depender o PER do envio de uma comunicação, sem que depois o legislador se preocupasse com a receção e efetivo conhecimento do conteúdo da declaração. Por outro lado, se o dever de comunicação previsto no nº 1 do artigo 17-D fosse verdadeiramente um iter processual imprescindível e causa de nulidade, teríamos de admitir a discussão nos autos sobre quem é que o devedor deveria sequer considerar como credor para efeitos de notificação. O que sucederia se o devedor não notificasse um credor por não lhe reconhecer essa qualidade, e este pretendesse demonstrar que era efetivamente credor e que o devedor não o poderia ignorar ? Por outro lado, teríamos de admitir também, nos próprios autos do PER, a discussão sobre se a comunicação foi remetida imediatamente, ou não, se foi para o endereço correto, se o devedor deveria conhecer o endereço correto, etc. A equiparação da obrigação de comunicação aos credores prevista no nº 1 a um vício insanável tornaria o PER, afinal, num processo bem mais pesado e formalista do que o próprio processo de insolvência.

O legislador claramente estabeleceu que a notificação e a publicação do PER são alcançadas pelos meios previstos nos artigos 37º e 38º e, em especial, no portal Citius. É certo que os credores podem não consultar o Diário da República, o Citius, as certidões da conservatória de registo comercial, ou outros locais onde o despacho judicial é obrigatoriamente publicado. Porém, esta é a única forma de assegurar o sucesso do PER, o conhecimento atempado dos credores e, inclusivamente, o conhecimento dos credores não determinados. É ainda consentâneo com o facto de a própria declaração de insolvência não ser também comunicada aos credores por carta registada (com exceção dos cinco maiores credores). Não faria sentido que a insolvência fosse dada a conhecer apenas nos termos dos artigos 37º e 38º, mas o PER- um processo necessariamente célere – o fosse por meio de cartas registadas remetidas a todos os credores.

(…)

O dever previsto no nº 1 do artigo 17-D não é, contudo, letra morta. Ele tem importantes consequências, desde logo a responsabilidade civil prevista no nº 11. Não é contudo, uma causa de nulidade do processo, nem exime os credores não participantes da sujeição ao conteúdo do plano de recuperação. Se assim não fosse, então o legislador teria certamente optado por estabelecer o prazo da reclamação de créditos em função da receção da comunicação do devedor, e não da publicação do despacho judicial no portal Citius. A comunicação do devedor é, portanto, um plus, relativamente a notificação e publicidade do despacho feitas nos termos dos artigos 37º e 38º, mas não as visa substituir.

Em face da equiparação da notificação e publicidade do PER à notificação e publicidade da declaração de insolvência (por via do nº 4 do artigo 17º-C) do nº 4 do artigo 9º e ainda do facto de a reclamação de créditos se contar desde a data da publicação no portal Citius do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, somos forçados a concluir que a violação do dever previsto no nº 1 do artigo 17º-D é uma matéria a ser discutida em ação de responsabilidade nos termos do nº 11, onde se deverão atender - entre outros – a critérios de culpabilidade, mas já não uma violação processual geradora de nulidade processual ou do efeito do plano de recuperação sobre todos os credores, participantes ou não.”

Na adesão a estes argumentos, concluímos como a sentença, que o acordo obtido e homologado no processo especial de revitalização afeta o direito de crédito da Autora, ainda que, quanto a ela não tenha sido cumprido o dever de comunicação previsto no artº. 17º-D, nº. 1 do CIRE.

Não podendo o credor não notificado fazer valer o seu direito de crédito à revelia do plano homologado, esse seu afastamento por parte da devedora que o ignorou poderá ser motivo de uma ação de responsabilidade civil contra esta, ou os seus administradores de direito ou de facto.

Prevendo o art. 17-D nº11 que: “A empresa, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquela ser uma pessoa coletiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a ação intentada para apurar as aludidas responsabilidades.

Nesse sentido o Ac., referido na sentença, do TRC de 06-06-2017, P.505/16.1T8FND.C1 (Carlos Moreira), em que além do mais se conclui que o PER vincula todos os credores do devedor e não apenas os constantes no plano.

No que improcede o recurso.


IV

Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida, quanto à questão de mérito concretamente decidida.

Custas pela apelante.


Évora 24 de março de 2022

Anabela Luna de Carvalho (relatora)

Maria Adelaide Domingos (com voto de vencida)

José António Penetra Lúcio


Voto vencida pelas razões que passo a enunciar.

Concordo com o decidido no que concerne à seguinte conclusão: «No âmbito do PER, o incumprimento do dever previsto no nº 1 do artigo 17-D não exime os credores não notificados da sujeição ao conteúdo do plano de recuperação.», não podendo a credora opor à devedora (fiadora) essa omissão para fazer valer o seu crédito, por inteiro, e à margem do PER.

Mas já não concordo com o decidido no segmento em que, julgando a apelação procedente, o acórdão confirma a sentença recorrida na parte em que absolveu a ré do pedido.

Como decorre do artigo 17.º-E, nº 1, do CIRE, a apresentação de proposta de plano de revitalização e nomeação de administrador provisório, obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívida contra a empresa, suspende as pendentes durante o tempo que perdurarem as negociações e extingue as que estejam em curso com idêntica finalidade, logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, exceto se o mesmo prever a sua continuação.

No caso, aquando da instauração da presente ação comum, com origem num processo de injunção, já se encontrava aprovado e homologado o plano de revitalização e o crédito peticionado nesta ação encontra-se abrangido pelo plano de revitalização como um crédito condicional, que se encontrava em cumprimento.

Assim sendo, por força do disposto no artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, a presente ação não poderia ter sido instaurada e, tendo-o sido, não pode prosseguir, extinguindo-se.

O que é juridicamente diverso de ser a ré absolvida do pedido.

Sendo que o pedido formulado na injunção transmutada em ação comum foi a condenação da ré a pagar à autora, a dívida de capital (€150.000,00) mais juros de mora e taxa de justiça, no total de €164.594,10.

Por conseguinte, em meu entender, previamente à prolação do acórdão, deveriam as partes ter sido notificadas para se pronunciarem sobre esta questão, ao abrigo do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, a fim de evitar decisões surpresa, decidindo-se, então, a confirmação da fundamentação da sentença recorrida quanto à questão da falta de notificação da credora para participar no PER, mas alterando-se a parte decisória quanto à absolvição do pedido, declarando-se, ao invés, a extinção da instância por impossibilidade da lide.

Évora, 24-03-2022

Maria Adelaide Domingos

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[1] 14ª versão.

[2] Nº 6 na redação original.