Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2837/22.0T8STB.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 12/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- Resulta consensualizado na jurisprudência que a competência dos tribunais em razão da matéria se afere da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais.
2- O critério para aferir da competência dos tribunais administrativos deve ser o da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio, devendo essa relação jurídica assumir a natureza administrativa e o litígio que lhe subjaz situar-se no âmbito da previsão do artigo 4.º do ETAF.
3- O legislador do novo ETAF (entrado em vigor em 01-01-2004) cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2837/22.0T8STB.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I


(…), veio intentar nos tribunais comuns (Juízo Central Cível - Juiz 3, Comarca de Setúbal) ação condenatória de indemnização por responsabilidade civil contra Centro Hospitalar de Setúbal, representado pelo seu conselho de administração composto pelos seguintes membros (…), (…), (…), (…) e (…), pedindo que os Réus sejam condenados solidariamente ao pagamento de uma indemnização no valor de € 80.000,00, acrescido do valor a apurar por danos morais, pelo tribunal.

Fundamenta o seu pedido, em suma, na violação do seu estatuto profissional por parte do Réu, pois que, deveria ter a categoria profissional de diretor de serviço, mas mantém a de assistente hospitalar, o que ocorre por motivos discriminatórios, nomeadamente pela via de processos disciplinares contra si instaurados, mas que vieram a ser arquivados.
Tendo ocorrido contra si um processo crime por abandono de funções, em razão de denúncia de dois doentes, o autor foi absolvido, sem que o Réu tivesse demonstrado a necessária colaboração com a justiça, uma vez que o julgamento teve um adiamento de outubro de 2018 para abril de 2019 e, só nessa altura o Réu entregou documentação pedida pela defesa.
Correspondendo o prejuízo do Autor a € 1.000,00 (mil euros) mensais, os quais contados desde janeiro de 2015, perfaz € 80.000,00 (oitenta mil euros).
A acrescer a este dano, sofreu danos morais decorrentes da situação vexatória em que o Autor se encontra, a apurar no final da ação.
Invoca, para o efeito, o disposto nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil por violação do direito do Autor ao conteúdo funcional descrito no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de Agosto (diploma que estabelece o regime da carreira especial médica, bem como os respetivos requisitos de habilitação profissional), aplicável por força do Decreto-lei n.º 73/90, de 6 de Março (diploma que reformulou o regime legal das carreiras médicas dos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde).


Contestou o Centro Hospitalar de Setúbal, o qual, suscitou a incompetência em razão da matéria do Juízo Cível para julgar o litígio, porquanto, o A. foi funcionário do Centro Hospitalar R. mediante contrato de trabalho em funções públicas regulado pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas – a Lei n.º 35/2014, de 26 de Junho, até à data da sua aposentação por limite de idade que ocorreu em 8/5/2022.
Com efeito, foi contratado em regime de contrato administrativo de provimento outorgado com o Centro de Saúde Mental de Setúbal e integrado no então Hospital Distrital de Setúbal por força do Decreto-Lei n.º 127/92, de 3 de Julho.
O regime laboral aplicável à função pública, conforme decorre do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 300/2002, de 11/12 e artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29/12 e que se mantém no artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 18/2007, de 10/12, continua a ser aplicável a todo o pessoal com relação jurídica de emprego público que transita para os hospitais EPE, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto.
Encontrando-se integrado na carreira especial médica regulada pelo Decreto-Lei n.º 177/2009, de 4 de Agosto, aplicável aos médicos cuja relação jurídica de emprego público seja constituída por contrato de trabalho em funções públicas.
Por outro lado, o Réu Centro Hospitalar de Setúbal EPE tem o estatuto de Entidade Pública Empresarial nos termos do artigo 1.º do Decreto Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, encontrando-se sujeito ao regime das Entidades Públicas Empresariais – Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, nos termos do artigo 15.º, n.º 1 e artigo 18.º, n.º 2, Decreto-Lei n.º 18/2017.
Sendo uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial, integrando a administração indireta do Estado, prosseguindo sob a sua tutela e com capital exclusivo deste, a tarefa de promoção da saúde publica, o vínculo de emprego público estabelecido com o Réu assume a natureza público administrativa.
A matéria referente à violação de contrato de emprego público e eventual responsabilidade daí decorrente, emerge de uma relação jurídica administrativa.
Consequentemente, porque as questões objeto dos autos se enquadram no direito público, emergindo de uma relação jurídica administrativa, a competência para a sua resolução judicial é da jurisdição administrativa;
Sendo o Juízo Cível incompetente em razão da matéria para julgar tal matéria, deverá o Réu ser absolvido da instância.

Designada audiência prévia, foi na mesma proferido despacho saneador que decidiu ser dos tribunais administrativos a competência material para apreciação da matéria em discussão, pelo que, dando-se por verificada a exceção da incompetência material do tribunal cível, absolveu-se o Réu da instância.


Inconformado com tal decisão, veio o Réu recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:
1ª - Não se conforma o Apelante com despacho saneador proferido pela Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juiz 3, que nos termos do disposto nos artigos 1.º e 4.º, n.º 4, alínea b), in fine, do ETAF, declarou a competência material para apreciação da matéria em causa, dos tribunais administrativos, e por conseguinte verificada a exceção de incompetência deste tribunal, determinando a absolvição do Réu da Instância.
2ª - Para aferir da competência material dos tribunais atende-se à relação jurídica controvertida nos termos em que o Autor a define na petição inicial.
3ª - Resulta dos factos alegados nas Petições (inicial e corrigida) que o Apelante se insurge contra os comportamentos dos indicados membros do Conselho de Administração, que, por força de uma relação pessoal conflituosa com o Apelante, atentaram contra o seu direito à honra, dignidade, bom nome, reputação e imagem, nas vertentes que descreve.
4ª - Com efeito, o n.º 1 do artigo 25.º da CRP proclama que a «integridade moral das pessoas é inviolável» e o n.º do artigo 70.º do Código Civil consagra a proteção dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, cuja violação em conjugação com o artigo 483.º do Código Civil, tratando-se de um ilícito de responsabilidade civil, acarreta o dever de indemnizar pelos danos, tanto patrimoniais como não patrimoniais, pela aplicação das regras do direito privado comum – cfr. artigos 70.º, 484.º e 483.º e seguintes do Código Civil.
5ª - São assim os tribunais comuns os competentes para julgar e apreciar a matéria em causa e os pedidos formulados pelo Apelante, pelo que, deve a exceção de incompetência do tribunal improceder.
6ª - Ao considerar existir incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais comuns absolvendo o réu da Instancia quanto à matéria em causa e o pedidos de indemnização formulados pelos danos causados violou o Tribunal os artigos 25.º, n.º 1, 211.º, n.º1, 212.º, n.º 3, todos da CRP; artigo 40.º da LOTJ, artigo 64.º do CPC, artigo 1.º, n.º 1, do ETAF e artigos 70.º e 483.º e seguintes do CC.
A final requer que seja revogada a decisão recorrida e se declare o Tribunal a quo materialmente competente para conhecer a causa, ordenando-se o prosseguimento da ação para sua apreciação.

Em contra-alegações, concluiu o Réu que:
a. O Recorrente instaurou contra o Recorrido uma ação de processo comum, nos termos da qual, expressamente, refere que “(…) vem intentar e fazer seguir a ação condenatória em indemnização por responsabilidade civil contra Centro Hospitalar de Setúbal representado pelo seu conselho de administração composto pelos seguintes membros (…), (…), (…), (…) e (…), nos termos e pelos fundamentos seguintes: (…)”
b. O Recorrente fundamenta o seu pedido numa alegada violação do seu estatuto profissional (cfr. entre outros, artigo 9.º e artigo 11.º da pi), não existindo dúvidas que a parte demandada é o Centro Hospitalar de Setúbal, que é uma entidade pública empresarial (E.P.E.) criada pelo Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, cujo artigo 14.º define o regime de pessoal dos hospitais E.P.E. no âmbito da saúde.
c. O Recorrente, até à data da sua aposentação por limite de idade que ocorreu em 8/5/2022, foi funcionário do Recorrido mediante contrato de trabalho em funções públicas regulado pela Lei Geral do Trabalho em Funções Publicas – Lei n.º 35/2014, de 26 de Junho.
d. Donde, nos termos do disposto nos artigos 1.º e 4.º, n.º 4, alínea b), in fine, do ETAF, a competência material para a apreciação da matéria em causa, é dos tribunais administrativos,
e. E, neste sentido, e bem, concluiu o douto Tribunal a quo, no Despacho Saneador de 11.10.2023 onde proferiu decisão de incompetência em razão da matéria, o que fez de forma devidamente fundamentada.
f. Não concordando com o referido Despacho Saneador, dele o Recorrente interpôs recurso, alegando a inexistência de incompetência material do doutro Tribunal Recorrido.
g. Contudo, o Recorrente negligencia que se encontrava numa relação jurídica de emprego público, nomeadamente, carreira especial médica (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 177/2009), o que, nos termos em que articula a ação intentada, evidência que sustenta o seu petitório em litígios que emergem de vínculo de emprego público, como é o caso vínculo estabelecida entre Recorrente e Recorrido, sendo imperioso, portanto, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa e, consequentemente, pela incompetência do Juízo Cível em razão de matéria no presente litígio.
h. Acresce ainda referir que o Recorrente para além de não ter alegado e demonstrado (não obstante o convite ao aperfeiçoamento que lhe foi dirigido pelo douto Tribunal a quo) estarem preenchidos os requisitos necessários para responsabilizar extracontratualmente o Recorrido também não o fez quanto aos seus Administradores que, de resto, sempre se dirá não sujeitos a tal responsabilidade porquanto em causa estão, nos termos em que o Recorrente configura a ação, atos praticados no estrido e devido cumprimento do poder / dever diretivo e organizativo do Recorrido).
Pedindo que seja mantida a decisão recorrida.
II
Do objeto do recurso:
Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), cumpre apreciar e decidir se o tribunal materialmente competente para conhecer, da presente causa é o Tribunal Comum, ou antes, o Tribunal Administrativo.
III
De facto:
A factualidade a considerar resulta do relatório supra que no essencial reporta as peças processuais extraídas dos autos.
IV
De direito:
Dispõe o artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) que “Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.»
Esclarecendo o n.º 1 do artigo 38.º que « A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.», sendo igualmente irrelevantes, nos termos do n.º 2 «… as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.»
Do mesmo modo a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que regula o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estabelece no artigo 5.º, n.º 1, que «A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.»
Além do momento em que a ação se propõe importa atender igualmente à forma como a ação se propõe.
Resulta consensualizado na jurisprudência que a competência dos tribunais em razão da matéria se afere da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais.
Assim, entre outros, o seguinte acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (www.dgsi.pt):
- O Acórdão de 22-10-2015, Proc. n.º 678/11.0TBABT.E1.S1, do qual consta «o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da ação, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor».

Importará, assim, apreciar como o Autor estruturou a ação para definir se são os tribunais comuns (como defende o A./apelante) os competentes, em razão da matéria, para conhecer e julgar da presente causa, ou pelo contrário, os tribunais da jurisdição administrativa (como defendeu o apelado e o tribunal a quo).

Referimos já que, na nossa ordem interna, a jurisdição ou competência dos tribunais judiciais reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território.
Tal repartição é regulada pela Constituição da República Portuguesa, pelas leis de organização judiciária e, pelas normas do Código de Processo Civil (artigos 37.º, n.º 1, da LOSJ, e 60.º do CPC).
Nos termos dos artigos 211.º, n.º 1, da CRP Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais»), 64.º do CPC («São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional») e 40.º, n.º 1, da LOSJ Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional»), os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outra ordem jurisdicional, ou seja, têm uma competência residual.
Competindo aos « (…) tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais», nos termos do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Dispondo o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.»
Estatuindo o artigo 4.º do ETAF que:
“1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
(…)
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
(…)
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
(…)».

Resulta de tais preceitos que o critério para aferir da competência dos tribunais administrativos deve ser o da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio, devendo essa relação jurídica assumir a natureza administrativa e o litígio que lhe subjaz situar-se no âmbito da previsão do artigo 4.º do ETAF.

Assim se vem desenvolvendo a jurisprudência, dando-se como exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2017, Proc. n.º 1021/16.7T8GRD.C1 (dgsi), que sumaria:
«(…)
IV - A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (artigos 1.º, n.º 1, do ETAF e 212.º, n.º 3, da CRP).

V - Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, pois, a existência de uma relação jurídica administrativa.

VI - Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».

VII - Estatui o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2) sobre a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

VIII - É inquestionável que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada.

IX - Todos os litígios emergentes de atuação da Administração Pública que constituam pessoas coletivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos.

X - O novo regime alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de responsabilidade civil envolvente de pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

XI - Assim, compete aos tribunais da ordem administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objeto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público (artigo 4.º, n.º 1, alínea g), do ETAF).

XII – Mas igualmente lhe compete a apreciação da responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público (artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF).

(…)»

Sendo pacífico que o legislador do novo ETAF (entrado em vigor em 01-01-2004) cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada.
Pois que,
«O novo ETAF eliminou do seu articulado o que antes se dispunha no artigo 4.º, alínea f), que excluía da jurisdição administrativa as ações que tivessem por objeto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público, privilegiando um fator de incidência subjetiva, independentemente da natureza jurídica pública ou privada de situações de responsabilidade» – cfr. Ac. do STJ de 12-01-2010, Proc. n.º 1337/07.3TBABT.E1.S1 (dgsi).

A distinção entre gestão pública e gestão privada deixou assim de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.
Desse modo, todos os litígios emergentes de atuação da Administração Pública que constituam pessoas coletivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem à competência dos tribunais administrativos.

Reportando-nos à forma como o Autor estruturou a ação, dir-se-á o seguinte:
O Autor pretende a condenação do Centro Hospitalar de Setúbal a pagar-lhe determinada indemnização, por desrespeito do seu estatuto e respetivo conteúdo funcional, invocando a figura de assédio moral, o que sugere responsabilidade extracontratual.
Invocou ainda o Dec-Lei n.º 177/2009 (diploma que estabelece o regime da carreira especial médica, bem como os respetivos requisitos de habilitação profissional), cujo artigo 2.º estabelece “O presente decreto-lei aplica-se aos médicos integrados na carreira especial médica cuja relação jurídica de emprego público seja constituída por contrato de trabalho em funções públicas.”
O Autor juntou aos autos o contrato de 27-04-1990, pelo qual o Centro de Saúde (...) de Setúbal e o A. celebraram um “Contrato Administrativo de Provimento” ao abrigo do n.º 2 da alínea a) do artigo 15.º do DL n.º 427/89, de 7 de Dezembro, decreto-lei que regulamentava os princípios a que obedece a relação jurídica de emprego na Administração Pública.
Estatuindo o seu artigo 3.º, que “A relação jurídica de emprego na Administração Pública constitui-se por nomeação e contrato de pessoal”.
E o artigo 14.º, n.º 2, estabelecia que “o contrato administrativo de provimento confere ao particular outorgante a qualidade de agente administrativo”, por contraposição com o n.º 3, que estabelecia “o contrato de trabalho a termo certo não confere a qualidade de agente administrativo e rege-se pela lei geral sobre contratos de trabalho a termo certo, com as especialidades constantes do presente diploma”.
Definindo ainda o artigo 15.º, n.º 1, que o “contrato administrativo de provimento é o acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, a título transitório e com carácter de subordinação, o exercício de funções próprias do serviço público, com sujeição ao regime jurídico da função pública…”.
Por sua vez o Réu, Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E., é uma entidade pública empresarial (EPE) criada pelo Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, cujo artigo 14.º define o regime de pessoal dos hospitais EPE no âmbito da saúde, nos seguintes termos:
“Artigo 14.º
Regime de pessoal
1- Os trabalhadores dos hospitais E.P.E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e regulamentos internos.
2- Os hospitais E.P.E. devem prever anualmente uma dotação global de pessoal através dos respetivos orçamentos, considerando os planos de atividade.
3- Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 15.º, os hospitais E.P.E. não podem celebrar contratos de trabalho para além da dotação referida no número anterior.
4- Os processos de recrutamento devem assentar na adequação dos profissionais às funções a desenvolver e assegurar os princípios da igualdade de oportunidade, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, exceto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada”.
Este dispositivo consagra, assim, como regra, para os trabalhadores dos hospitais E.P.E., o regime do contrato de trabalho de direito privado, estabelecendo, porém, no seu artigo 15.º, o regime de transição do pessoal com relação jurídica de emprego público para os novos hospitais E.P.E., nos seguintes termos:
1 – O pessoal com relação jurídica de emprego público que, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, esteja provido em lugares dos quadros das unidades de saúde abrangidas pelo artigo 1.º, bem como o respetivo pessoal com contrato administrativo de provimento, transita para os hospitais E.P.E. que lhe sucedem, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico, sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro.
(…)
3 – Mantém-se válidos os concursos de pessoal pendentes e os estágios e cursos de especialização em curso à data da entrada em vigor do presente decreto-lei.
4 – O pessoal a que se refere o presente artigo pode optar a todo o tempo pelo regime do contrato de trabalho nos termos dos artigos seguintes.
Este disposição manteve-se no artigo 29.º do DL n.º 18/2017, de 10 de Fevereiro.
Como bem se assinalou na decisão recorrida, o A., que se encontrava vinculado à Ré por uma relação jurídica de emprego público, como resulta do preceito legal que o próprio invocou, mantém integralmente o respetivo estatuto jurídico uma vez vinculado ao novo hospital E.P.E., pois que, embora tivesse a possibilidade de optar pelo regime do contrato de trabalho de direito privado, tal se mostra irrelevante, uma vez que o Autor não invocou tal opção.
Paralelamente, dispõe o artigo 4.º, n.º 4, do ETAF, que: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: (…). – b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público…”.

Considerando que a competência se fixa no momento em que ação se propõe, independentemente das modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente; considerando que competência dos tribunais em razão da matéria se afere ou determina em função da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais; considerando que o R. é indiscutivelmente uma pessoa coletiva de direito público, diremos que, nos termos do disposto nos artigos 1.º e 4.º, n.º 4, alínea b), in fine, do ETAF, a competência material para a apreciação do litígio em causa, é dos tribunais administrativos, verificando-se a exceção da incompetência material do tribunal comum.

O que implica a absolvição do Réu da instância, nos termos dos artigos 99.º, 76.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil, como bem decidiu o tribunal a quo.

Sumário: (…)


V

Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Évora, 18 de dezembro de 2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Vítor Sequinho dos Santos (1º Adjunto)

Mário João Canelas Brás (2º Adjunto)