Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1213/13.0TBFAR-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PEDIDO INFUNDADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 03/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL JUDICIAL DE FARO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I. Em processo de insolvência, quando o pedido seja tido por infundado, tem aplicação o regime sancionatório especial previsto no artigo 22.º do CIRE – menos lato, porque abrange só o dolo – e não também o regime sancionatório geral previsto para a litigância de má-fé no artigo 542.º do actual CPC – mais lato, por abranger tanto o dolo como a negligência grosseira.
II. E isso porque a ideia foi prever um regime especial que não inibisse o credor ou o próprio devedor de requerer ou se apresentar à insolvência, sem o receio de vir a ser rudemente sancionado no caso de o Tribunal não deferir a pretensão e não declarar a requerida insolvência.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes nesta Relação:

A Apelante “C..., S.A.”, com sede …, nestes autos de insolvência, a correrem termos contra a sociedade “E..., Lda.”, com sede …, e por si instaurados no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Faro – e onde a Requerida veio a ser absolvida do pedido de declaração da sua insolvência e a Requerente condenada como litigante de má-fé, na multa de três UC, por douta sentença de 14 de Novembro de 2013 (ora a fls. 97 a 104 dos autos), com o fundamento aí aduzido, na parte que interessa, a fls. 104, de que, efectivamente, “A conduta da Requerente é gravemente negligente e integra, assim, o circunstancialismo previsto no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) e d), do Código de Processo Civil, tendo, por isso, a mesma, litigado de má-fé, devendo ser condenada em multa que deverá fixar-se em três unidades de conta” –, vem essa Apelante, dizíamos, interpor recurso de tal sentença, intentando a sua revogação parcial, e que não seja condenada como litigante de má-fé, alegando, para tanto e em síntese, que “na prática, a alegação de quem requer a insolvência de alguém tem, na grande maioria das vezes, que se fundar em factos de que o requerente não pode ter absoluto conhecimento ou estar absolutamente certo, porquanto não se tratam nunca de factos pessoais deste, mas antes de factos relacionados com a vida financeira da empresa requerida, de domínio não público, cujo acesso por terceiros é vedado pelas normas legais vigentes”. Pelo que “assim, não poderia a recorrente ser condenada em litigância de má-fé, como foi”, aduz – “e tendo o Tribunal concluído pela negligência grosseira da recorrente, não poderia ser igualmente a recorrente sancionada por via do artigo 22.º do CIRE, como não foi”, remata. Dessarte, não sendo aqui aplicável o regime geral do artigo 542.º do Código de Processo Civil, antes o regime especial do artigo 22.º do CIRE, deverá agora dar-se provimento ao recurso, revogar-se a decisão impugnada, e “substituindo-a por outra que indefira o pedido de condenação da recorrida em litigância de má-fé formulado pela requerida nos autos recorridos”.
A Apelada “E..., Lda.” vem apresentar as suas contra-alegações (a fls. 107 a 112 dos autos), para dizer, também em síntese, que nem sequer deve ser admitido o recurso interposto, pois que “sobre a aplicabilidade do instituto da má-fé aos presentes autos, a recorrente teve a oportunidade de se pronunciar, admitiu tacitamente a sua concordância com a aplicabilidade de tal instituto aos presentes autos, conforme o disposto no artigo 632.º, n.os 2 e 3, do CPC”. No mais, deve manter-se a condenação proferida no despacho recorrido, porquanto a requerente pediu a insolvência da requerida na base do ouvir dizer. “Existe assim sem sombra de dúvida negligência grave que indicia uso indevido dos meios processuais (para além da indemnização devida ao requerente que deverá ser atribuída em sede própria) que implicam a condenação da requerente em litigância de má-fé”, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso.
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A) – Vêm dados por provados os seguintes factos:

1) A ora Requerida é uma sociedade comercial que tem por objecto social actividades de ginásio, de gestão de instalações desportivas, de venda a retalho de material desportivo e de exploração de estabelecimentos de restauração e similares.
2) A ora Requerente tem como sócios e gerentes … .
3) A ora Requerente dedica-se à actividade de construção civil e venda de materiais de construção.
4) No desenvolvimento do seu respectivo objecto social a ora Requerida promoveu a instalação de um estabelecimento comercial de Health Club e de Ginásio, sito na Rua … .
5) No decorrer do ano de 2010, a Requerente forneceu à Requerida, para afectação ao estabelecimento comercial desta, diversos materiais de construção civil, melhor descritos nas facturas n.º 61/2010, com vencimento em 3/11/2010, no valor de € 15.000,00 (quinze mil euros), e n.º 71/2010, esta com vencimento em 22/11/2010, no valor de € 3.538,06 (três mil, quinhentos e trinta e oito euros e seis cêntimos).
6) Em data não determinada, a Requerida submeteu ao IEFP candidatura de projecto de investimento na qual fez constar a referida factura n.º 61/2010, que lhe tinha sido passada pelo Requerente, para efeitos de reembolso do valor da mesma pelos fundos destinados a apoiar o projecto.
7) A ora Requerida entregou à ora Requerente, em 08/10/2010, e a título de pagamento daquela factura n.º 61/2010, o montante de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), correspondente a metade do valor da mesma, em 06/12/2010 o valor de € 3.000,00 (três mil euros) e em 22/02/2011 o valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
8) Apesar de interpelada por inúmeras vezes para cumprir, de uma forma integral ou parcelada, a ora Requerida transitou de uma posição de reiterada promessa de pagamento futuro para o mero silêncio.
9) E a ora Requerida não tem, contra si, quaisquer acções judiciais, quer declarativas, quer executivas, para pagamento de dívidas.
10) Os seus sócios-gerentes, desde a data da constituição até à presente data, trabalham diariamente no estabelecimento onde é exercida a actividade da Requerida, primeiro na Rua …, e, actualmente, na Rua … .
11) Todo o equipamento necessário à sua actividade de ginásio e ao desenvolvimento de actividades desportivas está no local onde exercem essa actividade e, inclusivamente, quando mudaram o estabelecimento do sítio da Rua … para a R. …, adquiriram mais equipamentos de ginástica, aumentando a disponibilidade para os utilizadores desses equipamentos.
12) A ora Requerida nada deve à Fazenda Nacional.
13) A ora Requerida tem a sua situação regularizada perante a Segurança Social.
14) E os seus trabalhadores … têm todos os seus vencimentos e subsídios em dia, e sempre pagos atempadamente.
15) A ora Requerida não tem rendas em atraso.
16) Dos relatórios do IES e do Balancete Analítico referente ao mês de Março de 2013, consta que não existe superioridade do passivo sobre o activo e que as contas da sociedade foram sempre prestadas nos termos legais (Quadro VII do IES).
17) A ora Requerida exerce normalmente a sua actividade, aumentando anualmente o número de utilizadores do seu ginásio, e tem mantido sempre desde que foi constituída, desde há três anos.
18) A ora Requerida é cliente da ‘Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Sotavento Algarvio’ e do ‘Banif’, não tendo quaisquer débitos vencidos ou em situação de incumprimento.

B) – E vêm dados por não provados os seguintes factos:

a) A ora Requerida pagou € 2.000,00 (dois mil euros) em numerário à ora Requerente, por conta da factura n.º 61/2010;
b) Os sócios gerentes da Requerida contestaram, junto da Requerente, os valores da factura n.º 71/2010 e verificaram que o material já estava incluído na factura n.º 61/2010;
c) Na factura n.º 61/2010 já estavam incluídas as obras de “construção das casas de banho, balneários, masculino e feminino, incluindo todos os pavimentos, revestimentos e tubagens de canalização de águas e esgotos …”, estando incluídos na construção das casas de banho as sanitas, os lavatórios, a base de duche, as válvulas, os cifões e outros acessórios de ligação.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber, desde logo, se o recurso é admissível, e se andou bem o Tribunal a quo ao condenar a Requerente da insolvência como litigante de má-fé, que o mesmo é dizer se tal instituto poderá ser aplicado autonomamente aos processos de insolvência ou se há neles um regime legal próprio. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso.
Vejamos, pois.
Em primeiro lugar, aceita-se o recurso – e, por isso, o estamos a apreciar – pese embora a Requerida da insolvência tenha vindo alegar que o mesmo não é, agora, admissível, por a Requerente não ter suscitado, antes, no processo, a problemática que ora fundamenta a sua discordância. Na tese defendida pela Apelada haveria uma aceitação da Apelante sobre a aplicação aos processos de insolvência do instituto da litigância de má-fé previsto no Código de Processo Civil, nos artigos 456.º do anterior e 542.º do actual – e, assim, uma espécie de preclusão do direito da parte de levantar ainda a questão.
Só que a confissão e a preclusão – a existirem – só podem, naturalmente, reportar-se aos factos, que não à aplicação de quaisquer normas ou institutos de natureza jurídica, pois que, na verdade, saber se se aplica esta ou aquela norma, este ou aquele regime previstos na lei, é matéria de direito que os Tribunais têm sempre liberdade de aplicar, não dependendo nem da alegação nem da aceitação das partes (vide o artigo 664.º, ab initio, do velho CPC: “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”).
Consequentemente, é indiferente que as partes entendam ser aplicável, ou não, num processo, um determinado instituto jurídico – o que nem condiciona, nem preclude, a posição a tomar pelo Tribunal. Este tem toda a liberdade de vir a aplicar o direito como bem entenda. Pelo que o facto da ora Apelante nada ter dito, no processo, sobre o pedido da sua condenação como litigante de má-fé, formulado pela agora Apelada, não tira nem põe às opções jurídicas que tem o Tribunal para solucionar a questão.

Em segundo lugar, aceita-se a posição defendida no recurso de que se não pode aplicar aqui o regime geral da litigância de má-fé, pois que há um regime especial para a matéria previsto no artigo 22.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado no Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril –, o qual, sob a epígrafe de “Dedução de pedido infundado”, estatui que “A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo”.
Pois que a temática da penalização do requerente pela dedução de pedido de insolvência que se vem a verificar ser infundado, consta precisamente desse mencionado – e aqui não aplicado – artigo 22.º do CIRE, que é, assim, o único regime (especial) aplicável à matéria, afastando aqueloutro regime (geral) da litigância de má-fé previsto no Código de Processo Civil.
Com efeito, se o legislador tivesse querido manter na insolvência aquele regime geral – mais lato porque abrange o dolo e a negligência grave – para que preveria este regime especial – menos lato porque abrange só o dolo? Este já estaria incluído naquele e tal norma do artigo 22.º seria completamente inútil.
Ao invés, a ideia foi prever um regime especial que não inibisse o credor ou o próprio devedor de requerer ou se apresentar à insolvência, sem o receio de vir a ser rudemente sancionado no caso de o Tribunal não deferir a pretensão e não declarar a peticionada situação de insolvência.
E é isso que consta precisamente do ponto 13 do Preâmbulo do diploma, ao referir: “Uma das causas de insucesso de muitos processos de recuperação ou de falência residiu no seu tardio início, seja porque o devedor não era suficientemente penalizado pela não atempada apresentação, seja porque os credores são negligentes no requerimento de providências de recuperação ou de declaração de falência, por falta dos convenientes estímulos”.
O favorecimento do desencadeamento do processo por parte dos credores traduziu-se assim na extensão e aperfeiçoamento do elenco de factos que podem servir de fundamento ao pedido de declaração da insolvência, na concessão ao credor requerente de um privilégio mobiliário geral e na limitação temporal de privilégios dos credores públicos.
E sendo certo que a responsabilização por dedução infundada de pedido de insolvência funciona como elemento dissuasor de requerimentos efectuados sem fundamento, não é menos verdade que a limitação dessa responsabilidade aos casos de dolo surge com o objectivo de tal não constituir travão a que os credores desencadeiem processos de insolvência, assim se obviando às antes habituais desvantagens do início tardio do processo falimentar.
Assim diagnosticado o problema, como é que a sua solução se coadunaria com um regime – como o pretendido pela 1ª instância e pela ora recorrida – que facilitasse uma penalização do requerente do pedido infundado logo com base na negligência? Sendo esta, afinal, a ratio do preceito, não faz qualquer sentido, nem o legislador o quis, manter a aplicação dos dois regimes ao mesmo tempo, sendo que o geral da litigância de má-fé (com o dolo e a negligência grosseira) inutilizaria por completo a razão de ser do especial (que sanciona só pelo dolo).
E como harmonizar um regime com o outro?
Por exemplo, no nosso caso, aplicava-se à recorrente uma multa e dava-se uma indemnização à recorrida com base no dolo ou na negligência grosseira, nos termos do artigo 456.º (ou 542.º) do CPC e, ao mesmo tempo, arbitrava-se-lhe outra indemnização com base no dolo, nos termos do artigo 22.º do CIRE?
Duas indemnizações com base na mesma actuação e prejuízos?
Não cremos que houvesse harmonia no sistema com um tal regime.

[Vide, no sentido por nós propugnado, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, da ‘Quid Juris’, 2009, na anotação 2 ao artigo 22.º, a páginas 144: “Preocupa-se a lei em regular especialmente as consequências da dedução infundada do pedido de insolvência, decerto consciente de que, por regra, tal procedimento é susceptível de gerar – e normalmente gerará – prejuízos. Mas afasta-se do regime regra e abranda as desvantagens que comummente decorreriam para o requerente”; e ainda a sua anotação 3: “A dedução em juízo de uma pretensão infundada constitui o impetrante em responsabilidade civil perante o requerido, desde que tenha agido com dolo ou culpa grave; rege, em regra, nesta matéria, o n.º 1 do artigo 456.º do Cód. Proc. Civil, cujo alcance é integrado pelo n.º 2 do mesmo preceito”, artigos estes respeitantes ao instituto da litigância de má fé; “ora, a grande especificidade deste artigo reside em excluir a responsabilidade em casos de mera culpa – mesmo que grave –, reservando-a para a situação em que tenha ocorrido dolo por parte do impulsionador da acção”; e a páginas 145: “abrangem-se, todavia, todas as modalidades que a doutrina geralmente identifica na figura genérica do dolo, a saber: dolo directo, necessário e eventual”.]
É verdade que a dedução de um pedido destes causa sempre prejuízos à entidade objecto da providência. Em maior ou menor medida, mas prejuízos.
Só que tem que se provar a dita actuação dolosa, e isso não aconteceu.
Com efeito, como se acaba por concluir na douta sentença impugnada, a Requerente terá actuado por forma meramente negligente na motivação que a levou a temer que a sociedade Requerida não estivesse em condições de lhe pagar as dívidas e a incentivou a entrar com o pedido de insolvência.
Afastou-se, assim, o dolo, em qualquer das suas vertentes.
Razões pelas quais, e salva melhor opinião, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá que revogar da ordem jurídica a douta sentença da 1ª instância na interpretação que fez da lei que sanciona a formulação indevida do pedido de insolvência, em consequência do que se tem que julgar procedente o recurso.
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Decidindo.
Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao recurso, e revogar a douta sentença recorrida na parte impugnada (condenação da Apelante em três UCs., por litigância de má-fé).
Custas pela Apelada.
Registe e notifique.
Évora, 13 de Março de 2014
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral