Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
127/16.7GCPTM.E1
Relator: MARTINS SIMÃO
Descritores: NULIDADE DA ACUSAÇÃO
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 10/10/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Apurando-se no decurso do inquérito novos factos integrantes de crime sobre os quais o arguido não foi confrontado, podendo sê-lo, a acusação subsequente, na qual são englobados tais factos, é parcialmente nula, por ter sido omitido ato legalmente obrigatório – o interrogatório do arguido sobre tal matéria.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
Por despacho de 28-04-2017, proferido nos autos de instrução com o número acima identificado, o Mmo. Juiz julgou procedente a nulidade invocada prevista no art. 120º nº1 al. d), e em consequência declarou a invalidade parcial do despacho de acusação, no que respeita aos factos nºs 4 a 8 da mesma e por isso, não pronunciou o arguido CF pela prática de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274º, nº 1 do C. Penal.

O Ministério Público interpôs recurso, tendo concluído a motivação do seguinte modo:

“1.A imposição do art. 272 n.º 1 do CPP, segundo a qual, no inquérito, quando o mesmo se processe contra pessoa determinada e seja possível a sua notificação é obrigatório interroga-la como arguida mais não é que o corolário lógico, por um lado, dos fins e do âmbito do inquérito e das finalidades do processo criminal e, por outro lado, das garantias de defesa que a Constituição da República proclama para o processo criminal (cfr. art. 32 n.º 1 da CRP).

2.Existindo detenção do arguido, a exigência constitucional ao nível das garantias de defesa é bem mais rigorosa por forma a garantir ao arguido detido uma defesa efectiva perante as razões que justificaram a detenção, impondo-se que lhe seja dado a conhecer os factos indiciadores da responsabilidade penal já existentes no inquérito.

3.Porém, podendo ser realizados no decurso do inquérito outros interrogatórios como se prevê no art. 144 do CPP, estes, por não se destinarem à defesa de privação de liberdade, não gozam do mesmo regime de garantias.

4.Assim, não é constitucionalmente obrigatório que o arguido seja interrogado sempre que um facto novo seja trazido ao conhecimento do inquérito, ou que tenha de existir um interrogatório complementar do arguido no encerramento do inquérito e em momento anterior à formulação da acusação, a fim de o arguido tomar conhecimento de todos os factos que irão constar da acusação (v. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, 2007, p. 733).

5.Após a sujeição do arguido a um 1.º interrogatório judicial, cessa a aplicabilidade do disposto no art. 272 n.º 1 do CPP, não sendo obrigatório a realização de interrogatórios complementares quanto a todos os factos que vierem posteriormente a ser carreados para o despacho de acusação e com os quais o arguido ainda não haja sido confrontado.

6.Nesta conformidade, entende-se que não se verifica a nulidade prevista no art. 120 n.º 2 al. d) do CPP, a não audição/interrogatório do arguido quanto aos factos constantes dos arts. 4.º a 8.º da acusação, consubstanciada na omissão de acto legalmente obrigatório (art. 270 n.º 1 do CPP).

A decisão recorrida fez uma errada interpretação das normas dos arts. 272 n.º 1, 120 n.º 2 al. d) e 144, todos do CPP e art. 32 da CRP.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a douta decisão ora recorrida e, em sua substituição ser proferida decisão que julgue improcedente a nulidade prevista no art. 120 n.º 2 al. d) do CPP e, consequentemente, o arguido ser pronunciado por todos os factos constantes da acusação.

O arguido respondeu ao recurso - as conclusões não constam dos autos por isso, não se transcrevem – pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido do recurso merecer provimento.

Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.

Procedeu-se ao exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II- Fundamentação

1.O teor do despacho recorrido, proferido em 28-04-2017, é o seguinte:

I. Relatório.

1. Na sequência do despacho de acusação proferido a fls. 951-960 onde se imputa a prática, em concurso real, de sete crimes de incêndio florestal, um deles agravado, ilícitos ps. e ps. pelos artigos 14.º, n.º 1, 202.º, al. a) e 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), todos do Código Penal, veio o arguido CF requerer a abertura de instrução pela forma que consta a fls. 1282-1312 onde sustenta a prolação de um despacho de não pronúncia.

2. Recebido o requerimento, a instrução foi declarada aberta, o arguido prestou declarações, indeferiram-se as outras diligências que sugeriu e realizou-se o debate instrutório.

II. Saneamento.
Inexistem quaisquer excepções, nulidades ou questões prévias que importe conhecer além das que foram invocadas no requerimento de abertura da instrução (doravante referido apenas por RAI), cujo contraditório se garantiu em sede de debate instrutório, e que, de seguida, se abordam.

1. Artigo 63.º do RAI, falta de confrontação do arguido com eventual prática de “sete crimes de incêndio florestal – um deles agravado”: violação do disposto nos artigos 118.º e 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal.

Apesar de o requerimento do arguido ser, digamos assim, exíguo na fundamentação, certo é que lhe assiste razão quando refere que não «foi confrontado com a eventual prática de sete crimes de incêndio florestal».

Compulsados os autos verifica-se que na indicação circunstanciada que serviu para a comunicação dos factos em sede 1.º interrogatório judicial não foi incluída a factualidade relativa ao incêndio ocorrido na zona de Odelouca, Silves, cf. fls. 142-145.

Nesse momento processual, comunicou-se ao arguido a factualidade ocorrida nos concelhos de Monchique e Portimão como, sem dúvida, se alcança também pela leitura dos artigos n.º s 1.º a 17.º do auto a fls. 154-156.

Comunicaram-se factos que eventualmente consubstanciariam seis crimes de incêndio, como, ademais, ao contrário do alega o arguido, sempre esteve em causa a forma agravada a que alude o artigo 274.º, n.º 1 e 2, al. a), do Código Penal.

Dito doutro jeito, a eventual novidade nunca se poderá colocar no âmbito do crime agravado pois era isso mesmo o que então se imputava, foi essa a razão dos motivos da detenção, cf. fls. 154, mas sim e apenas no âmbito dos factos, melhor, da sua extensão.

O cotejo entre os factos comunicados ao arguido, na sequência da sua apresentação a 1.º interrogatório judicial, e aqueles outros vertidos na acusação na acusação pública revela, de jeito seguro, que nesta se incluíram os factos ocorridos no concelho de Silves, cf. artigos 4.º a 8.º, o que além não sucedera.

Esses factos deram azo à abertura do inquérito 374/16.1GBSLV e não foram tidos em conta no momento da elaboração da indiciação circunstanciada de fls. 142-145.

Não é de estranhar, em conformidade, que no requerimento do Ministério Público (fls. 157) e no despacho jurisdicional (fls. 158-159) proferidos nessa diligência apenas se faça referência a seis incêndios, justamente, aos mesmos seis que também constam na acusação pública descritos nos seus artigos 9.º e seguintes.

No inquérito 374/16.1GBSLV foi determinada a apensação aos presentes autos, em consequência do reconhecimento de factor de conexão, por despacho da autoridade judiciária competente proferido em 28/09/2016, cf. fls. 193, portanto em momento posterior à realização do 1.º interrogatório judicial.

Nessa ocasião também não foi confrontado (e por isso muito menos interrogado) sobre os factos relativos ao incêndio que ocorreu no concelho de Silves, como se verifica da leitura do auto de fls. 717-718, onde, além das declarações do arguido sobre as suas condições, se infere, quanto aos factos, que o arguido faz referência de passagem, já no final das suas declarações, a «passear na serra de Monchique» e «aos locais que lhe foram mostrados em sede de 1.º interrogatório».

Em suma:
(i) O arguido não foi confrontado com a factualidade relativa ao incêndio ocorrido em Silves, exarada nos artigos 4.º a 8.º da narração da acusação pública, e por meio da qual aí se lhe imputa a prática de um crime de incêndio florestal p. no artigo 272.º, n.º 1, do Código Penal;

(ii) O arguido só foi interrogado quanto à factualidade relativa aos incêndios concretamente narrada nos artigos 9.º e s., que traduzem a prática de seis crimes de incêndio.

Quais as consequências a extrair?

Temos para nós que o interrogatório do arguido no âmbito do inquérito não constitui, passe a expressão, o cumprimento de uma «inócua formalidade».

Pelo contrário, constitui uma relevante garantia de defesa, com assento constitucional, e reflexos variados, como o sejam, por ex., a possibilidade de poder co-participar no decurso do inquérito oferecendo provas ou requerendo a realização de diligências pré-ordenadas à defesa dos seus interesses.

O interrogatório destina-se a conceder ao arguido o conhecimento dos factos (desde logo, os que estiveram na génese da sua constituição como tal) para sobre eles se poder pronunciar (exercer o seu direito de defesa).

Garantia de defesa, portanto, que trás consigo a consideração do arguido como verdadeiro sujeito processual e não apenas como objecto do processo, isto claro, no âmbito de um processo penal conformado pela matriz do Estado de Direito.

Obviamente, o exercício da garantia de defesa – no caso o interrogatório – não demandará a comunicação exaustiva (no sentido de esgotante) de todos os factos (que compõem o pedaço de vida que estiver em causa), isto é, por ex., se em causa estiver o crime de homicídio não será preciso confrontar o arguido com o número exacto de facadas, qual o grau de perfuração atingido por cada uma, que artérias ou órgãos concretos foram atingidos, qual a composição do metal que constituía a lâmina, se esta tinha forma recortada ou lisa, etc., etc.

Ponto é que se interrogue o arguido e se lhe diga, no mínimo, que em tal dia e hora esfaqueou o Sr. X, atingindo-o no peito, perfurando-o, causando-lhe a morte. E se lhe comuniquem os elementos do processo que sustentam tal imputação, se razões não existirem para vedar o conhecimento de um ou outro meio prova.

São estas as exigências também de um processo leal, equitativo e justo.

O que configurará, do nosso ponto de vista, a violação da garantia de defesa será a prolação de uma acusação de surpresa, isto é, quando podendo o arguido ser interrogado, como aqui sucedeu e poderia ter voltado a suceder, tal não aconteça, e surja na acusação um outro grupo de factos que impliquem, de per si, a extensão da factualidade que oportunamente conhecera.

Assim, ocorreria a violação da garantia de defesa, por ex., se o arguido fosse interrogado apenas pela prática de um crime de homicídio (do tal Sr. X) e, não obstante, fosse narrado na acusação, além desse crime, também factualidade para o crime de burla informática, e ambos em concurso real ali lhe fossem imputados.

Como ocorre igual violação da garantia de defesa quando aos factos comunicados ao arguido durante o inquérito, outros e distintos factos surgem apenas na acusação, ampliando-se a factualidade e o número das imputações, isto é, ao invés de serem seis crimes passam a ser sete crimes, autónomos e distintos uns dos outros (concurso real ou efectivo, artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal).

O exercício da garantia de defesa a concretizar, desde logo, no interrogatório durante o inquérito, carecerá, sob de se tornar em formalidade vazia de conteúdo e consequências, da comunicação e confronto dos factos nucleares susceptíveis de convocar um ou mais crimes.

E aqui socorremo-nos das palavras do Exm.º Juiz Conselheiro José Cunha Barbosa no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/2012:

«Obviamente que, no âmbito de uma estrutura acusatória e numa fase em que o arguido detém alguns direitos de intervenção/participação processual (cf. artigo 61.º, n.º 1 do CPP), quanto mais alargado for o conhecimento que este detiver dos factos e meios de prova já existentes, melhor poderá defender-se, exercer os seus direitos processuais e, inclusivamente, contribuir para a descoberta da verdade material, fazendo uso do direito de intervir no inquérito através quer do oferecimento de provas quer do requerimento de diligências que se lhe afigurem necessárias (cf. artigo 61.º, n.º 1, alínea g) do CPP).

Todavia, se é certo que da Constituição não resulta a exigibilidade do conhecimento preciso de todos os factos que venham a ser inseridos na acusação e em momento anterior à formulação desta, não é menos certo que, no pleno respeito das garantias de defesa constitucionalmente consagradas, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a verter ou vertidos em tal peça processual (acusação), sob pena de violação das enunciadas garantias.» (O sublinhado é nosso).

Assim, a garantia de defesa é violada quando, no decurso do inquérito o objecto do processo se alarga mediante a adição de outros pedaços de vida material e radicalmente diversos (no caso, os factos relativos ao incêndio ocorrido no concelho de Silves que deram azo à abertura do inquérito 374//16.1GBSLV, cuja conexão se determinou em 28/09/2106) sem que, podendo tal suceder, se haja diligenciado pela audição do arguido em torno destes novos factos.

Logo, a não audição (ou interrogatório) do arguido quanto aos factos vertidos nos artigos 4.º a 8.º da acusação pública consubstancia a omissão de acto legalmente obrigatório, porque imposto pelo artigo 270.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e dá azo à verificação da nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 1, al. d), a qual foi tempestivamente arguida, cf. artigo 120.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, julgo procedente a arguição da nulidade a qual acarreta a invalidade parcial do despacho de acusação no que concerne à aludida factualidade, dando azo à prolação de despacho de não pronúncia nos termos conjugados dos artigos 120.º, n.º 2, al. d), 122.º, n.º 1 e 308.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal, no que concerne à imputação de um crime de incêndio alicerçado nos factos vertidos nos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º da narração da acusação pública.

III – Apreciação do recurso
O recurso é definido pelas conclusões formuladas pela recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso, a questão a decidir consiste em saber se podia ter sido deduzida acusação, pelos factos constantes dos arts. nºs 4 a 8 da acusação, que integram um crime de incêndio florestal, sem que o arguido tenha sido confrontado com tais factos.

O arguido veio alegar no art. 63º do requerimento de abertura de instrução que não foi confrontado com sete crimes de incêndio florestal como consta da acusação.

O arguido foi detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial, que se realizou no dia 5 de Setembro de 2016 (fls. 153 a 161), tendo-lhe sido comunicados os factos constantes da acusação, salvo os que constam dos arts. 4 a 8, que ocorreram no Concelho de Silves.

Estes últimos factos deram origem á abertura do inquérito 374/16.1GBSLV.

Este inquérito foi apensado aos presentes autos, por despacho da autoridade judiciária competente proferido em 28/09/2016, cf. fls.. 193, portanto, em momento posterior à realização de 1º interrogatório judicial.

O arguido veio requerer, no dia 28 de Dezembro de 2016 (fls 607/608) o seu interrogatório complementar, o que foi deferido, tendo o mesmo ocorrido em 19-01-2017, tendo prestado declarações sobre a sua situação familiar e profissional e quanto aos factos referiu apenas que “após a sua jornada laboral costumava fazer passeios na serra de Monchique aonde nunca tinha estado sendo que no dia de hoje já não se recorda do que se passou durante esse passeio, especificando que não se lembra em concreto dos locais que estão identificados no processo e que lhe foram transmitidos em sede de primeiro interrogatório” (fls. 717/718).

O arguido não foi confrontado em inquérito com os factos constantes dos arts. 4 a 8 da acusação, que ocorreram no Concelho de Silves e por isso importa apurar qual a consequência desta omissão?

Nos termos do art. 141º, nº 1 do CPPenal, “o arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam”

E o nº4 do mesmo preceito estabelece: “Seguidamente, o juiz informa o arguido: Dos direitos referidos no nº 1 do art. 61º, explicando-lhe se isso for necessário, dos motivos da detenção; dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias do tempo, lugar e modo, e dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; ficando todas as informações a constar do auto de interrogatório”

A nossa lei processual penal impõe como obrigatório o interrogatório do arguido, de forma a que ele nesta fase seja confrontado com os factos e com os elementos colhidos na investigação, de forma a serem observadas todas as garantias de defesa que a Constituição proclama no art. 32º nº 1.

O exercício da garantia de defesa – no caso o interrogatório- não exige uma comunicação exaustiva de todos os factos que constituem o pedaço de vida em causa, mas impõe que se comuniquem ao arguido os factos concretamente imputados, as circunstâncias de tempo e lugar e modo se forem conhecidas e os elementos do processo que sustentam a imputação, caso não existam razões para vedar o conhecimento de algum meio de prova.

E, haverá uma violação da garantia de defesa do arguido nos casos em que são aditados outros factos na acusação susceptíveis de integrarem outros crimes, sejam ou não da mesma natureza, em relação aos quais ele não foi confrontado, uma vez que ninguém deve ser surpreendido com uma acusação, sem que antes lhe seja dada possibilidades de se defender da mesma.

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional nº 72/2012, a Constituição não exige que o arguido tenha conhecimento em momento anterior à acusação de todos os factos que venham a constar desta, “mas no pleno respeito das garantias de defesa consagradas na Constituição, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a verter ou vertidos (…) na acusação” sob pena de violação das garantias de defesa.

Não assiste assim razão ao Ministério Público ao alegar que, após o primeiro interrogatório judicial cessa a aplicabilidade do disposto no art.272º nº 1 do CPPenal e que não é obrigatório a realização de interrogatórios complementares, uma vez que se assim é em relação aos casos, em que os novos factos dizem respeito ao crime sobre o qual já foi ouvido, tal já não acontece se tais factos dizem respeito a outro crime.

No caso em apreço, o interrogatório do arguido detido ocorreu no dia 5-09-2016 e o inquérito 374/16.1GBSLV, relativo aos factos do incêndio que ocorreu em Silves (4º a 8º da acusação) só foi junto aos autos em 28-09-2016, pelo que como é óbvio não podia ter sido ouvido sobre estes factos à data do primeiro interrogatório, no entanto, deveria ter-se diligenciado para ser ouvido sobre os mesmos, o que não aconteceu como resulta da transcrição acima referida, em que não se faz qualquer alusão aos factos que ocorrem em Silves, mas apenas aos «passeios na serra de Monchique» e «que não se lembra em concreto dos locais que estão identificados no processo e que lhe foram transmitidos em sede de primeiro interrogatório” .

O arguido podia assim ter sido interrogado sobre os factos que integram o crime de incêndio que ocorreu em Silves (factos nºs 4º a 8º da acusação) e não foi, como resulta do art. 272º nº 1 do CPPenal, o que constitui a nulidade prevista no art. 120º al. d), por não ter sido praticado acto legalmente obrigatório, que foi invocada tempestivamente
.
Assim sendo, impõe-se manter o despacho recorrido, julgando procedente a arguição da nulidade invocada, a qual acarreta a nulidade parcial do despacho de acusação no que concerne aos factos nºs 4 a 8, devendo os autos prosseguir como consta do despacho recorrido.

Atenta a nulidade referida, quando o processo baixar à primeira instância deverá ser extraída certidão com as peças processuais pertinentes com vista a ser organizado um processo autónomo relativo aos factos do inquérito nº 374/16.1GBSLV, a fim de o arguido ser ouvido, o que não foi feito e que determinou a invalidade parcial da acusação, após o que deverá prosseguir os ulteriores termos.

IV- Decisão.
Termos em que se nega provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se o despacho recorrido.

Sem custas.

Notifique.

Évora, 10 de Outubro de 2017
(texto elaborado e revisto pelo relator)

José Maria Martins Simão
Maria Onélia Vicente Neves Madaleno