Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
49/15.9EAEVR.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REVOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
NULIDADE
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Numa situação em que se suscita o eventual incumprimento das regras ou injunções da suspensão provisória do processo e na ausência de previsão legal de um mecanismo próprio, deve ser aplicado analogicamente o regime próprio da suspensão da execução da pena, constante dos artigos 492º a 495 do Código de Processo Penal e nos artigos 55º e 56º do Código Penal

2 - Assim, sendo imprescindível a formulação de um juízo de culpa em termos semelhantes aos previstos para a revogação da suspensão da execução da pena, a revogação da suspensão provisória do processo só poderá ocorrer quando for possível afirmar, não só que se verificou efetivamente o incumprimento definitivo da injunção, mas também que o incumprimento é repetido ou censurável, a título de dolo ou de negligência grosseira, o que, no caso, manifestamente não ocorreu.

3 - No caso sub judice, a sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena de multa, depois de cumprida a injunção aplicada como condição de suspensão provisória do processo de entrega de uma quantia em dinheiro, desrespeitando o princípio constitucional da necessidade e adequação (das sanções penais) e ofendendo o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, não configura a violação do princípio ne bis in idem, mas sim uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

4 - Por isso, todo o procedimento posterior à suspensão provisória do processo se encontra afetado de nulidade, incluindo o julgamento e a sentença, por constitucionalmente insustentável (artigos 32º nº 1, 18º nº 2 e 20º nº 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa), o que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, impondo-se a absolvição do arguido e o arquivamento dos autos.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo - Juiz 2, foi o arguido (...) submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.

Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal decidiu:

a) Condenar o arguido (...) pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelo disposto no artigo 1.º, no n.º 1 do artigo 3.º, na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º e no n.º 1 do artigo 108.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, no quantitativo diário de € 6,00 (seis Euros) e na pena de quatro meses de prisão;

b) Substituir a pena de prisão aplicada pela pena de 40 (quarenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis Euros);

c) Em cúmulo material, nos termos do disposto no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, condenar o arguido (...) na pena única de 80 (oitenta) dias de multa, no quantitativo diário de € 6,00 (seis Euros), totalizando então € 480,00 (quatrocentos e oitenta Euros);

d) Declarar perdidas a favor do Estado as máquinas e as quantias apreendidas nestes autos;

e) Determinar a destruição, pela entidade apreensora, das máquinas apreendidas nestes autos;

f) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, que fixo em 2 (duas) UC.

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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. Pelo exposto deveria o Tribunal a quo ter considerado provados os seguintes factos :

- Que no âmbito da Suspensão Provisória do Processo, o Arguido já havia cumprindo a sanção que lhe fora imposta, conforme documento junto aos autos com a Ref.ª 2478422 ;

2. Que a acusação padece de ilegalidade uma vez que, não se verificaram os pressupostos estipulados pelo n.º 4 do artigo 282º do Código do Processo Penal ;

3. Antes se verificaram os pressupostos do n.º 3 daquele preceito legal ;

4. E não tendo o Ministério Público decidido pelo arquivamento do processo, deveria o arguido, em sede de julgamento, ter sido absolvido, ou considerar extinto o procedimento criminal, uma vez que a sentença agora proferida levou à sua condenação pelos mesmos factos, em que já o havia sido no âmbito da suspensão provisória do processo, face à injunção que lhe foi imposta e que cumpriu, conforme se demonstrou.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a douta sentença recorrida na medida do supra exposto, decidindo-se em conformidade com tudo quanto vai atrás requerido, fazendo-se, assim, a tão costumada JUSTIÇA.

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Por despacho de 19 de junho de 2020, o recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1. Dispõe o artigo 282.º, número 4., alínea a), do Código de Processo Penal, que o processo prossegue se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta.

2. O arguido, ora recorrente, foi devidamente notificado para fazer prova nos autos do pagamento da injunção que lhe fora aplicada, sob pena de, não o fazendo ser revogada a suspensão provisória do processo e os presentes autos prosseguirem para julgamento, contudo o mesmo nada disse.

3. Com o fundamento de não ter cumprido a injunção de pagamento o Ministério Público em 29 de Outubro, pelo despacho de fls. 232 a 235, revogou a suspensão provisória do processo e ordenou o prosseguimento do processo, nos termos do art. 282.º, n.º 4, al. a), do CPP e deduziu acusação, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 1.º, 3.º, n.º1. 4.º, n.º 1, alínea g) e 108.º, número 1, todos do Decreto-Lei n.º 442/89, de 2 de Dezembro.

4. A respeito da revogação da suspensão da pena, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 201-202 "A infracção grosseira não tem de ser dolosa, sendo bastante a infracção que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade (…). A colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir as condições da suspensão constitui violação grosseira dessas condições”.

5. Conforme já referido, o Ministério Público notificou o arguido/recorrente, após o decurso do prazo da suspensão provisória do processo para vir aos autos demonstrar que havia cumprido a injunção imposta, contudo, o arguido/recorrente nada fez.

6. O arguido, ora recorrente, sabia da obrigação imposta, porque a tinha aceite, sabia que o prazo para a cumprir já tinha passado, e ainda assim também não apresentou qualquer requerimento a informar das razões do não cumprimento.

7. Perante tal situação só podia o Ministério Público concluir por um incumprimento culposo e por isso foi proferido o despacho de acusação que determinou que o processo prosseguisse.

8. Em face do exposto, teremos que concluir, salvo melhor entendimento, que não assiste qualquer razão ao recorrente.

Nestes termos deverá o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida na íntegra.

Sendo que assim se fará a acostumada JUSTIÇA!

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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP não foi apresentada resposta ao Parecer.


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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

Cumpre decidir


-

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice o recorrente limita o recurso às seguintes questões:

- ilegalidade da acusação “uma vez que não se verificaram os pressupostos estipulados pelo n.º 4 do artigo 282º do Código do Processo Penal, antes se verificaram os pressupostos do n.º 3 daquele preceito legal” ;

- “não tendo o Ministério Público decidido pelo arquivamento do processo, deveria o arguido, em sede de julgamento, ter sido absolvido, ou considerar extinto o procedimento criminal, uma vez que a sentença proferida levou à sua condenação pelos mesmos factos, em que já o havia sido no âmbito da suspensão provisória do processo, face à injunção que lhe foi imposta e que cumpriu”.

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DA DECISÃO RECORRIDA – FACTOS E MOTIVAÇÃO (transcrição)

“2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 Factos provados

Da discussão da causa e com interesse para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 10 de agosto de 2015, pelas 17h00, o arguido detinha, para utilização do público, no interior do estabelecimento comercial de que é proprietário, denominado (…), quatro máquinas de jogo, em funcionamento, e disponíveis aos clientes.

2. Desde a data da sua colocação no estabelecimento comercial, data esta não apurada, até ao dia 10 de agosto de 2015, data da apreensão das referidas máquinas, o arguido auferiu os lucros resultantes da utilização das aludidas máquinas pelos clientes do estabelecimento, em montante não concretamente apurado.

3. Com efeito, no dia 10 de agosto de 2015, pelas 17h00, no interior das aludidas máquinas encontrava-se a quantia de €16,00 (dezasseis euros), em moedas, as quais foram inseridas pelos clientes na utilização daquelas máquinas de jogo.

4. Para utilização de tais máquinas era ainda necessário a introdução de um código de acesso, 09EBFCB98822, o qual se encontrava na posse do arguido.

5. As referidas máquinas funcionam através da introdução de notas ou moedas, disponibilizando jogos de fortuna ou azar, porquanto apresenta como resultado pontuações dependentes da sorte, do tipo “vídeo-poquer” e “slot machine”, podendo alguns deles ser acedidos através de aplicações denominadas “notepade.exe”, “javacom.exe”, “Toques.exe”, “Ultimate.exe” e “Control.exe”.

6. A máquina com a designação “Choco Win” funciona através da introdução de moedas, fazendo acender um ponto luminoso num dos orifícios com direito a prémio, sem outra intervenção por parte do jogador.

7. O jogo apresenta, como resultados, pontuações que são posteriormente convertidas em dinheiro, sendo certo que estas pontuações são dependentes exclusivamente da sorte, ou seja, o jogador não pode por sua intervenção condicionar o resultado final.

8. O arguido não possuía licença de exploração das referidas máquinas de jogo, bem sabendo que não podia deter no seu estabelecimento as referidas máquinas.

9. O arguido conhecia as características das máquinas, bem sabendo que era proibida a exploração das mesmas naquele estabelecimento comercial, por saber que a existência e exploração da mesma só é permitida em certas condições e zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas.

10. Agiu o arguido de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Provou-se ainda que:

11. O arguido não tem antecedentes criminais.

12. O arguido, presentemente, encontra-se com demência e acamado.

2.1.2 Matéria de facto não provada

Com relevância para a decisão da causa, não ficaram factos por provar.

2.1.3 Motivação

Para formar a sua convicção quanto à matéria adquirida nos autos, o Tribunal considerou a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e, desde logo, a prova documental e pericial junta aos autos, nomeadamente o relatório pericial de fls. 110 a 128 (ref.ª 1983664), bem como o auto de apreensão de fls. 2 a 5, o relatório fotográfico de fls. 9 a 16, o talão de fls 17 a 21 e a folha com código de acesso de fls. 22.

O teor dos documentos referidos foi ainda confirmado pelas testemunhas (…) (à data dos factos, inspetor da ASAE) e (…) (inspetor da ASAE), ambas presentes na ação de fiscalização referida nos autos e que, de forma descomprometida, descreveram a ação que efetuaram e as máquinas descritas na acusação e que encontraram no estabelecimento explorado pelo arguido.

Estando demonstrado que o estabelecimento comercial (…) era do arguido e por si explorado, e atendendo à dimensão das máquinas, dúvidas também não restam de que as máquinas eram por si exploradas, com o seu conhecimento e consentimento, não sendo plausível conceber que o arguido, detendo e explorando um estabelecimento comercial, não tivesse conhecimento da existência e funcionamento daquelas máquinas.

O depoimento de (…), filha do arguido, foi relevante para a formação da convicção quanto ao estado de saúde descrito em 12. (juntamente com o documento junto em audiência de discussão e julgamento, de ref.ª 29466661). Quanto aos factos, a testemunha foi evasiva, referindo não se recordar exatamente das máquinas que havia no estabelecimento (que conhecia, por aí trabalhar, à data), embora tendo confirmado a sua existência.

O descrito em 8. a 10., de índole subjetiva, resultou essencialmente das regras da experiência comum, à luz das quais, ao adotar as condutas acimas descritas, a vontade da arguida não poderia ser outra senão a que ali se descreve.

A ausência de antecedentes criminais 11. resultou da análise do teor do certificado de registo criminal de ref.ª 29436506.”

*

Vejamos

Resultam dos autos, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

- Em sede de inquérito, o Ministério Público, e relativamente aos mesmos factos por que foi o arguido acusado e condenado, decidiu-se pela suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281.º do Código do Processo Penal, por julgar estarem reunidos os pressupostos daquele instituto , propondo um período de suspensão e as injunções adequadas ao Mm.º Juiz de Instrução Criminal ;

- Considerando verificados os pressupostos da aplicação da suspensão provisória do processo previstos no artigo 281.º do CPP, o Mmº Juíz de Instrução concordou com a suspensão provisória do processo , pelo período de 8 (oito) meses , com a injunção proposta pelo Ministério Público : proceder ao pagamento , no referido período da suspensão provisória do processo , do valor de € 450,00 à ANEM -Associação Nacional de Esclerose Múltipla , IPSS, fazendo prova do pagamento nos autos .

- O arguido foi notificado de tal decisão, conforme prova de depósito com a Ref.ª 2232613 de 05-02-2019 , momento a partir do qual começa a correr o prazo de 8 meses para entregar a importância resultante da injunção imposta ;

- O arguido procedeu ao pagamento à ANEM , no valor de € 450,00 em 23-09-2019 , conforme documento de transferência bancária , emitido pelo banco emissor Santander, e junto aos autos , Ref.ª 2478422 de 04-11-2019 ;

- No entendimento do Ministério Público , o arguido não procedeu ao cumprimento das injunções que lhe foram determinadas , não tendo justificado nos autos as causas de tal incumprimento ;

- E de acordo com o disposto no artigo 282.º,n.º 4, al. a) do Código do Processo Penal , o Ministério Público determinou a revogação da suspensão provisória do processo , determinando o prosseguimento dos autos , através da dedução de acusação;

- A acusação formulada contra o arguido resulta da “ Revogação da Suspensão Provisória do Processo “ .

Ora, a suspensão provisória do processo consiste na faculdade, concedida ao Ministério Público, de, verificados os pressupostos legais e com a concordância do juiz de instrução, se abster de acusar, com aplicação ao arguido das injunções ou regras de conduta tipificadas na lei.

Como ensina Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, pág. 111, a suspensão provisória do processo “assenta essencialmente na busca de soluções consensuais para a protecção dos bens jurídicos penalmente tutelados e a ressocialização dos delinquentes, quando seja diminuto o grau de culpa e em concreto seja possível atingir por meios mais benignos do que as penas os fins que do direito penal prossegue”, sendo um instituto que reflecte a preocupação de “busca do consenso, da pacificação e da reafirmação estabilizadora das normas, assente na reconciliação”. Deste modo, estatui-se no nº1 do artº 281 do Código de Processo Penal, que “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta”, sempre que se verifiquem determinados pressupostos aí mencionados.

É, pois, uma forma consensual de resolução do conflito criminal, corolário do princípio da oportunidade, que visa a pacificação social e a ressocialização do delinquente, evitando a condenação e o seu efeito estigmatizante.

E como dispõe o artigo 282º, n.º4 al. a) do Código do Processo Penal , o Processo prossegue se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta.

No caso sub judice, entendeu o Ministério Público que o arguido não cumpriu a injunção que lhe havia sido imposta no âmbito da suspensão provisória do processo, considerando extemporâneo a apresentação da prova do pagamento do valor da Injunção.

Porém, como resulta dos autos, o pagamento no valor de € 450,00 à ANEM, imposto ao arguido, foi efetivamente pago, e dentro do prazo da suspensão provisória do processo.

Não obstante tal pagamento tempestivo e o disposto no artigo 282º n.º3 do Código do Processo Penal, que claramente preceitua que se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto, o Ministério Público deduziu acusação imputando ao arguido a prática dos mesmos factos objeto da suspensão provisória do processo.

Ora, a doutrina e a jurisprudência têm coincidido no entendimento de que numa situação em que se suscita o eventual incumprimento das regras ou injunções da suspensão provisória do processo e na ausência de previsão legal de um mecanismo próprio, deve ser aplicado analogicamente o regime próprio da suspensão da execução da pena, constante dos artigos 492º a 495 do Código de Processo Penal e nos artigos 55º e 56º do Código Penal (João Conde Correia, Incumprimento parcial dos prazos, injunções e regras de conduta fixados na suspensão provisória do processo, Revista do Ministério Público, Ano 34, nº 134, Abril-Junho 2013, pp 43-61, Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar e Outros, Almedina, 2014, p 989, Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, p 741, Acórdão da Relação de Lisboa de 18-05-2010, proc. 107/08.6GACCH.L1-5, José Adriano, Acórdão da Relação do Porto de 09-12-2015, proc. 280/12.9TAVNG-A.P1, Nuno Ribeiro Coelho, Acórdãos da Relação de Coimbra de 17-05-2017, proc. 3/16.3PACVL.C1, Luís Teixeira, de 13-09-2017, proc. 81/14.0GTCBR.C1, Jorge França, de ...-09-2017, proc. 361/11.6JFLSB.C1, Paulo Valério e de 18-10-2017, proc. 10/16.6GBGRD.C1, Inácio Monteiro, todos acessíveis in www.dgsi.pt).

Sendo imprescindível a formulação de um juízo de culpa em termos semelhantes aos previstos para a revogação da suspensão da execução da pena, a revogação da suspensão provisória do processo só poderá ocorrer quando for possível afirmar, não só que se verificou efetivamente o incumprimento definitivo da injunção, mas também que o incumprimento é repetido ou censurável, a título de dolo ou de negligência grosseira, o que, no caso, manifestamente não ocorreu.

Alega o recorrente que “submeter o arguido a julgamento, pelos mesmos factos, além da ilegalidade, tal procedimento é violador do principio fundamental de direito penal, ninguém deve ser julgado pelos mesmos factos mais que uma vez”, ou seja, alega o recorrente a violação do princípio ne bis in idem.

Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Numa vertente processual, o princípio ne bis in idem, estabelece a proibição de sujeição a julgamento pelo “mesmo crime” em processos sucessivos e encontra o seu fundamento próximo na tutela da segurança ou da paz jurídica, inerente ao princípio do Estado de Direito.

Assim, a proibição do duplo julgamento envolve a proibição do “duplo processo”, sendo o duplo julgamento constituído não só pela sentença, como também pelo despacho de arquivamento ou a decisão instrutória que se pronuncie sobre o objeto do processo, rebus sic stantibus.

Nesta perspetiva, a garantia conferida pelo princípio implica a proibição da investigação e do posterior julgamento não só do que foi mas também do que poderia ter sido conhecido no primeiro processo.

Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21-12-2017, “acompanhando Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial, Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória”, Universidade Católica, Porto, 2002, pág. 485, «(…) o Direito Nacional (…) não deixou de assegurar um valor de «eficácia» ao despacho de arquivamento (…) daqui deriva que o ne bis in idem se dirige fundamentalmente para o âmbito do «exercício da acção penal» e para o «processo» (…);por isso, qualquer despacho de arquivamento tem um efeito preclusivo (consumptivo de poderes), no sentido de que, não só vale «intraprocessualmente» (impedindo a reiteração da acção penal), como positivamente, impossibilitando que, em futuros processos, se coloque em causa o «acertamento» contido nesse despacho de arquivamento. (…) A consequência é óbvia: tanto o despacho de arquivamento, como o acto de acusação, correspondem a um «dever de decidir» por parte do MP (…), Visto por este prisma, e em obediência estrita a um princípio de acusação materialmente entendido, o ne bis in idem significa, para o MP, tanto «processualmente», como «institucionalmente», a impossibilidade de proferir uma nova decisão (através de nova acusação ou de um despacho de arquivamento) e, por isso, de voltar a exercer os poderes de autoridade sobre a matéria decidida. Ora se estas considerações se nos afiguram justas, devemos acrescentar o seguinte: se, de facto, a proibição de ne bis in idem, presente no processo penal, tem uma intenção política de garantia do arguido (…), exactamente como proibição de «duplo processo» (sobre os mesmos factos), tal garantia tem de valer já na fase de inquérito (…)».(proc. 372/17.8T9ENT.E1, relator Carlos Berguete Coelho, www.dgsi.pt)

Decorre assim expressamente do nº5 deste 29.º da Constituição da República Portuguesa, onde se prescreve que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, e como já se disse, a proibição de duplo julgamento pelos mesmos factos, assentando tal proibição em razões de segurança jurídica, impedindo que o já decidido seja atacado quer dentro do mesmo processo, quer noutro processo.

Assim, a proibição do ne bis in idem mais não é do que a manifestação substantiva do princípio do caso julgado, enquanto garantia básica de que ninguém pode ser submetido a um processo duas vezes pelo mesmo facto, seja de forma simultânea ou sucessiva, englobando tal garantia uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a um determinado facto penal.

O artº29º nº5 da CRP, consagrando o princípio non bis in idem, comporta, assim, duas dimensões: como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.

Ora, no caso sub judice, a sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena de multa, depois de cumprida a injunção aplicada como condição de suspensão provisória do processo de entrega de uma quantia em dinheiro, desrespeitando o princípio constitucional da necessidade e adequação (das sanções penais) e ofendendo o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, não configura, no entanto, e ao contrário do que alega o recorrente, a violação do princípio ne bis in idem.

E é assim porque o despacho de suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da questão, é proferido em sede de inquérito, não coloca fim ao processo, e trata-se de uma decisão provisória, que fica dependente do cumprimento, pelo próprio arguido, das injunções e regras de condutas que lhe foram fixadas.

Não se coloca, por isso, a alegada violação do princípio ne bis in idem, por não estarmos na presença de dois julgamentos pelos mesmos factos, nem de uma dupla condenação judicial.

Verifica-se, sim, uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.

Como se escreveu no Acórdão da Relação de Évora de 29-03-2016, (proc. 361/12.9GTABE.E1, Ana Barata Brito “O sistema normativo (processual-penal), que consagra e regula a suspensão provisória do processo, pressupõe que este instrumento de consenso acautela, suficientemente, a protecção dos bens jurídicos.

O que significa que as finalidades preventivas “da punição” se consideram abstractamente garantidas através da aplicação de injunções. E essas finalidades preventivas são, então, de considerar como concretamente asseguradas sempre as injunções aplicadas se mostrem cumpridas e não ocorra motivo para que o processo prossiga (ou seja, não ocorra causa que obste ao arquivamento do inquérito).

Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar.”

E sufragando tal entendimento, concluímos assim que todo o procedimento posterior à suspensão provisória do processo se encontra afetado de nulidade, incluindo o julgamento e a sentença, por constitucionalmente insustentável (artigos 32º nº 1, 18º nº 2 e 20º nº 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa), o que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, impondo-se a absolvição do arguido e o arquivamento dos autos.

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Decisão

Com os fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, em revogar a sentença recorrida e em absolver o arguido (...).

- Sem custas.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares