Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
331/14.2TBABF-A.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EFICÁCIA REAL
HIPOTECA
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A promessa de venda com eficácia real de prédio hipotecado, ocorrida posteriormente à sua hipoteca, não fica afetada na sua validade, simplesmente não pode ser eficazmente invocada na execução onde tal hipoteca vai ser executada, pois que a garantia traduzida na hipoteca segue o bem (sequela), embora não acarrete, para ele, a sua respectiva indisponibilidade.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:

Os embargantes AA e mulher BB vêm interpor recurso da douta sentença que foi proferida em 4 de Janeiro de 2016 (agora a fls. 88 a 95), nos presentes autos de embargos de terceiro que haviam instaurado no tribunal judicial contra a embargada/exequente “CC, CRL” e que veio a confirmar a douta sentença anterior (datada de 28 de Maio de 2014 e ora a fls. 43 a 63 dos autos) e considerou a instância já extinta desde essa sentença, assim indeferindo a nova petição inicial de embargos apresentada ao abrigo da previsão do artigo 560º do Código de Processo Civil – com o fundamento que é aduzido na douta decisão recorrida de queno caso em juízo, com a nova petição inicial, vieram os AA. reiterar a existência de um direito incompatível com a penhora assente no incumprimento definitivo do contrato de promessa de compra e venda”; de quea afirmação pelos autores de que existe uma posse sobre o bem penhorado é inócua, em termos substantivos e procedimentais, pois mesmo ao afirmar-se a sua existência emergente do contrato de promessa constituído com a ora executada, o exequente poderá sempre exigir o prosseguimento dos autos para satisfação do seu crédito sem que se determine o levantamento da penhora realizada nos autos principais”; de quea existência do direito de retenção decorrente do incumprimento definitivo do contrato de promessa (o que traduz a inovação da segunda petição inicial, quer em termos alegação e de prova documental carreada aos autos), não constitui um direito incompatível com a penhora, em face do estatuído no artigo 342.º do C.P.C.”; e de queo direito de retenção reporta-se, como direito real de garantia, à tutela ressarcitória do crédito do retentor sobre a coisa em relação ao seu credor; não permite ao retentor o direito de gozo sobre a coisa retida, sob pena de violar o princípio da tipicidade dos direitos reais, prevista no artigo 1306.º” –, intentando agora a sua revogação e que os embargos sejam recebidos e prossigam os seus normais trâmites e alegando, para tanto e em síntese, que defenderam, neles, um “direito incompatível com a realização de diligência ordenada judicialmente”, como a lei exige para serem admitidos. Pois que é certo que “um retentor de um imóvel pode usar os meios possessórios em relação à coisa retida e traditada, quando se está perante caso em que ele pode exigir o cumprimento contratual em espécie” (e “o direito de execução específica é incompatível com a adjudicação ou venda da coisa retida na sequência da penhora que sobre ela tenha incidido”, aduzem). São, pois, termos, concluem, em que se deverá vir a dar provimento ao recurso, revogar-se a douta sentença recorrida, e admitirem-se os embargos de terceiro.
A embargada “CC, CRL” apresenta contra-alegações (a fls. 113 a 125 dos autos) para dizer, também em síntese, que os embargantes não têm razão, pois que vieram “apresentar nova petição inicial através da qual reiteraram a existência dum direito incompatível com a penhora assente no incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda; contudo, discordando os recorrentes da decisão de indeferimento dos embargos, cabia aos mesmos recorrer da referida sentença de 26-05-2014”, o que, todavia, não fizeram. Dessarte, “atendendo a que a primeira petição inicial foi indeferida por manifesta improcedência, sem que as partes pudessem suprir tal vício, não podiam os recorrentes apresentar nova petição inicial”. Em todo o caso “a posse decorrente da execução de um contrato-promessa com eficácia real, com registo posterior ao da hipoteca, não obsta à tutela executória daquele direito real de garantia”. São pois termos em que se deverá vir a negar provimento ao recurso.
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Atende-se ao seguinte circunstancialismo fáctico:

1) Os embargantes AA e BB celebraram no dia 08 de Fevereiro de 2010 um contrato promessa de permuta, pela qual a executada “DD, Unipessoal, Lda.” lhes prometeu entregar, livre de ónus ou encargos, uma fracção autónoma de tipologia T-4 destinada a habitação do prédio urbano a edificar sobre o descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 13.956, a que atribuíram o valor de € 350.000,00 e, em troca, os embargantes prometiam entregar à executada a fracção autónoma designada pela letra D, correspondente à moradia localizada a Norte-Nascente do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 8.649, da freguesia de Albufeira, a que atribuíram o valor de € 200.000,00.
2) No dia 30 de Julho de 2013 os embargantes e a executada por escritura pública, alteraram integralmente os contratos acima referidos e celebraram um ‘contrato promessa de compra e venda com eficácia real’ no qual estipularam a obrigação de cancelamento de todos os ónus sobre a referida fracção até ao momento da celebração da escritura definitiva de compra e venda (vide o seu teor completo, a fls. 15 a 20 dos autos, aqui dado por inteiramente reproduzido).
3) Fixaram o preço respectivo em € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), que declararam já integralmente recebido (idem).
4) Sobre o referido imóvel incidiam, ao tempo, duas hipotecas, uma a favor da “CC, CRL”, pela inscrição Ap. 30, de 2006/11/16, uma outra a favor da sociedade comercial “EE, SA”, pela inscrição Ap. 2037, de 2013/05/16, e uma penhora em que era exequente a Fazenda Pública, registada provisória por dúvidas, pela inscrição Ap. 2464 (idem e documentos de registo de fls. 34 a 38 dos autos).
5) Em 19 de Fevereiro de 2014 foi instaurada a execução de que estes são apenso, pela ora embargada “CC, C.R.L.” e contra os executados “DD, Unipessoal, Lda.” e FF, pelo valor exequendo de € 2.283.961,84 (dois milhões, duzentos e oitenta e três mil, novecentos sessenta e um euros, oitenta e quatro cêntimos).
6) No âmbito da qual foi registada, em 25 de Março de 2014, a favor da aí exequente, uma penhora sobre a fracção objecto da promessa, designada pela letra G (vide fls. 38 dos autos).
7) Em 21 de Maio de 2014 os embargantes apresentaram a 1ª petição de embargos de terceiro que constitui o douto articulado de fls. 5 a 13, que aqui se dá por integramente reproduzido (a data de entrada está a fls. 42 dos autos).
8) Que lhes foi indeferida pelo douto despacho proferido a 28 de Maio de 2014 (vide o seu teor completo a fls. 43 a 63 dos autos, que aqui se reproduz).
9) Pelo que os embargantes apresentaram, então, a 12 de Junho de 2014, “nos termos e para os efeitos do art.º 560º do NCPC”, a 2ª petição de embargos de terceiro que constitui o douto articulado de fls. 66 a 70 verso dos autos, que aqui se dá igualmente por reproduzido na íntegra (a data está aposta a fls. 87).
10) Que lhes foi indeferida pelo douto despacho de 04 de Janeiro de 2016 (vide o seu teor completo a fls. 88 a 95 dos autos, aqui também reproduzido).
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se foram bem julgados os presentes embargos de terceiro no Tribunal a quo, no sentido do seu indeferimento. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.

Porém, salva sempre melhor opinião que a nossa, cremos ter a sentença recorrida decidido bem a problemática que lhe fora colocada nos embargos (até por mais que uma vez, já tendo transitado, porém, o 1º despacho proferido) – pese embora se compreenda a posição incómoda em que ficam os embargantes, tendo que abrir mão do prédio onde alegadamente habitam ou pretendiam vir a habitar (isto, naturalmente, a ser verdade que pagaram já a totalidade do preço que fora estabelecido no contrato promessa de compra e venda que celebraram com a executada). Mas não seria dos mesmos terem outro tipo de cuidados que não tiveram, entregando, dessa maneira, o seu dinheiro, para mais constando do registo predial hipotecas sobre ele de montantes elevadíssimos? Pois ali estava o registo das garantias de € 2.758.875,00 e de € 111.264,47. Então, para que é que serve o registo? Para as pessoas consultarem antes de fazerem negócios. E porque é que os ora embargantes não o fizeram? Ou, se sim, e constataram que aqueles registos ali constavam, não se importaram com isso, contrataram e terão pago, na mesma, a totalidade do preço (€ 250.000,00).
Ora, se assim foi, só se poderão (e deverão) queixar, agora, de si mesmos.
Pois que outorgaram na promessa em 30 de Julho de 2013 e as garantias já estavam registadas desde 16 de Novembro de 2006 e 16 de Maio de 2013.

Por isso que, nessa altura, quando outorgaram, em 30 de Julho de 2013, já se encontrava registada a hipoteca que constitui a garantia da execução a que agora se vêm opor, em favor da exequente, mais precisamente desde o dia 16 de Novembro de 2006, embora a penhora aí efectivada seja posterior (foi registada a 25 de Março de 2014). Consequentemente, uma tal promessa posterior, ainda que com eficácia real, é inoponível na execução, e a oposição por embargos de terceiro terá que improceder, por manifestamente infundada, como se decidiu na 1ª instância (veja-se, verbi gratia, o que estatui o artigo 819º do Código Civil reportado a bens penhorados mas que se pode muito bem aplicar a bens objecto de hipoteca, por similitude de razões e circunstâncias: “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”). Dessarte, aquela promessa de venda do prédio hipotecado, ocorrida posteriormente à sua hipoteca, não fica afectada na sua validade, simplesmente não pode ser eficazmente invocada na execução onde tal hipoteca vai ser executada, pois que a garantia traduzida na hipoteca segue o bem (sequela), embora não acarrete, para ele, a sua respectiva indisponibilidade.

E foi precisamente por isso – por considerar tanto a inoponibilidade da eficácia real da promessa de compra e venda à execução hipotecária, como a inoponibilidade do direito de retenção como fundamento para a dedução de embargos e para o levantamento da penhora – que o 1º despacho proferido em 28 de Maio de 2014 (a fls. 43 a 63 dos autos e já transitado em julgado) veio a indeferir in limine os embargos de terceiro pela sua manifesta improcedência.
Pelo que os visados, uma vez que discordavam dessa solução, deveriam ter interposto recurso desse douto despacho.
Mas não o fizeram e optaram antes por apresentar uma nova petição, “nos termos e para os efeitos do artigo 560.º do NCPC”.
Porém, estando aí em causa o indeferimento da petição “quando o pedido seja manifestamente improcedente”, na previsão do artigo 590.º, n.º 1, do CPC, verdadeiramente não havia fundamento legal para apresentar uma nova petição, mormente a dizer o mesmo, pois não haveria nada para corrigir/sanar com essa apresentação. Era inviável e continua inviável, apresentem-se quantas petições se apresentem. Para mais, vindo-se reiterar o que já se alegara antes, e tendo o juiz que ter presente o conteúdo do despacho anterior já transitado em julgado, que não poderá desrespeitar, se os fundamentos ora alegados forem os mesmos.

Consequentemente, tendo sido isso que a douta sentença recorrida veio a dizer, nada se lhe deverá censurar, não se justificando o inconformismo que os Apelantes vêm manifestar no recurso, pelo que se terá que confirmá-la agora na ordem jurídica, e assim improcedendo o presente recurso de Apelação.

Porém, a pronúncia deste Tribunal não ficaria completa – e deverá ficá-lo – se não se abordar, ainda, uma outra vertente da situação criada. Pois não será o caso dos embargantes, afinal, terem alterado a sua abordagem do pleito duma petição para a outra, introduzindo-lhe elementos distintos que possam obrigar a que o tribunal se pronuncie sem se escudar no argumento de que se vem apenas repetir a mesma coisa nas duas petições?
Pode efectivamente fazer-se aqui tal exercício, que não é despropositado.
Pois é realmente verdade que os embargantes, aproveitando o que ficou a constar daquele 1º despacho de indeferimento liminar dos embargos – de que se teria que verificar o incumprimento definitivo do contrato-promessa em ordem ao “accionamento, pelo contraente cumpridor, do mecanismo destinado a obter o pagamento da indemnização antecipadamente determinada por referência ao valor do sinal pago” (sic, a fls. 54 desse douto despacho) –, e precisamente para escudarem/fundarem o reconhecimento do seu direito de retenção, vêm agora à lide proclamar que a promitente-vendedora deixou de cumprir definitivamente o contrato-promessa (por não ter comparecido na data aprazada para a outorga do contrato definitivo) e, que, por isso, eles, promitentes-compradores, perderam o interesse no negócio, que já não querem que vá para a frente e querem, agora, o ressarcimento do seu crédito de 500 mil euros (250 mil de sinal, mais 250 mil).
E para tal ressarcimento é que invocam agora, na 2ª petição de embargos, o direito de retenção sobre o prédio em causa, que é objecto quer da promessa de compra e venda, quer da hipoteca e penhora na execução a que se opõem.

Eis a sua nova construção, que apresentam na 2ª petição dos embargos.
Mas cremos que, com a alteração, só vieram piorar a sua própria situação.
Pois que a 1ª instância – e bem pelos motivos que aduz e que passam pela possibilidade dos embargantes poderem reclamar o seu crédito na execução e aí invocarem o seu direito de retenção, sendo que este nunca seria idóneo a que se desse sem efeito uma penhora que vem na sequência de uma hipoteca anterior e não é, por isso, adequado a fundar uns embargos de terceiro, por não constituir um direito incompatível com a penhora, para efeitos do estatuído no artigo 342.º do C.P.C. – acabou por indeferir, de novo, liminarmente, os embargos, mesmo a considerar-se que houvesse alguma possibilidade de apresentar uma 2ª petição, o que não era nada líquido, como refere.
Passam, então, os apelantes a dizer, nas suas doutas alegações de recurso, que o reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio é, afinal, necessário à execução específica do contrato-promessa. Pois que aduzem que é certo que “um retentor de um imóvel pode usar os meios possessórios em relação à coisa retida e traditada, quando se está perante um caso em que ele pode exigir o cumprimento contratual em espécie”, e que “o direito de execução específica é incompatível com a adjudicação ou venda da coisa retida na sequência da penhora que sobre ela tenha incidido”.
Mas, afinal, agora, nesta sede de recurso, já querem a execução específica do contrato? Mas na petição queriam o ressarcimento dos 500 mil euros (os 250 mil do sinal, mais 250 mil) – e era para isso que queriam o reconhecimento do seu direito de retenção. Agora já é para a execução específica do contrato? Mas não tinham alegado, na 2ª petição, que haviam perdido o interesse no negócio?
Esta invocação da pretensão da execução específica do contrato constitui uma novidade no recurso, que não tinha sido invocada antes (e os recursos não servem para introduzir questões novas em relação às abordadas e apreciadas na 1ª instância) e é uma alegação totalmente contraditória com a construção que se apresenta na 1ª instância e sobre a qual esta se pronuncia na decisão em recurso: além era o ressarcimento através do valor do sinal, devolvido em dobro, dado o desinteresse pela realização do negócio prometido; aqui é essa realização desse negócio através da sua execução específica, incompatível com a penhora e a venda na execução.
E por isso é que dizemos que a posição dos embargantes acaba por piorar nesta 2ª petição, dadas as contradições de que está eivada e que a liquidam.

Pelo que, como se disse supra, se mantém o decidido.

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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.
Registe e notifique.
Évora, 6 de Outubro de 2016

Canelas Brás

Jaime Pestana

Paulo Amaral