Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
109/18.4T8BNV.E1-A
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A procedência do recurso de revisão com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do CPC implica que a parte convença o tribunal de que não pôde fazer uso do documento na ação, ou porque não tinha conhecimento do documento, ou porque, embora sabendo da sua existência, não tenha podido socorrer-se dele, apesar de ter recorrido a todos os meios que estavam ao seu alcance para o obter, designadamente, e sendo o caso, aos mecanismos previstos nos artigos 429.º e 432.º, respetivamente, ambos do CPC, ou ainda porque o documento só se formou posteriormente à data limite para a apresentação desse documento no processo em que foi proferida a decisão revidenda; e que o documento, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente, ou seja, permita, sem o apoio de outros meios probatórios, uma alteração da decisão de facto, em sentido favorável ao recorrente.
(sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Revisão n.º 109/18.4T8BNV.E1-A
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
(…), co-réu na ação movida por (…), Sociedade Unipessoal, Lda. (também) contra (…), Lda. e (…), interpôs recurso de revisão do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 21 de maio de 2020, na parte em que este confirmou a sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Benavente, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, condenando-o no pagamento à autora da quantia de quinze mil euros.

Para sustentar o seu recurso de revisão, (…) alegou que, no dia 04-10-2003, outorgou com a sociedade (…), Lda. um contrato-promessa de compra e venda que teve por objeto a fração “B” do Bloco A, correspondente ao rés-do-chão, no Porto Alto, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob a ficha n.º (…), da freguesia de Samora Correia e que nos termos do referido contrato-promessa a referida sociedade prometeu vender ao segundo aquela fração autónoma pelo preço de € 174.579,00, o qual seria pago da seguinte forma: € 4.579,00, a título de sinal e princípio de pagamento, na data de celebração do contrato, € 30.000,00, a título de reforço de sinal e continuação de pagamento, até 25 de outubro de 2003, € 15.000,00, também a título de reforço do sinal e continuação de pagamento, após a entrega da certidão de teor referente à fração objeto do negócio e € 125.000,00, com a outorga da escritura pública; o recorrente efetuou o pagamento da terceira tranche – € 15.000,00 – na data da outorga da escritura pública, em 25.11.2004, juntamente com o valor de € 125.000,00; o tribunal de primeira instância condenou o recorrente «como sendo devedor à autora dessa quantia», ou seja, de € 15.000,00, condenação que o Tribunal da Relação de Évora confirmou; foi o (…), SA que cedeu ao recorrente, em forma de leasing imobiliário, o crédito para a compra da fração autónoma acima mencionada e foi igualmente com aquele Banco que o recorrente celebrou um contrato de crédito pessoal no valor de € 20.000,00 para o pagamento integral daquela fração; após árduas diligências encetadas junto do (…), SA conseguiu que lhe fosse entregue, mas apenas em 15.02.2021, um documento que comprova o pagamento integral da fração, a saber, a cópia do cheque n.º (…), no valor de € 20.000,00, sacado no dia 30.11.2004.
Admitido o recurso, a Imobiliária (…), Sociedade Unipessoal, Lda. apresentou resposta ao recurso, pugnando pelo seu indeferimento.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II.
FACTOS
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
1 – Mediante sentença proferida em 02.09.2019, no âmbito do processo n.º 109/18.4T8BNV, o Juízo Local Cível de Benavente, do Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, julgou a ação parcialmente procedente, por provada, e consequentemente julgou procedente a exceção perentória de abuso de direito invocada pelos réus, condenou o réu (…) a pagar à autora Imobiliária (…), Sociedade Unipessoal, Lda., a quantia de € 15.000,00, absolveu o réu (…) do pedido quanto à restante quantia peticionada e absolveu os réus (…) e (…), Lda. da totalidade do pedido;
2 – O réu (…) recorreu da sentença proferida, pugnando pela modificação do ponto 7 dos factos não provados – que deveria receber resposta de provado – com a consequente revogação da sentença na parte em que foi condenado, com a consequente absolvição do pedido.
3 - Mediante acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 21 de maio de 2020, já transitado em julgado, aquele manteve a sentença recorrida na parte em que condenou o réu (…) a pagar € 15.000,00 à Imobiliária (…), Sociedade Unipessoal, Lda..

III.
Apreciação do mérito do recurso
O presente recurso de revisão tem por objeto o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 21 de maio de 2020 na parte em que aquele confirmou a sentença recorrida quanto à condenação do recorrente a pagar à recorrida/autora o valor de quinze mil euros, a título de sinal e parte do preço de aquisição, pelo primeiro, da fração autónoma melhor identificada nos autos.
O recorrente fundamenta a sua pretensão de revisão apresentando um documento a que só agora terá tido acesso, e que, na sua perspetiva, comprova que o montante de € 15.000,00 que foi condenado a pagar à recorrida, afinal, já havia sido satisfeito na data da outorga da escritura pública de compra e venda que teve por objeto a fração autónoma identificada pela letra “B” do Bloco A, correspondente ao rés-do-chão, no Porto Alto, freguesia de Samora Correia, concelho de Benavente, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob a ficha n.º (…) da freguesia de Samora Correia.
Explicava Alberto dos Reis[1], a propósito da justificação do recurso de revisão, que «bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora. Mas pode haver circunstâncias que induzem a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio. Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam, da intangibilidade da sentença».
Adiantava ainda aquele autor que «quais sejam os casos excecionais em que o princípio da segurança deve ser sacrificado ao princípio da justiça é uma questão de medida, de política judiciária».
O recurso extraordinário de revisão interpõe-se de decisões transitadas em julgado (despachos, sentenças ou acórdãos), visando a rescisão de uma decisão que já não pode ser impugnada por via de recursos ordinários.
O recurso de revisão está estruturado em duas fases, não necessariamente autonomizadas entre si, a saber: uma fase rescindente, destinada a afastar a decisão transitada em julgado, e uma fase rescisória, que se segue à anulação ou rescisão da decisão transitada e que visa retomar o processo e aí obter uma decisão que substitua a rescindida ou anulada[2].
Os fundamentos de revisão encontram-se taxativamente enunciados no artigo 696.º do CPC.
O fundamento de revisão invocado pelo recorrente encontra-se previsto na alínea c) do artigo 696.º do CPC: a decisão transitada em julgado pode ser objeto de revisão «quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida».
São dois os requisitos previstos na norma supra descrita:
(1) Que a parte não tivesse conhecimento do documento ou, sabendo da sua existência, não tenha podido socorrer-se dele;
(2) Que o documento, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente.
O primeiro requisito implica que o recorrente não tivesse podido fazer uso do documento no processo em que decaiu, ou porque o documento já existia mas a parte não tinha conhecimento dele, ou porque, embora sabendo da existência dele, não teve possibilidade de o obter, ou ainda, porque o documento só se formou posteriormente à data do limite cronológico para a apresentação desses documentos no processo em que foi proferida a decisão revidenda. Como sublinha João Espírito Santo[3], admitir um documento com formação posterior ao momento até ao qual a parte poderia tê-lo apresentado «não parece contrário ao espírito do preceito, tanto mais que essa constitui a situação de mais flagrante impossibilidade de o haver junto no processo em que foi proferida a decisão a rever. Trata-se, pois, neste caso de um documento objetivamente superveniente».
A propósito do primeiro requisito acima indicado, Alberto dos Reis, ob. cit., p. 354, assinala que se a parte empregou todos os esforços que estavam ao seu alcance para obter o documento e não conseguiu o seu desiderato, verifica-se a impossibilidade que justifica a revisão e que se o documento estiver em poder da parte contrária ou em poder de terceiro, o interessado deve socorrer-se dos meios facultados, respetivamente, pelos artigos 552.º e 554.º (atualmente, artigos 429.º e 432.º, respetivamente, ambos do CPC) mas se não lançou mãos deles, sibi imputet, não tem direito à revisão.
Quanto ao segundo requisito, Abrantes Geraldes[4] explica que o documento a que se alude na alínea c) deve revelar-se crucial para modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente e cita um acórdão do STJ de 11.09.2007, processo 07A1332[5], de acordo com o qual não preenche este fundamento de revisão «a apresentação de documentos que apenas em conjugação com outros elementos de prova produzidos ou a produzir em juízo, poderiam modificar a decisão transitada em julgado e que, além disso, poderiam ter sido obtidos na pendência da ação de que emergiu a sentença revidenda».
Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, ob. cit., p. 226, sustentam que «o documento tem de fazer prova de um facto inconciliável com a decisão a rever».
Alberto dos Reis, ob. cit., pp. 356-357, diz-nos que «o documento há-se ser tal que, por si só, tenha a força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença; quer dizer, o documento deve impor um estado de facto diverso daquele em que a sentença assentou» (itálicos nossos).
João Espírito Santo, ob. cit., p. 79, defende que o preceito em causa exige que o documento altere a situação fática de modo a poder modificar-se a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.
No sumário do acórdão do STJ de 20.03.2014, supra citado, sintetizam-se, desta forma, os requisitos de revisão de sentença, em causa nos presentes autos: «no caso da revisão se fundar em documento superveniente – alínea c) do artigo 771.º do CPC –, o documento terá de preencher condicionalismos de ordem processual (novidade e pré-alegação) e substancial (suficiência). O requisito da novidade significa que o documento é novo, no sentido de que não foi apresentado no processo onde se emitiu a sentença a rever, porque ainda não existia, ou porque, existindo, a parte não pôde socorrer-se dele, nomeadamente por dele não ter conhecimento. O requisito da pré-alegação impõe que a factualidade que o documento visa provar já haja sido suporte da ação ou defesa naquele processo. O requisito da suficiência exige que o documento implique, por si só, uma modificação da sentença, em sentido mais favorável à parte vencida.
Retornando agora ao caso sub judice, está em causa a condenação do recorrente no pagamento à autora/recorrida da quantia de € 15.000,00 a qual corresponde a uma parcela do sinal e do preço fixado pela aquisição, pelo primeiro, da fração autónoma melhor identificada nos autos.
Na ação, o ora recorrente, ali réu, invocou o pagamento da totalidade do preço devido pela aquisição do imóvel, o que incluía, portanto, a tranche de € 15.000,00, mas em momento algum da sua contestação fez qualquer alusão quer à celebração de um contrato de crédito pessoal outorgado com o Banco (…), SA com vista à obtenção de liquidez para pagar o valor em causa no presente recurso – que agora invoca –, quer ao cheque que agora vem juntar aos autos (e também não os referiu quando prestou declarações de parte). Ademais, sendo o próprio recorrente que agora alega «apesar de ter a certeza que tinha celebrado um contrato de crédito pessoal com o Banco (…), SA, para pagamento desse valor (15.000,00), não tinha a certeza, tendo em conta o tempo passado (25/11/2004), se tal documento ainda existia (…)», confessando assim que se lembrava de ter celebrado um contrato de crédito pessoal com o Banco (…) com vista à obtenção de meios para pagar aquela tranche do preço e que «se esforçou no sentido de apresentar esse documento ainda no prazo da contestação do processo n.º 109/18.4T8BNV, ou pelo menos fazê-lo até à data da sentença» (cfr. artigos 45.º e 48.º das alegações do presente recurso de revisão), insólito se nos afigura o facto de, na ação, em momento algum ter o recorrente recorrido ao mecanismo previsto no artigo 432.º do CPC, isto é, que tivesse requerido ao tribunal a notificação daquele Banco para entregar o(s) pertinente(s) documento(s) no tribunal, com vista à prova da concessão de crédito com vista ao pagamento do valor que foi condenado a pagar, a título de parte do sinal e de preço (para além de, como dissemos, nunca ter feito qualquer alusão quer ao contrato de crédito pessoal quer ao cheque). Não se compreende, pois, por que razão o ora recorrente não solicitou ao tribunal a notificação do Banco para apresentar os pertinentes documentos tanto mais que aquele também alega, nesta sede, que os pagamentos que efetuou à autora estavam sustentados em documentos bancários cuja obtenção pelo recorrente careciam da colaboração da Banca, em vez das dificuldades encontradas» (cfr. artigo 28.º das alegações de recurso).
Finalmente, dir-se-á que o documento ora junto – cheque n.º (…) –, por si só, não permite alterar a decisão de facto do tribunal. Com efeito, trata-se de um cheque da sociedade (…), Lda. e não do recorrente – e este alega que foi ele que celebrou um contrato de crédito pessoal com o Banco BPI para pagar a tranche de € 15.000,00 –, de um cheque que foi emitido ao portador, e não à ordem da sociedade vendedora, e dele consta um valor superior àquele cujo pagamento foi reclamado nos autos principais. Por estas razões, o documento em causa é, para além do mais, manifestamente insuficiente para, por si só, alterar a decisão de facto quanto ao facto não provado n.º 7, a saber, «todos os montantes devidos pelo 2.º Réu, no âmbito do contrato-promessa, foram pagos, incluindo aqui os € 15.000,00».
Por todo o exposto, julgamos não estarem verificados os requisitos de revisão de sentença previstos no artigo 696.º, alínea c), do CPC, improcedendo assim o fundamento invocado para a revisão do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 21 de maio de 2020.

Sumário: (…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso.
Custas de parte a cargo do recorrente.
Notifique.

Évora, 23 de setembro de 2021,
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato


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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume VI, 3.ª Edição, 1953, Reimpressão, pp. 336-337.
[2] Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p.223.
[3] Documento e Recurso Cível, 2011, 2.º Edição, Almedina, p. 80.
[4] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, p. 499.
[5] Publicado em www.dgsi.pt.