Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
430/20.1GBSSB.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 09/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Sendo as conclusões que conformam e delimitam o objecto do recurso e devendo ser, obrigatoriamente, apresentadas por escrito, autorizar a realização de audiência de julgamento no Tribunal da Relação apenas para as reproduzir é permitir a prática de um acto inútil.

2 – Essa realização só se justifica se houver um intuito probatório claramente definido e aceitável face às normas recursivas e em função do caso concreto.

(sumário elaborado pelo signatário da decisão)
Decisão Texto Integral:


Decisão Sumária parcial

A – Do que vem requerido pelo recorrente

De facto tem razão o Exmº Procurador-Geral Adjunto ao referir que o recorrente não é claro no seu requerimento para um novo julgamento.

Apesar de o fazer por invocação do artigo 411º, nº 5 do Código de Processo Penal, quer-nos parecer que a sua pretensão será outra. Abordaremos ambas as hipóteses.

Certo é que o recorrente pretende ver tratados no seu recurso estes três pontos: 1) – As Nulidades insanáveis que invoca; 2) – a Matéria erradamente dada como provada; e 3) - a Alteração da qualificação jurídica dos factos provados. Essa é matéria a abordar em acórdão que conheça do objecto do recurso!

Acertadamente o Exmº PGA acrescenta igualmente – asserção com a qual estamos de acordo - que “Perante estas dúvidas e afigurando-se-nos que o “pedido” prevalecente – e que se nos afigura corresponder melhor à intenção do recorrente - é o que decorre da parte final da motivação (2º julgamento)”.

Porque, convenhamos, parece o recorrente estabelecer paridade entre os conceitos de “segundo julgamento” e “audiência de julgamento em 2ª instância”.

O primeiro conceito é uma realidade processual que advém sempre da declaração de existência de um vício de facto, seja por vício de conhecimento oficioso à luz da previsão do artigo 410º, nº 2 do C.P.P. (que o recorrente invoca), seja por invocação de erros de julgamento à luz do disposto no artigo 412º, ns. 3 e 4 do mesmo diploma (que o recorrente não invoca por não ter impugnado especificadamente a matéria de facto).

Implica, naturalmente, o reenvio dos autos – por se constatar a existência de vício de facto – para que a primeira instância colmate tal ou tais vícios através do “retomar” do julgamento parcial ou total dos factos. Aquilo que, habitualmente (e nem sempre correctamente, se se tratar de reenvio parcial) se costuma designar por “segundo julgamento” ou “novo julgamento”.

O segundo conceito, a “audiência de julgamento em 2ª instância”, advém como possibilidade de “complementar” a prova em segunda instância em casos contados e por requerimento para realização de “audiência” no tribunal da Relação onde decorre o recurso. Normalmente limita-se a ser uma audiência onde as partes repetem – porque só isso podem fazer – aquilo que já consta das suas conclusões de recurso escritas, pois que são estas que delimitam o objecto de recurso. Uma inutilidade, portanto, que se vai deferindo a coberto de uma leitura literal e muito limitada do artigo 411º, nº 5 do Código de Processo Penal.

Ora, que requereu o recorrente?

Nos seguintes pontos da sua motivação requer o recorrente:

56. Pelo se conclui neste ponto, requerendo-se a alteração da qualificação jurídica constante da acusação para o tipo criminal de ofensas à integridade física, sem embargo de discussão em julgamento, cuja repetição se impõe, com vista à prova do uso da força em sua legitima defesa.

57. Assim, nos termos do nº 5 do artigo 411º do CPP, o recorrente requer a realização de audiência, tendo em vista debater os pontos enunciados acima:

Claramente o recorrente pede no ponto 56 a repetição do julgamento em primeira instância para prova dos factos da legítima defesa, enquanto no ponto 57 parece pedir a realização de uma audiência na Relação onde, evidentemente, não pode vir discutir – nem obter a prova – de factos novos.

Mas a conjunção subordinativa “Assim” que inicia o ponto 57 das motivações distintamente faz depender esta segunda proposição da primeira, parecendo que o recorrente se está a referir à “repetição do julgamento” que solicita no ponto 56.

Esta nossa leitura vem a ser confirmada pelo pedido formulado após conclusões onde não se fala em “audiência de julgamento em segunda instância” mas sim em reenvio “para repetição de julgamento” e em “repetição do julgamento”, como dali consta:

«Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que a julgue nula, por preterição das regras da notificação, que impossibilitou o conhecimento do Arguido da acusação que contra si foi proferida e de exercer os direitos constitucionais, consagrados no artº 32º da CRP, de defesa e de estar presente em julgamento, não lhe bastando a defensora oficiosa que lhe foi nomeada, que também não contatou o Arguido, pelo menos, para a morada de residência constante dos autos, a mesma na qual a PSP o notificou da sentença.

Caso assim não seja entendido, deverá ser reenviado o processo para repetição de julgamento,

Bem como alterada a qualificação jurídica constante da acusação para o tipo criminal de ofensas à integridade física, com repetição do julgamento

Não há, portanto, pedido de realização de audiência na Relação.


*

B – Do sentido útil do nº 5 do artigo 411º do C.P.P.

2 - O sentido literal não pode ser prevalecente se não houver substância na previsão

Entendemos, pois que o recorrente não pede uma “audiência de julgamento” em 2ª instância.

Mas mesmo que o requeresse estivesse a requerer a audiência de julgamento no Tribunal da Relação não bastaria argumentar com a literalidade do nº 5 do artigo 411º do C.P.P., sabendo nós que nos pelamos por literalidades que escondam a substância. A realização de uma audiência em segunda instância é hoje, naturalmente, uma inutilidade na maior parte dos casos em que é pedida.

Não há aqui qualquer criação de obstáculo ao recurso. Não há aqui o colocar em causa o recurso interposto pelo arguido. Ele existe e foi aceite! O que está em causa também não pode ser o âmbito do recurso, o seu objecto, livremente definido pelo recorrente nas suas conclusões e aceite por este tribunal. O arguido interpôs recurso e esse está por conhecer com o âmbito que o arguido lhe quis dar no uso do princípio da disponibilidade do recurso.

Nem se entendem invocações constitucionais porque aquilo de que aqui se trata é saber se o legislador ordinário – e jurisprudência subsequente, que aqui tem peso restritivo – consagrou um sistema congruente de recurso e qual é a melhor forma de dar sentido a normas que parecem desconexas e conduzir a resultados interpretativos ridículos. Não há, portanto, qualquer violação de normas e princípios de natureza constitucional.

No que estamos de acordo com os colegas Ana Brito e Proença da Costa no não entendermos que fazem argumentos de cariz constitucional num tema que é de direito infra-constitucional, de tal forma que o tema não merece maior tratamento do que este pois que bem tratado nos arestos desta Relação de nós conhecidos [referimo-nos aos acórdãos desta Relação de 05- 03-2013 (proc. 34/09.GCBJA.E1, rel. Proença da Costa), 17-09-2013 (proc. 380/09.2JACBR-B.E2, rel. Ana Brito) e 21-12-2017 (proc. 94/15.4T9EVR, rel. Proença da Costa)].

Aliás, o recente acórdão nº 613/2019 do Tribunal Constitucional relatado pelo Cons. Teles Pereira, lavrado na sequência de decisão do Exmº Desemb. Proença da Costa, confirma tal ideia

De outra banda o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos aprovado pela Lei n.º 29/78, de 12 de Junho ao reconhecer no seu artigo 14.º nº 1 que «(…) Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das contestações sobre os seus direitos e obrigações de carácter civil» vem a estatuir no seu nº 5 uma relevante concretização, a de que «Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei

E o artigo 2º, nº 1 do Protocolo nº. 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem preceituou - quando consagrou o Direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal - que «Qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito a fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei».

E estes textos vinculam em absoluto o Estado português que não formalizou qualquer reserva a qualquer dos textos convencionais. E nenhum deles exige uma audiência em certa forma.

Ora, se o recurso foi admitido e está para conhecer não se lobriga possível violação de normas de natureza convencional ou constitucional. Em breve, nem a Constituição Portuguesa nem o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos exigem a realização de audiência em instância de recurso. Quanto à C.E.D.H. e jurisprudência a ela atinente nos debruçaremos adiante.

Não nos podemos limitar à mera interpretação literal do artigo 411º, nº 5 do C.P.P., esquecendo as interpretações histórica, sistemática e lógica. E, principalmente, não podemos desprezar a teleologia das normas.

Para fazermos uma interpretação histórica, sistemática e teleológica é necessário ter uma visão do sistema de recursos ao longo dos tempos, o que também implica ter a noção do movimento conservador (no pior sentido do termo) do legislador processual penal português na direcção da restrição do recurso à forma escrita e do posicionamento mais garantístico do T.E.D.H., relativamente a esta matéria, claramente pressionante da “ordem jurídica” portuguesa.


*

2 - O sonho processual

Sabemos, porque lemos, que o legislador identificado do C.P.P., o Prof. Figueiredo Dias, tinha um sonho! E revelou-o, pelo menos, no escrito “Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português”, incluído na Revista Portuguesa de Ciência Criminal (Ano 18, nº 2 e 3 – Abril - Setembro 2008, pag. 380/382), assim se expressando:

“… a fase processual que, desde sempre, foi a que me causou mais dúvidas, perplexidades e insatisfações: a dos recursos. Se é verdade que a sua regulamentação, na versão originária do Código de Processo Penal, correspondeu ao modelo que eu imaginava já há algum tempo ser o preferível – (…) – também é verdade que logo aquela versão, tendo acabado por contar embora com a minha concordância de princípio, foi a que mais se afastou das propostas que na Comissão de Reforma apresentei. Assisti depois à demolição, parcial mas em pontos importantes, do edifício legal, sobretudo por obra da “revisão de 1998”, a que se ligou uma jurisprudência oscilante e por vezes contraditória, que contribuiu para eliminar os últimos resquícios da racionalidade, linearidade e simplicidade que haviam norteado o modelo inscrito na versão originária do Código de Processo Penal. A revisão de 2007 acentuou a “desorganização organizada” em que acabou por descambar o sistema dos recursos e representou uma oportunidade perdida de reformar ou sequer discutir seriamente as possibilidades de autêntica reforma de que esta matéria continua, a meus olhos, carecida. (…)

A revisão introduziu, por outro lado, a regra de que o recurso é julgado pela conferência e só vai à audiência quando expressamente requerido pelo recorrente (arts. 411.°-5 e 419.°-3, al. c»). Sou o primeiro a reconhecer que a regra contrária, que o novo Código de Processo Penal, na sua versão originária, havia introduzido - contra, é certo, uma lamentável tradição nacional – no nosso direito processual penal não pôde ser cumprida, nos propósitos que a animavam, pela praxis judiciária e revelou-se incapaz de operar a indispensável mudança cultural que pressupunha. Mas isso seria só motivo, penso eu, para que – aceites as razões substanciais fundamentais que obviamente lhe presidiam – uma revisão legislativa persistisse na nova regra, acrescentando-lhe critérios impositivos concretizadores que conduzissem à sua aplicação efetiva e extraindo dela, assim, as vantagens que obviamente possui. Preferiu-se o caminho fácil de obedecer passivamente a interesses corporativos que conferem ao nosso sistema de recurso um tom arqui-conservador e – o que é bem pior – manifestamente contrário a princípios processuais penais básicos, inclusivamente, alguns, pertencentes a nada menos que a Constituição processual penal. De tal modo que também aqui será pelo futuro que teremos de esperar.»

Como se vê o sonho converteu-se em pesadelo.

De semelhantes queixas se fizeram eco outros processualistas de nomeada. Veja-se no mesmo número da identificada Revista o Cons. António Henriques Gaspar in “Processo penal: reforma ou revisão; as rupturas silenciosas e os fundamentos (aparentes) da descontinuidade”:

- pag. 358 – “7. A aparência formalmente pontual de alterações avulsas em corpos normativos que pressupõem coerências internas pode, não raro, ocultar consequências sistemáticas que se manifestam sem que tenham sido expressamente desejadas pelo legislador ”;

- pag. 359 – “8. O regime dos recursos foi substancialmente modificado (…)

- pag. 365/366 - «Por fim, o modelo de julgamento do recurso, em que a audiência passa de regra a excepção, pode ser considerado como um retrocesso na modernidade dos sistemas comparados, e parece resultar apenas de uma cedência a razões meramente de conveniência de alguns intervenientes processuais.

O modelo de audiência nos recursos, que estava afastado das tradições nacionais, identificadas com um procedimento inteiramente escrito, nunca foi, há que reconhecer, bem compreendido e aceite.

Por questões de cultura judiciária, e, por consequência, por motivos não racionalizáveis de rejeição.

E, no entanto, a audiência para discussão do recurso é, por regra, muito comum no modo de julgamento dos tribunais superiores, e apresenta vantagens, mesmo funcionais, que deveriam ter sido melhor consideradas.

Tem a vantagem, como é reconhecido, de concretização do princípio da publicidade num elevado grau.

Mas, mais do que isso, permite uma melhor fluidez na abordagem efetiva e consistente das questões que constituem, ou que têm relevância para constituir, o objecto do recurso, prevenindo e evitando os desvios de direcção que frequentemente se encontram na construção das peças escritas da motivação.

A audiência permite a intervenção dos juízes, colocando questões aos recorrentes e, pelo sentido das respostas, centrar melhor o objecto do recurso nos fundamentos que merecem ser discutidos, confrontar os recorrentes com a responsabilidade que lhes impõe o rigor processual para eliminar os motivos e fundamentos sem consistência e irrelevantes.

E permite também, há que dizer, reforçar materialmente a colegialidade, pela exposição dos fundamentos e dos motivos directamente perante todos os juízes que têm intervenção no julgamento do recurso.

O rigor e a eficácia do modelo pressupunham, porém, exigências e condições que nunca foram aceites pela advocacia, pois, para funcionar eficazmente, o acesso dos advogados ao exercício nos tribunais de recurso não poderia ser geral, mas limitado por condições específicas de agregação que teriam de ser definidas pela Ordem dos Advogados.

E pressupunha também que a falta à audiência, salvo uma possibilidade de adiamento por motivos devidamente justificados, determinasse a rejeição do recurso.

O legislador, no entanto, seguiu o caminho (aparente ou momentaneamente) mais fácil. E com isso se perdeu uma marca de modernidade.

É que, nem se guardou sequer no processo penal a regra prevista para os recursos cíveis após a última revisão (artigo 727º-A do Código de Processo Civil), que concede ao juiz a faculdade de determinar a realização de audiência para discussão e julgamento do recurso.»

Mas constatamos, todos constatamos, é certo termos hoje um sistema de recursos que regrediu na forma dos procedimentos, perdendo as características da oralidade e assumindo-se como um recurso onde a perda da “modernidade” implicou uma regressão à forma estritamente escrita.

Daí que a audiência seja hoje a excepção e não a regra. E porquê? Por rejeição cultural e de classes profissionais e, também porque o legislador optou por não corrigir o caminho que conduzia ao sonho acusatório via oralidade, uma audiência à maneira anglo-saxónica onde os debates poderiam conduzir à própria alteração das motivações e conclusões escritas e escolheu regredir para a forma escrita.

E assim, regressando à moda antiga, escrita e rígida, era possível acabar com a audiência oral? Não! Cairia o Carmo e a Trindade por essa Europa fora se tal ocorresse.

Além de que mantém um possível conteúdo útil para casos contados de produção probatória!


*

3 - A forma do recurso

Mais, se a lei determina de forma clara que o recurso deve ser apresentado por escrito e ele foi apresentado – e aceite - por escrito, não se entrevê como a proibição de repetição daquilo que está escrito mas agora na forma oral briga com o conhecimento da matéria do recurso. Com ou sem audiência o tribunal conhecerá – com base no escrito nas motivações – do recurso. Nem pode alterar tal objecto. Nem em audiência!

Nesta discussão, parece ser sempre esquecida uma norma, o artigo 412.º, nº 1 que assegura de forma clara que “A motivação (do recurso) enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Assim como parece esquecida toda a jurisprudência constitucional e processual penal sobre o tema e a delimitação do recurso pelas motivações e conclusões. São estas – com as relações internas entre motivações e conclusões que se conhecem e aqui se não abordarão porque para tanto seria necessária uma tese – que delimitam, conformam, demarcam, circunscrevem as questões a conhecer pelo tribunal (e também, consoante a natureza das exigências em cada caso concreto, restringem, limitam ou reduzem o direito ao recurso).

Em lado algum o Código de Processo Penal determina que o recurso pode ser apresentado, conformado, delimitado por motivações ou conclusões orais.

Mais – de extrema relevância e que mais estaria de acordo com os sonhos processuais – em local algum o diploma sequer permite que as motivações e conclusões escritas possam ser alteradas, acrescentadas ou diminuídas oralmente em audiência. Inclusive pelo mandatário do recorrente. Porque esse seria o “ovo de Colombo” das alterações jurídico-processuais penais, a possibilidade de o advogado do arguido - em função até da participação activa dos juízes do colectivo – alterar o objecto do recurso em certos limites ou, até, pedir a renovação da prova em função do ali debatido. Aí sim, se justificaria a existência de uma audiência para além dos dois ou três casos que hoje a justificam, em nosso modesto entender.

Mas nem o legislador se atreveu – apesar dos sonhos e dos anos passados em reformas processuais incongruentes e contraditórias – a propor essa e outras simples alterações processuais ao longo de 30 anos de alterações legislativas.

O recurso assenta em exclusivo em peças escritas. Recordemos apenas as normas do C.P.P. aplicáveis aos recursos, naquilo que aqui interessa.


Artigo 414.º

Admissão do recurso


2 - O recurso não é admitido (…) quando faltar a motivação ou, faltando as conclusões, quando o recorrente não as apresente em 10 dias após ser convidado a fazê-lo.

Artigo 417.º

Exame preliminar


3 - Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n. 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada. Se a motivação do recurso não contiver as conclusões e não tiver sido formulado o convite a que se refere o n.º 2 do artigo 414.º, o relator convida o recorrente a apresentá-las em 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado.

4 - O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.


Artigo 420.º

Rejeição do recurso


1 - O recurso é rejeitado sempre que: c) O recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afectar a totalidade do recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 417.º

Neste instituto e nestas exigências qual é a diferença de monta entre o C.P.P. e um qualquer clássico código administrativo? Nenhuma! Impera o escrito e reina o formal! Não há lugar à oralidade! Não há lugar à adaptação e alteração em função da substância. Não há espírito anglo-saxónico de adaptação aos direitos. Cumpre-se só Portugal, com as suas escolas de pensamento rígido e formal. Tudo tem que estar escrito, caso contrário há um vício de forma. Marcello Caetano não faria um C.P.P. muito diferente neste particular ponto.

E assim sendo, como é, para que servem as intervenções orais do advogado do arguido e do M.P. em audiência? Para falar. E para falar sobre quê? Sobre o que se escreveu nas motivações e conclusões! É importante? Será! Para quem? Incógnita, mas não parece que seja o arguido. Altera alguma coisa? Não!

Passemos ao abstracto, que é como quem diz, àquilo que com frequência se pretende com o requerimento da audiência. Aqui fazemos fortemente notar que não conhecemos o Ilustre causídico e, por isso, o que vai escrito de seguida nada tem a ver com a sua pessoa nem com a sua postura nestes autos.

Pretende-se com frequência evitar que o Ministério Público deixe por escrito nos autos a sua resposta ao recurso. Alegando apenas oralmente em audiência o M.P. não deixa rasto da sua possível oposição ao recurso. Inteligente a pretensão. Veja-se o disposto no nº 2 do artigo 416º do C.P.P.!

Não se esconde a inutilidade de uma audiência que deveria ter outro fito? Não! Mea culpa!


*

4 - A real pretensão dos processualistas portugueses

Faz isto sentido na contraposição com as preocupações dos processualistas nacionais e com a história dos recursos nacionais em processo penal? Obviamente não vamos escrever uma tese e limitar-nos-emos a passar em revista algumas (poucas) das ditas preocupações.

Se o fizermos reconheceremos que o cerne da insatisfação se encontra no recurso de facto. Na análise dos factos apurados em tribunal de comarca e na possibilidade da sua reapreciação no tribunal da Relação. É o célebre segundo grau de jurisdição em matéria de facto que, para além dos consabidos casos de revista alargada contidos no artigo 410º, nº 2 do C.P.P. se vê agora substancialmente alargado, mas regulamentado, com as alterações sucessivamente introduzidas pelas Leis n.º 59/98, de 25 de Agosto, n.º 48/2007, de 29/08 e n.º 27/2015, de 14/04, com esclarecimento jurisprudencial do AUJ nº 3/2012.

Assim, lembrando que no Código de Processo Penal de 1929, o recurso sobre matéria de facto só estava previsto para os processos correccionais e de polícia correccional (afastando-o nas querelas, as mais relevantes) e que no início de vigência do actual C.P.P. passou a ser possível interpor recurso de facto nos processos comuns com intervenção de tribunal singular e no processo sumário, é bom recordarmos a simplicidade da letra do artigo 412º do actual C.P.P. à data do seu início de vigência (Dec-Lei nº 78/87, de 17-02) e ter em mente a complexidade actual do mesmo normativo.

Não é possível negar, portanto, a grande evolução do recurso em matéria de facto, pelo menos na sua ideia directora. Não obstante, recordemos as recentes preocupações sobre o tema, iniciando pelo texto já citado do Cons. António Henriques Gaspar in “Processo penal: reforma ou revisão; as rupturas silenciosas e os fundamentos (aparentes) da descontinuidade” (pags. 360/362 da identificada R.P.C.C.), justificando-se a longa citação pelo acerto nos múltiplos aspectos abordados que nos dão uma imagem certeira para a interpretação histórica, sistemática e cultural das profissões judiciais:

«A opção parece moldada ou determinada pelas exigências muito marcadas de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. O segundo grau de jurisdição em matéria de facto constitui, com efeito, uma exigência do processo penal equitativo, e o correspondente direito está inscrito como direito processual fundamental no artigo 2.°, n. 1, do Protocolo 7. à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 14. do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – direito à reapreciação da causa por uma instância superior, tanto em relação à declaração de culpabilidade como à condenação.

É, porém, evidente, pelas experiências comparadas, que a complexidade dos problemas colocados pela efectividade de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto não tem permitido construir modelos ou inventar soluções de reapreciação que constituam uma resposta adequada às imposições do direito.

A construção de um modelo de reapreciação da matéria de facto encontra, com efeito, diversas dificuldades, seja na complexidade da organização e ordenação das instâncias de reapreciação, seja nos riscos inerentes à volatilidade e fragmentação de alguma prova na passagem de instância, acrescida pelo maior distanciamento do tempo.

Por isso, a jurisprudência, tanto do Tribunal Constitucional como de instâncias internacionais (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) tem produzido uma interpretação que reflecte as dificuldades operativas, ao deixar a definição do sistema de recursos, em medida relevante, à regulação do legislador nacional.

Tem-se entendido, neste aspecto, que os Estados dispõem de uma ampla margem de apreciação para consagrar as modalidades do direito ao recurso, com a possibilidade de limitar o exercício, desde que a limitação vise um objectivo legítimo e não atinja a essência do direito. (…)

Verdadeiramente, no rigor e na plenitude do desenho, o recurso em matéria de facto exigiria a reapreciação da matéria de facto através de nova administração das provas relativamente aos pontos de factos que o recorrente considerasse, com adequada e relevante motivação, incorrectamente julgados.

E nesse sentido se encaminhava, embora em termos limitados, o regime sobre a renovação da prova, vindo já da redacção inicial do Código de Processo Penal/87, que admitia a renovação da prova na 2ª instância nos casos dos vícios do artigo 410.°, n. 2, do C.P.P..

A limitação dos pressupostos de renovação da prova aos casos dos chamados vícios da matéria de facto teria exigido, porém, para ter mais do que utilidade mínima, uma outra construção da jurisprudência, que era muito restritiva, relativamente à concepção sobre o conteúdo das noções, especialmente a noção de “erro notório na apreciação da prova”.

Na revisão de 1988, o legislador ensaiou um modo de superação da construção deficitária do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (reapreciação da culpabilidade) através do uso das gravações das audiências como suporte para a reapreciação pelo tribunal superior.

A intenção não foi, pode hoje dizer-se, suficientemente realizada.

A começar pelas dificuldades de compreensão do sistema que se foram manifestando pelo lado dos recorrentes que, frequentemente, não situavam o objecto de reapreciação nos limites pensados pelo legislador na estrutura e função do recurso, optando por impugnações genéricas da matéria de facto, sem indicação dos pontos de facto que consideravam incorrectamente julgados e sem a indicação, instrumentalmente exigida, das provas que determinariam decisão diversa.

Mas também, há que reconhecer, por dificuldades de compreensão dos tribunais de recurso que, muitas vezes, e em contrário da disciplina processual, se refugiavam na afirmação dos princípios da oralidade e da imediação para se resguardarem da reapreciação da matéria de facto nos termos e dentro dos condicionalismos de suporte material previstos no código de processo. (…)

No rigor das coisas, vista a questão sob a perspectiva da natureza do recurso como remédio contra erros de julgamento (erros, bem entendido, com o sentido próprio da relatividade intraprocessual), e não como rejulgamento ou novo julgamento integral do caso sub judice, o modelo adequado – dir-se-ia teoricamente adequado – para reapreciação da matéria de facto coincidiria com a renovação da prova nos termos em que está prevista no código de processo penal.

Todavia, por inércia, pelo peso dos modelos incrustados na cultura, ou por dúvidas sobre a eficácia da produção de prova em segunda mão, são escassos os casos em que a prova sobre pontos concretos é renovada na segunda instância.

O recurso em matéria de facto não tem revelado, pois, razoável efectividade, salvaguardando-se apenas, formal ou academicamente, uma certa compreensão sobre as exigências convencionais do duplo grau, e aquietando os interessados (ou a advocacia) apesar de tudo com o direito de recorrer também da decisão sobre os factos. (…)»

Destarte se a preocupação é aquietar os interessados, nomeadamente a advocacia, então sim, faz todo o sentido admitir a audiência para falar do inútil, para nos aquietarmos todos, falando embora com camisa-de-forças.

Se a ideia é, ao invés, preocuparmo-nos com o recurso de facto e atribuir um conteúdo útil à audiência de julgamento, não colaboramos no desperdício inútil de meios que se destina a atrair os olhos para as quiméricas vestes do rei. Enquanto nos sentirmos seguidores fieis da aparente letra da lei, esqueceremos o essencial.

O tema não é novo e tem a grande vantagem de estar documentada a insatisfação quanto ao sistema de recursos ao longo do tempo e das constantes alterações legislativas, à medida que a jurisprudência tem reduzido e esfrangalhado intenções legislativas que, por seu turno, não atendem às dificuldades das Relações nos recursos de facto.

Já o Cons. Simas Santos em 1997 (Recursos em Processo Penal, in “O Processo Penal em Revisão – Comunicações”, Universidade Autónoma de Lisboa - 21 de Novembro de 1997, pags. 77-78) a propósito da revisão do Código de Processo Penal efectuada pelo Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro, assumindo que “assegurar um recurso efectivo em matéria de facto” era um dos objectivos da reforma, referia que a «manutenção da oralidade nos recursos, na crença de que os poderes de iniciativa do tribunal e os princípios do acusatório e do contraditório só podem razoavelmente efectivar-se, nesta fase, em audiência, e também a manutenção da autonomia entre motivação e alegações». Mas logo acrescentava que uma das mais recorrentes críticas eram as «consequências da aplicação da regra da oralidade: uma prática de audiência, com poucas ou nenhumas surpresas, e em que o tribunal superior se limita a sufragar o projecto de acórdão trazido pelo relator».

E adiantava em notas de rodapé (19 e 21) que «efectivamente, nas Relações, nenhumas ou poucas surpresas podem surgir na audiência, face à motivação que baliza o objecto do recurso e o essencial das suas razões, à resposta e ao parecer escrito» e (21) «em relação aos assistentes e arguidos, a possibilidade de surgirem surpresas em audiência é remota, o mesmo não acontecendo com o Ministério Público, que é, no Supremo Tribunal de Justiça, representado por magistrado diverso daquele que apresentou a motivação ou a resposta”.

Mesmo num momento positivo das alterações favoráveis à oralidade, Costa Pimenta (na mesma publicação mas em “Recursos em Matéria de Facto”, pag. 177) claramente entendia que «o sistema processual penal português assenta no dogma do único grau de jurisdição. Na verdade, em qualquer caso, a Lei não se esforça para que haja recurso da matéria de facto. Até parece querer que não haja tal recurso» a propósito de um aspecto particular do regime (a documentação), hoje já ultrapassado.

Onze anos depois já a perspectiva do Cons. Simas Santos era mais pessimista (“Recursos”, in “Jornadas sobre a revisão do Código de Processo Penal”, Revista do CEJ 1º Semestre 2008, número 9, especial, pag. 356) quando afirmava que “quer a versão originária do Código de Processo Penal quer a revisão de 1998 fizeram uma forte profissão de fé no princípio da oralidade na estrutura dos recursos, que agora é marginalizada, em nome de uma prática que se institucionalizou, com responsabilidade de todos os intervenientes que não souberam ou não quiseram integrar de forma viva tal princípio”.

E por isso, concluímos nós, o legislador tem visto a oralidade, e nela o acusatório, como os elementos determinantes de uma mudança de paradigma, num movimento que iniciado na versão originária do diploma no final da década de 80 teve importante reforço em meados dos anos 90. De então para cá – de 1998 em diante - o movimento foi reverso e o processo voltou à tradição escrita e a audiência deixou de ser a regra para julgamento do recurso, não dando à oralidade o espaço que teria sido possível dar, obrigatoriamente com outros, mais realistas e ousados, contornos legislativos. Condicionada ou não, foi uma opção legislativa.

O que não é aceitável é acenar com a bandeira da oralidade para encenar actos inúteis que escondem o essencial, a inutilidade actual da audiência que não tem produção de prova, nem se destina a analisar prova produzida na Relação antes dessa audiência.

Isto sem esquecer que a apreciação da prova em segundo grau de jurisdição é o cerne da questão e o labor jurisprudencial sobre a renovação da prova – em substância nulo – foi o mínimo necessário à sua redução ao nada.

Esta é a real questão. Admitir a audiência para a prática de um acto oral repetitivo e inútil é esconder a realidade, o que aliás, está de acordo com os tempos e costumes.


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5 - A utilidade da audiência

Para que serve então a audiência actualmente? Para os que fazem interpretação literal do artigo 411º, nº 5 do C.P.P. e se limitam a pactuar com a aparência formal, a audiência pode continuar a ser o “parece bem” (para T.E.D.H. ver), a tábua contabilística, a manobra que impede a formalização escrita do contraditório no recurso, a aparência formal de um julgamento onde quem requer pode faltar de forma sistemática. Onde, em suma, não existem os mecanismos que permitiriam uma real e sonhada audiência e apenas resta um arremedo ridículo e inútil de audiência para reproduzir o que está escrito.

Para os que se não bastam e rejeitam - porque não são adeptos de Monsieur Montesquieu - ser la bouche de la loi, há que encontrar um conteúdo e um efeito útil e benéfico para a defesa hipotética do recorrente no teor dos artigos 411º, nº 5 e 430º do C.P.P.. Para isso serve o nº 1 do artigo 9º do CC.

E assim, a audiência serve dois propósitos imediatos, um expresso na lei de forma literal no nº 3 do artigo 430º do C.P.P., a renovação da prova, (“a renovação da prova realiza-se em audiência. Se a jurisprudência a inutilizou e o legislador a não potenciou suficientemente, essa é outra conversa.

E quando é que se justifica de forma teleologicamente fundada a realização de audiência para além do caso de renovação da prova? Quando houver necessidade de o arguido estar presente para prestar declarações ou simplesmente – com essas declarações – exercer o seu direito de defesa ou tiver sido – ou dever ser - produzida prova na Relação.

Foi o que ocorreu num caso que acabou por passar de forma muito discreta na quietude do nosso ambiente jurídico e que implicou mais uma condenação do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o caso Moreira Ferreira contra Portugal (nº 1), Queixa 19808/08, com acórdão de 05-07-2011 e uma nota discreta na página web da PGR. [1]

Nesse caso, com origem em processo-crime em Matosinhos, a Relação do Porto negou à arguida o direito a ser ouvida em audiência quando estava em causa a sua condenação e a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, para mais com uma decisão contrária à conclusão de uma perícia psiquiátrica, sem justificação bastante.

O aresto é claro nos parágrafos 32 a 35:

32. O Tribunal constata que, no direito português, o Tribunal da Relação tem competência para analisar tanto os factos como o direito. Nos termos do artigo 430º do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação só deverá proceder a um novo exame das provas (incluindo, se for o caso, a audição da arguida) se considerar :

a) que a decisão recorrida enferma de algum dos vícios previstos pelo artigo 410º, nº 2 do mesmo código, seja pela insuficiência dos factos que serviram de fundamento à condenação, seja por contradição insanável entre os fundamentos da decisão e a própria decisão, seja, por fim, algum erro flagrante na apreciação dos meios de prova; e

b) que esses vícios processuais podem ser corrigidos sem devolver o caso ao tribunal de primeira instância (nº 20 acima).

33. O Tribunal nota que, neste caso, o Tribunal da Relação foi chamado a pronunciar-se sobre várias questões relativas aos factos e à pessoa da requerente. Esta última levantava, nomeadamente e tal como havia já feito perante o tribunal de primeira instância, a questão de saber se a sua responsabilidade penal deveria ser considerada como diminuída, o que poderia ter tido influência importante na determinação da pena.

34. Para este Tribunal, trata-se de uma questão que o Tribunal da Relação não poderia decidir sem apreciar directamente o testemunho pessoal da requerente, tanto mais que a sentença do Tribunal de Matosinhos divergia da perícia psiquiátrica, sem contudo enunciar os motivos dessa divergência tal como exige o direito interno (nºs 7, 9 e 23 anteriores). A reapreciação desta matéria pelo Tribunal da Relação deveria, pois, ter incluído nova e integral audição da requerente (Ekbatani, pré-citado, ibidem). [2]

35. Estes elementos são suficientes para que o Tribunal conclua que, neste caso, teria sido necessária a audiência pública no tribunal de recurso. Portanto, houve violação do artigo 6 , nº 1 da Convenção.

O caso Moreira Ferreira contra Portugal nº 2 (Queixa 19867/12, com acórdão de 11-07- 2017), lavrado após a prolação do acórdão do STJ de 21-03-2012 que recusou a revisão do processo à arguida, é elucidativo de tema hoje em discussão sobre as medidas correctivas e as relações entre a C.E.D.H, o T.E.D.H. e as instâncias judiciais nacionais. No caso, o acórdão nº 1 continha uma cláusula individual de reabertura – cláusula Öcalan – no seu § 41 [“O Tribunal considera, desde logo, que, quando, como neste caso, uma pessoa foi condenada na sequência de um processo marcado pelo incumprimento das exigências do artigo 6º da Convenção, um novo processo ou a reabertura do processo a pedido do interessado representam, em princípio, um meio apropriado para reparar essa violação. A este respeito refere que o artigo 449º do Código de Processo Penal português permite a revisão da decisão a nível interno quando este Tribunal tenha constatado a violação dos direitos e liberdades fundamentais do interessado. Contudo, as medidas específicas de reparação razoável a adoptar por um Estado requerido em cumprimento das obrigações que lhe incumbem, nos termos da Convenção, dependem necessariamente das circunstâncias do caso e devem ser definidas à luz do acórdão proferido pelo Tribunal para o caso em apreço (Öcalan c. Turquia [GC], no 46221/99, nº 210, CEDH 2005-IV, e Panasenko c. Portugal, nº 10418/03, nº 78, de 22 de Julho de 2008). Neste caso, só está em causa a falta de audição da requerente pelo Tribunal da Relação.”]. [3] [4]

Regressando ao tema que nos ocupa, no caso Constantinescu v. Roménia com decisão a 27- 06-2000 (Queixa nº 28871/95) o T.E.D.H. desenvolveu uma jurisprudência clara mas dependente do concreto case law e do enquadramento legal do país em causa, designadamente do papel atribuído ao tribunal de recurso.

Assim:

- a audição do arguido (e não do seu advogado, dizemos nós) pode ser relevante quer a questão em discussão se situe em termos de facto ou de direito. Que, onde tenha existido uma audiência em 1ª instância, a ausência de uma audiência pode ser justificada ao nível do recurso, o que depende da específica configuração dos poderes do tribunal de recurso e da forma como os interesses do “apelante” foram apresentados e podem ser defendidos no tribunal de recurso.

- que, mesmo impondo-se a realização de uma audiência, o direito de aí ter “participação em pessoa”, de aí ser ouvido, não é garantido ao recorrente (§ 54).

- contudo o tribunal reitera (§ 55) que quando o tribunal de recurso é chamado a conhecer de facto e de direito e tem que emitir um juízo sobre a culpa ou inocência do acusado, não o pode fazer em sede de fair trial , sem a prova “dada em pessoa” pelo acusado caso este negue a prática dos factos imputados (§ 53).

E aqui está a explicação para que a audiência de julgamento não possa desaparecer no recurso para o Tribunal da Relação, para além da “clássica” renovação da prova. Porque pode ter um conteúdo útil no âmbito da produção da prova na instância de recurso.

Um outro caso de possível audiência necessária pode ser o de arguido absolvido em 1ª instância e condenado na Relação, onde a existência do AUJ nº 4/2016 (“Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal”) e a impossibilidade de recurso para o STJ podem implicar a inexistência de possibilidade de defesa para o arguido quanto à culpa e à pena.

Ou seja, é o próprio STJ neste aresto de fixação de jurisprudência a abrir a porta à produção de prova nas Relações e a quase consagrar – de forma implícita - a necessidade de audição do arguido em audiência nas Relações antes da sua condenação.

E assim sendo, que sentido faz dar-lhe um conteúdo inútil – a verbalização pelo mandatário do já escrito, determinante e imodificável - enquanto se nega o sentido útil? É que enquanto discutimos o inútil esquecemos o essencial.


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C – Dispositivo

Estas são as razões que aduzimos e nos levam a sustentar a decisão no seguinte sentido:

I - Caso se entenda que o recorrente pretende a realização de audiência de julgamento nesta Relação vai a mesma indeferida;

II – Mantendo-se o recurso com o seu objecto, tal como definido em A), vão os autos ao Ministério Público para, querendo, emissão de parecer.

Após e havendo tal emissão de parecer, cumpra o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Sem tributação.

Notifique.

(elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 01 de Setembro de 2021

João Gomes de Sousa

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[1] - Para além da página HUDOC do T.E.D.H. o aresto encontra-se publicado em “Portugal no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – Jurisprudência selecionada”, PGR e INCM, 2012, pags. 95-104.

[2] - No caso Ekbatani v. Suécia de 26-05-1988 (Queixa nº 10563/83) o cidadão americano John Ekbatani residente em Gotemburgo, fora condenado em 1ª instância numa multa por ter ameaçado um agente policial na regulação do trânsito e, estando em causa os factos em disputa, a sua audição foi negada no tribunal de apelação do Oeste da Suécia, tendo o T.E.D.H. concluíndo (§§ 30 a 33) que se não justificava a não audição do arguido (§ 33.) nos seguintes termos: «Having regard to the entirety of the proceedings before the Swedish courts, to the role of the Court of Appeal, and to the nature of the issue submitted to it, the Court reaches the conclusion that there were no special features to justify a denial of a public hearing and of the applicant’s right to be heard in person. Accordingly, there has been a violation of Article 6 § 1 (art. 6-1).

[3] - É claro que o tema conexo, o das “non-financial remedial measures”, as medidas não financeiras correspectivas à violação da Convenção que aqui estava em causa por via da posição do STJ no incumprimento da cláusula individual de reabertura através do recurso de revisão, é matéria que está fora do tema aqui tratado, mas a celeuma daí resultante nasceu do próprio aresto nº 2 de 2017, com 8 (oito) votos de vencido, incluindo o voto do juiz português, Albuquerque, de bastante relevo quanto a esta matéria e quanto à aplicabilidade do caso ao recurso de revisão na ordem jurídica nacional, concitando o apoio de outros sete juízes.

[4] - A celeuma estendeu-se publicamente e viu-se a publicação em 28-07-2017 no blog Strasbourg Observers do texto “Judges at odds over Court’s authority to order remedies” por Dr Alice Donald–, com os indexantes Implementation judgments, Moreira Ferreira (No. 2) v. Portugal, Remedies. De forma mais substancial o estudo da autoria do Prof. Alastair Mowbray “An Examination of the European Court of Human Rights’ Indication of Remedial Measures” na “Human Rights Law Review”, 2017, 17, 451–478 in https://academic.oup.com/hrlr/article/17/3/451/3977761.