Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
984/13.9TBALR-F.E1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
DOLO
CULPA GRAVE
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Nos termos do art.º 189º, nº 2, al. a), do CIRE, a indicação das pessoas suscetíveis de vir a ser declaradas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, fixando-se o respetivo grau de culpa, é meramente exemplificativa, deixando em aberto a possibilidade de poderem vir a ser afetadas por tal qualificação, terceiros, no processo de insolvência, desde que sobre eles se possa, também, formular um juízo de culpabilidade relativamente à qualificação da insolvência como culposa, esta aferida nos termos do art.º 186º do CIRE.
2. No que diz respeito às outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto, não parece possível dizer que sejam abrangidos pelas presunções contidas no art.º 186º, 2 e 3, do CIRE, no que diz respeito ao dolo ou culpa grave.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 984/13.9TBALR-F.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora- 2ª Secção Cível

I- RELATÓRIO:

(…) e (…) foram declarados insolventes por sentença proferida em 19-11-2013.

O incidente foi requerido pela credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL.

A Administrador da insolvência veio apresentar o seu parecer e requereu que a insolvência fosse qualificada como fortuita, devendo ser afetados os insolventes.

O Ministério Público emitiu parecer e requereu a qualificação da insolvência como culposa, propondo que sejam por esta afetados os insolventes.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 188º, nº 6, do CIRE.

Os Insolventes e requeridos deduziram oposição, peticionando que a oposição seja julgada procedente por provada, e, em consequência, ser a insolvência dos devedores, qualificada de fortuita.

O Ministério Público e a administradora da insolvência responderam, nos termos do artigo 188º, nº 7, do CIRE.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“A. Qualifico como culposa a insolvência de … e de … (artigo 186.º, n.ºs 1, 2, alínea d), e 4, do CIRE).

B. Declaro afectado pela qualificação como culposa da insolvência o próprio insolvente (…), nascido a 25/11/1941, casado com (…), detentor do bilhete de identidade n.º (…) e do NIF (…), empresário, residente na Rua (…), n.º 40, Foros de (…), 2080-400 Benfica do Ribatejo.

C. Declaro afectada pela qualificação como culposa da insolvência a própria insolvente (…), nascida a 09/02/1946, casada com (…), detentora do bilhete de identidade n.º (…) e do NIF (…), residente na Rua (…), n.º 40, Foros de (…), 2080-400 Benfica do Ribatejo.

D. Declaro afectado pela qualificação como culposa da insolvência o visado (…), divorciado, detentor do cartão de cidadão n.º (…) e do NIF (…), residente na Rua (…), n.º 107, Foros de (…), 2080-400 Benfica do Ribatejo.

E. Declaro (…) inibido para o exercício do comércio pelo período de quatro anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (artigo 189.º, n.º 2, alínea c), do CIRE).

F. Declaro (…) inibida para o exercício do comércio pelo período de dois anos e seis meses, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (artigo 189.º, n.º 2, alínea c), do CIRE).

G. Declaro (…) inibido para o exercício do comércio pelo período de quatro anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (artigo 189.º, n.º 2, alínea c), do CIRE).

H. Face à factualidade apurada nos termos do presente incidente, não declaro afectados pela qualificação da insolvência (…), nascida a 26/11/1953, casada com (…), detentora do NIF (…), residente na Rua (…), n.º 86, Foros de (…), 2080-400 Benfica do Ribatejo; e (…), divorciado, detentor do cartão de cidadão n.º (…) e do NIF (…), residente na Rua (…), n.º 107, Foros de (…), 2080-400 Benfica do Ribatejo.

Custas do incidente a cargo de (…), (…) e de (…) – (artigo 303.º do CIRE).

Registe e notifique.”

Não se conformando com a referida decisão, o afetado pela qualificação (…) veio interpor recurso, com as seguintes conclusões (que se reproduzem):

I. A 31/10/2013 no âmbito dos autos principais ao presente apenso, (…) e (…) apresentaram-se à insolvência, declararam pretender apresentar plano de insolvência e, caso o mesmo não fosse aprovado, requereram a exoneração do passivo restante.

II. Na respectiva petição inicial os devedores declararam, entre outros aspetos, ser donos do restaurante “(…)”.

III. Alegaram ainda que o aludido restaurante se encontrava a ser explorado pela (…) – Unipessoal, Lda. [verba 3.ª do auto de apreensão actualizado, junto a 18/12/2019 no apenso A – Apreensão de bens]; e que o 1.º andar do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 102 se encontrava arrendado a (…) [verba 1.ª do auto de apreensão actualizado, junto a 18/12/2019 no apenso A – Apreensão de bens].

IV. O artigo 22.º da referida petição inicial tem a seguinte formulação: “Contrataram assim os seguintes mútuos:

- Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL:

a) No valor € 13.041,67, mútuo com Livrança; e

b) No valor de € 407.272,26, crédito referente a fiança prestada em mútuo com hipoteca, contratado e vencido”.

V. (…) e (…) foram declarados insolventes através de sentença proferida no dia 19 de Novembro de 2013, no âmbito dos autos principais ao presente apenso.

VI. (…) e (…) são casados um com o outro.

VII. (…) – ora recorrente – é filho de (…) e de (…).

VIII. Integra a lista de credores reconhecidos os créditos da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL., cujo montante global ascende a € 13.449,63, os quais foram declarados verificados e graduados como créditos comuns no âmbito da Sentença proferida a 30/11/2015 no âmbito do apenso G – reclamação de créditos.

IX. Os créditos da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. consubstanciam dois contratos de mútuo com fiança; sendo que o primeiro contrato foi celebrado no dia 31/7/2008 e é identificado com o nº (…) e o segundo contrato foi celebrado no dia 3/1/2011 e é identificado com o nº (…).

X. No contrato celebrado a 31/7/2008 e detentor do nº (…), (…), (…) e (…) assumem a qualidade de fiadores.

XI. No contrato celebrado a 3/1/2011 e com o nº (…), (…) e (…) assumem a qualidade de mutuários, sendo fiador (…).

XII. O contrato celebrado a 31/7/2008 (nº …) entrou em mora a partir de 31/12/2011.

XIII. O contrato celebrado a 3/1/2011 (nº …) entrou em mora a partir do dia 30/12/2011.

XIV. Por referência ao contrato celebrado a 31/7/2008 (nº …), a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. requereu a notificação judicial avulsa a 12/10/2012 de (…), de (…), de (…). Através de tal notificação a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. exigia o cumprimento das respectivas obrigações contratuais, cujo capital ascendia ao valor de € 347.677,65.

XV. Por referência ao contrato celebrado a 3/01/2011 (nº …), a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), Crl. requereu a notificação judicial avulsa a 16/10/2012 de (…), de (…), de (…). Através de tal notificação a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. exigia o cumprimento das respetivas obrigações contratuais, cujo capital ascendia ao valor de € 10.993,35.

XVI. A 29/8/2013, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. instaurou duas acções executivas, cada qual para pagamento dos valores em dívida nos contratos de mútuo acima identificados. Tais acções foram instauradas, nomeadamente, contra (…), (…) e contra (…).

XVII. Por escrito particular com a epígrafe “Contrato de Arrendamento a Prazo Certo” e datado de 01/10/2013, (…), como primeiro outorgante, e (…), como segundo outorgante, do qual se reproduzem os seguintes excertos: “(…) Cláusula Primeira O Primeiro Outorgante é o legítimo proprietário do Primeiro Andar, sito na Rua (…), (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…). Cláusula Segunda 1. Pelo presente contrato, o Primeiro Contraente (…) dá de arrendamento aos Segundos Outorgantes o primeiro andar descrito na Cláusula anterior. (…) 3. Compondo o mesmo todo o recheio nele existente e constante da listagem anexa ao presente contrato. Cláusula Terceira O presente contrato de arrendamento é celebrado a prazo certo (…) com a duração de 15 (Quinze) anos, com início em 01 de Outubro de 2013 e termo em 30 de Setembro de 2028, renovando-se, findo esse prazo, salvo se for oposição à sua renovação automática pelo 1.º Outorgante (…).” Cláusula Quarta 1. A renda mensal é no montante de € 100,00 (Cem Euros). (…)”.

18.O valor patrimonial tributário do imóvel acima referido no ponto anterior ascendia, no ano de 2011 e de acordo com o teor da respectiva certidão matricial, a € 45.320,00.

XVIII. O valor de mercado e arrendamento de imóvel com as características do prédio acima identificado, à data indicada no aludido acordo com a epígrafe “Contrato de Arrendamento a Prazo Certo” (ou seja, no dia 01/10/2013), é superior a € 100,00 mensais, fixando-se no valor de € 155,25 mensal, tudo conforme é exposto e apurado no âmbito do relatório pericial colegial apresentado e subsequentes esclarecimentos, cujo teor aqui se consideram integralmente reproduzidos (Relatório pericial apresentado a 22/11/2017 e subsequentes esclarecimentos constantes do requerimento de 3/11/2017).

XIX. O valor patrimonial tributário do imóvel acima referido foi apurado pelos Senhores Peritos tendo por referência o dia 03/11/2017 e fixava-se no valor de € 35.170,00.

XX. No teor do escrito particular com a epígrafe “Contrato de Cessão de Exploração” e datado de 26/9/2013, (…), como primeiro outorgante e (…), na qualidade de legal representante da “(…) – Unipessoal, Lda.”, como segunda outorgante, do qual se reproduzem os seguintes excertos:

“Pelo primeiro foi dito que é dono e legitimo possuidor de um estabelecimento comercial de café, snack-bar e restaurante, sito na Rua (…), n.º 102, (…), denominado (…); - Que cede à representada da segunda outorgante o direito de exploração do referido estabelecimento comercial nas seguintes condições: 1.º A cessão de exploração é feito pelo prazo de 15 anos, iniciando-se em 01 de Outubro de 2013 e termo no dia 30 de Setembro de 2028, renovável por iguais períodos de tempo automaticamente, se não for manifestado o propósito de qualquer uma das partes em resolver o contrato; 2.º A retribuição mensal é de € 700,00, a pagar pela segunda contraente ao primeiro, em mão, até ao 8.º dia útil de cada mês, por meio de cheque ou numerário; 3.º O presente contrato envolve a utilização de todo o recheio do estabelecimento cedido, cujos objectos são descriminados em lista anexa (…) 5.º Todos os fornecimentos destinados à exploração do estabelecimento objecto do presente contrato, serão da exclusiva responsabilidade da segunda outorgante, comprometendo-se esta, apenas, a cumprir o contrato celebrado ente a primeira contraente com a marca de cafés Delta relativo a fornecimento de café e cedência dos respectivos equipamentos (…)”.

XXI. O valor patrimonial tributário do imóvel acima referido no ponto anterior ascendia, no ano de 2013 e de acordo com o teor da respectiva certidão matricial, a € 204.870,00.

XXII. O valor de mercado de uma renda por cessão de estabelecimento com as características do “Restaurante (…)”, à data indicada no aludido acordo com a epígrafe “Contrato de Cessão de Exploração” (ou seja, no dia 26/9/2013), é superior a € 700,00 mensais, fixando-se no valor de € 729,38 mensal, tudo conforme é exposto e apurado no âmbito do relatório pericial colegial apresentado e subsequentes esclarecimentos prestados, cujo teor aqui se consideram integralmente reproduzidos (Relatório de peritagem apresentado a 22/11/2017 e subsequentes esclarecimentos constantes do requerimento de 3/11/2017).

XXIII. O valor patrimonial tributário do imóvel em que funciona o “Restaurante (…)” apurado pelos Senhores Peritos tem por referência o dia 03/11/2017 e, assim, fixava-se no valor de € 165.290,00.

XXIV. Da certidão respeitante à sociedade (…), Unipessoal, Lda., da qual resulta que a mesma foi constituída no dia 23/9/2013, tendo sido nomeado como gerente (…).

XXV. (…) manteve a qualidade de gerente da (…), Unipessoal, Lda. até ao dia 07/10/2013.

XXVI. (…) foi nomeada gerente da (…), Unipessoal, Lda. através de deliberação de 02/10/2013.

XXVII. (…) assumiu apenas funções de cozinheira no restaurante acima até à data da cessão do respectivo estabelecimento.

XXVIII. Na data indicada no acordo de cessão da exploração do restaurante … (dia 26/9/2013), enquanto gerente da (…), Unipessoal, Lda. – e, consequentemente, a própria sociedade unipessoal (…), Lda., conheciam a existência de dívidas de (…) e de (…) para com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL.

XXIX. Os insolventes/devedores declararam, entre outros aspetos, ser donos do restaurante “…” (Ponto 2 dos factos provados).

XXX. E que haviam contratado com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, mútuos, respetivamente, nos valores de € 13.041,67 e € 407.272,26 (cfr. Ponto 4 dos factos provados).

XXXI. O recorrente era fiador dos devedores nos contratos de mútuo celebrados com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Ribatejo Sul, CRL. (Pontos 10 e 11 dos factos provados)

XXXII. A credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL., intentou ações executivas nas quais o recorrente figurava como executado (Ponto 16 dos factos provados).

XXXIII. Por escrito particular com a epígrafe “Contrato de Cessão de Exploração” e datado de 26/9/2013, (…), como primeiro outorgante e (…), na qualidade de legal representante da “(…) – Unipessoal, Lda.”, como segunda outorgante, do qual se reproduzem os seguintes excertos:

“Pelo primeiro foi dito que é dono e legitimo possuidor de um estabelecimento comercial de café, snack-bar e restaurante, sito na Rua (…), n.º 102, (…), denominado (…); - Que cede à representada da segunda outorgante o direito de exploração do referido estabelecimento comercial nas seguintes condições: 1.º A cessão de exploração é feito pelo prazo de 15 anos, iniciando-se em 01 de Outubro de 2013 e termo no dia 30 de Setembro de 2028, renovável por iguais períodos de tempo automaticamente, se não for manifestado o propósito de qualquer uma das partes em resolver o contrato; 2.º A retribuição mensal é de € 700,00, a pagar pela segunda contraente ao primeiro, em mão, até ao 8.º dia útil de cada mês, por meio de cheque ou numerário; 3.º O presente contrato envolve a utilização de todo o recheio do estabelecimento cedido, cujos objectos são descriminados em lista anexa (…) 5.º Todos os fornecimentos destinados à exploração do estabelecimento objecto do presente contrato, serão da exclusiva responsabilidade da segunda outorgante, comprometendo-se esta, apenas, a cumprir o contrato celebrado ente a primeira contraente com a marca de cafés Delta relativo a fornecimento de café e cedência dos respectivos equipamentos (…)” – (Ponto 21 dos factos provados).

XXXIV. (…) manteve a qualidade de gerente da (…), Unipessoal, Lda. até ao dia 07/10/2013 (Ponto 26 dos factos provados).

XXXV. A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.

XXXVI. O nº 2 do art.º 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa.

XXXVII. O nº 3 do mesmo art.º 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.

XXXVIII. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência.

Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai.

XXXIX. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais atuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”, mais se esclarecendo em tal aresto: “Definindo, assim, este preceito legal em que consiste a insolvência culposa, começando por fixar, para o efeito, uma noção geral no seu nº 1.

XL. Implica sempre, tal insolvência culposa, uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.

XLI. Deixando, contudo, tal actuação de ser atendida – devendo considerar-se as noções de dolo e de culpa grave, na falta de outro critério específico, nos termos gerais de Direito – para o efeito da qualificação da insolvência em análise, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Estabelecendo, de seguida, em complemento da noção antes fixada, o seu nº 2, presunções inilidíveis, ou seja, presunções absolutas ou jure et de jure, não admitindo prova em contrário (cfr., ainda, o art.º 350.º, nº 2, do CC).

XLII. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores aí referidos – sem prejuízo de se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – à qualificação da insolvência como culposa.

XLIII. Finalmente, o nº 3 do mesmo preceito legal, estabelecendo, agora, presunções ilidíveis, ou seja, presunções relativas ou juris tantum, que assim podem ser ilididas por prova em contrário, dá por verificada a existência de culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.

XLIV. Da diferenciação entre os referidos nºs 2 e 3, resulta que o legislador (cfr. art.º 9.º, nº 3, do CC) não quis consagrar, neste último caso, também um complemento da noção de insolvência culposa, tal como é definida no anterior nº 1, não se dispensando a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência.

XLV. Como se deduz do preceito legal em referência – artigo 186º do CIRE – que regulamente a “Insolvência Culposa”, apenas nas situações previstas no nº 3 do indicado artigo, estabelecendo este presunções ilidíveis, relativas ou juris tantum, que assim podem ser ilididas por prova em contrário, se exige a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, não abrangendo esta presunção ilidível a do nexo de causalidade entre tais atuações omissivas e a situação da insolvência verificada ou do seu agravamento, e, já não nas situações previstas no nº 2 do art.º 186º do CIRE, em que a lei estabelece presunções inilidíveis, ou presunções absolutas ou jure et de jure, que não admitem qualquer prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores referidos nas respetivas alíneas à qualificação da insolvência como culposa.

XLVI. Dos autos apenas resulta que o recorrente, à data da celebração do escrito denominado por cessão de exploração, não obstante ser de direito gerente da sociedade adquirente, a verdade é que não teve qualquer intervenção na sua realização e outorga.

XLVII. Acresce também que decorridos 11 dias da data da outorga do mencionado contrato de cessão de exploração o recorrente renunciou à gerência da sociedade, sem que tenha o recorrido praticado qualquer acto de gerência.

XLVIII. E ainda que se não considerem tais factos a verdade é que não se mostra demonstrado o nexo de causalidade entre os contratos celebrados – que o não foram pelo recorrente – e o agravamento da situação de insolvência dos devedores.

XLIX. O recorrente constituiu a sociedade (…) que, em momento posterior e com a intervenção de (…), outorgou com o insolvente (…) o aludido contrato de cessão de exploração.

L. Não se mostra evidenciada qualquer conduta dolosa do recorrente que tivesse contribuído para o agravamento da situação de insolvência dos devedores, não obstante ser, de facto, conhecedor da existência de dividas para com a CCAM do (…), CRL.

LI. Nestes termos, os factos provados não integram a previsão do nº 2 do art.º 186º do CIRE, e que, mesmo que integrasse, não bastava a respectiva prova para que se pudesse decretar aquela qualificação, sendo sempre necessária a demonstração do nexo de causalidade adequada entre as condutas que os integram e a criação ou o agravamento da situação de insolvência por sua parte, falecem tais fundamentos, desde logo no tocante á exigibilidade do estabelecimento de nexo de causalidade que, no caso sub judice, estando em causa condutas do administrador da insolvente reportadas ao nº 2 do art.º 186º do CIRE, não se impõe, contendo-se na presunção absoluta da norma, e, no demais, resultando dos factos provados integrada a previsibilidade do art.º 186º, nº 2, do CIRE, com referência ás alíneas a), b), d), e), f).

LII. E, assim, relativamente à decisão de inibição do recorrente pelo período de 4 anos, atenta a ausência de factos provados que permitam estabelecer qualquer nexo causal nos negócios celebrados e o recorrente terá a decisão sob recurso que se revogada e declarar o recorrente José Valério dos Santos não afetado pela qualificação da insolvência, com as legais consequências, declarando-se a mesma, antes sim como fortuita.

LIII. A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 186º, n.ºs 2 e 3 do CIRE e artigos 9º, nº 3 e 350º, nº 2, do Código Civil.

LIV. A decisão recorrida atenta a factualidade provada nos autos deveria ter declarado não afetado pela qualificação da insolvência o recorrente com as legais consequências.

Termos em que, deve a sentença sob recurso ser revogada e, em consequência, ser lavrado acórdão que declara o recorrente (…) não afetado pela qualificação da insolvência, com as legais consequências.

Assim se fará

JUSTIÇA

O MP apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões (que se reproduzem):

1- Os factos dados como provados são sobejamente suficientes para qualificar a insolvência como culposa e declarar afectados por tal qualificação não só os Insolventes, mas também o ora Recorrente;

2- A douta sentença faz uma correcta e lógica apreciação de toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;

3- A douta sentença recorrida não violou as disposições legais enunciadas pelo Recorrente;

Em face do exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, ser mantida a douta decisão recorrida.

Mas Vossas Excelências, melhor decidirão, fazendo JUSTIÇA

O recurso foi admitido.

Foi dado cumprimento aos vistos legais por via informática.

II- OBJETO DO RECURSO:

É pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objeto do recurso e se delimita o seu âmbito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Este Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.

Questão a decidir:

- se o recorrente deve ser declarado afetado pela qualificação da insolvência como culposa.

I- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Na 1ª instância foi fixada a matéria de facto da seguinte forma:

a) Factos provados:

1. A 31/10/2013 no âmbito dos autos principais ao presente apenso, (…) e (…) apresentaram-se à insolvência, declararam pretender apresentar plano de insolvência e, caso o mesmo não fosse aprovado, requereram a exoneração do passivo restante.

2. Na respectiva petição inicial os devedores declararam, entre outros aspetos, ser donos do restaurante “(…)”.

3. Alegaram ainda que o aludido restaurante se encontrava a ser explorado pela (…) – Unipessoal, Lda. [verba 3.ª do auto de apreensão actualizado, junto a 18/12/2019 no apenso A – Apreensão de bens]; e que o 1.º andar do prédio urbano sito na Rua (…), n.º 102 se encontrava arrendado a (…) [verba 1.ª do auto de apreensão actualizado, junto a 18/12/2019 no apenso A – Apreensão de bens].

4. O artigo 22.º da referida petição inicial tem a seguinte formulação:

“Contrataram assim os seguintes mútuos:

- Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL:

a) No valor € 13.041,67, mútuo com Livrança; e

b) No valor de € 407.272,26, crédito referente a fiança prestada em mútuo com hipoteca, contratado e vencido”.

5. (…) e (…) foram declarados insolventes através de sentença proferida no dia 19 de Novembro de 2013, no âmbito dos autos principais ao presente apenso.

6. (…) e (…) são casados um com o outro.

7. (…) é filho de (…) e de (…).

8. Integra a lista de credores reconhecidos os créditos da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL., cujo montante global ascende a € 13.449,63, os quais foram declarados verificados e graduados como créditos comuns no âmbito da Sentença proferida a 30/11/2015 no âmbito do apenso G – reclamação de créditos.

9. Os créditos da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. consubstanciam dois contratos de mútuo com fiança; sendo que o primeiro contrato foi celebrado no dia 31/7/2008 e é identificado com o nº (…) e o segundo contrato foi celebrado no dia 3/1/2011 e é identificado com o nº (…).

10. No contrato celebrado a 31/7/2008 e detentor do nº (…), (…), (…) e (…) assumem a qualidade de fiadores.

11. No contrato celebrado a 3/1/2011 e com o nº (…), (…) e (…) assumem a qualidade de mutuários, sendo fiador (…).

12. O contrato celebrado a 31/7/2008 (nº …) entrou em mora a partir de 31/12/2011.

13. O contrato celebrado a 3/1/2011 (nº …) entrou em mora a partir do dia 30/12/2011.

14. Por referência ao contrato celebrado a 31/7/2008 (nº …), a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. requereu a notificação judicial avulsa a 12/10/2012 de (…), de (…), de (…). Através de tal notificação a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. exigia o cumprimento das respectivas obrigações contratuais, cujo capital ascendia ao valor de € 347.677,65.

15. Por referência ao contrato celebrado a 3/01/2011 (nº …), a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. requereu a notificação judicial avulsa a 16/10/2012 de (…), de (…), de (…). Através de tal notificação a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. exigia o cumprimento das respectivas obrigações contratuais, cujo capital ascendia ao valor de € 10.993,35.

16. A 29/8/2013, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL. instaurou duas acções executivas, cada qual para pagamento dos valores em dívida nos contratos de mútuo acima identificados. Tais acções foram instauradas, nomeadamente, contra (…), (…) e contra (…).

17. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do escrito particular com a epígrafe “Contrato de Arrendamento a Prazo Certo” e datado de 01/10/2013, (…), como primeiro outorgante, e (…), como segundo outorgante, do qual se reproduzem os seguintes excertos:

“(…)

Cláusula Primeira

O Primeiro Outorgante é o legítimo proprietário do Primeiro Andar, sito na Rua (…), (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Almeirim sob o nº (…).

Cláusula Segunda

1. Pelo presente contrato, o Primeiro Contraente (…) dá de arrendamento aos Segundos Outorgantes o primeiro andar descrito na Cláusula anterior. (…) 3. Compondo o mesmo todo o recheio nele existente e constante da listagem anexa ao presente contrato.

Cláusula Terceira

O presente contrato de arrendamento é celebrado a prazo certo (…) com a duração de 15 (Quinze) anos, com início em 01 de outubro de 2013 e termo em 30 de setembro de 2028, renovando-se, findo esse prazo, salvo se for oposição à sua renovação automática pelo 1.º Outorgante (…).”

Cláusula Quarta

1. A renda mensal é no montante de € 100,00 (Cem Euros).

(…)”.

18. O valor patrimonial tributário do imóvel acima referido no ponto anterior ascendia, no ano de 2011 e de acordo com o teor da respectiva certidão matricial, a € 45.320,00.

19. O valor de mercado e arrendamento de imóvel com as características do prédio acima identificado, à data indicada no aludido acordo com a epígrafe “Contrato de Arrendamento a Prazo Certo” (ou seja, no dia 01/10/2013), é superior a € 100,00 mensais, fixando-se no valor de € 155,25 mensal tudo conforme é exposto e apurado no âmbito do relatório pericial colegial apresentado e subsequentes esclarecimentos, cujo teor aqui se consideram integralmente reproduzidos (Relatório pericial apresentado a 22/11/2017 e subsequentes esclarecimentos constantes do requerimento de 3/11/2017).

20. O valor patrimonial tributário do imóvel acima referido foi apurado pelos Senhores Peritos tendo por referência o dia 03/11/2017 e fixava-se no valor de € 35.170,00.

21. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do escrito particular com a epígrafe “Contrato de Cessão de Exploração” e datado de 26/9/2013, (…), como primeiro outorgante e (…), na qualidade de legal representante da “(…) – Unipessoal, Lda.”, como segunda outorgante, do qual se reproduzem os seguintes excertos:

“Pelo primeiro foi dito que é dono e legitimo possuidor de um estabelecimento comercial de café, snack-bar e restaurante, sito na Rua (…), n.º 102, (…), denominado (…);

- Que cede à representada da segunda outorgante o direito de exploração do referido estabelecimento comercial nas seguintes condições:

1.º A cessão de exploração é feita pelo prazo de 15 anos, iniciando-se em 01 de outubro de 2013 e termo no dia 30 de setembro de 2028, renovável por iguais períodos de tempo automaticamente, se não for manifestado o propósito de qualquer uma das partes em resolver o contrato;

2.º A retribuição mensal é de € 700,00, a pagar pela segunda contraente ao primeiro, em mão, até ao 8.º dia útil de cada mês, por meio de cheque ou numerário;

3.º O presente contrato envolve a utilização de todo o recheio do estabelecimento cedido, cujos objectos são descriminados em lista anexa (…);

5.º Todos os fornecimentos destinados à exploração do estabelecimento objecto do presente contrato, serão da exclusiva responsabilidade da segunda outorgante, comprometendo-se esta, apenas, a cumprir o contrato celebrado ente a primeira contraente com a marca de cafés Delta relativo a fornecimento de café e cedência dos respectivos equipamentos (…)”.

22. O valor patrimonial tributário do imóvel acima referido no ponto anterior ascendia, no ano de 2013 e de acordo com o teor da respectiva certidão matricial, a € 204.870,00.

23. O valor de mercado de uma renda por cessão de estabelecimento com as características do “Restaurante (…)”, à data indicada no aludido acordo com a epígrafe “Contrato de Cessão de Exploração” (ou seja, no dia 26/9/2013), é superior a € 700,00 mensais, fixando-se no valor de € 729,38 mensal, tudo conforme é exposto e apurado no âmbito do relatório pericial colegial apresentado e subsequentes esclarecimentos prestados, cujo teor aqui se consideram integralmente reproduzidos (Relatório de peritagem apresentado a 22/11/2017 e subsequentes esclarecimentos constantes do requerimento de 3/11/2017).

24. O valor patrimonial tributário do imóvel em que funciona o “Restaurante (…)” apurado pelos Senhores Peritos tem por referência o dia 03/11/2017 e, assim, fixava-se no valor de € 165.290,00.

25. Dá-se aqui por integralmente reproduzida a certidão respeitante à sociedade (…), Unipessoal, Lda., da qual resulta que a mesma foi constituída no dia 23/9/2013, tendo sido nomeado como gerente (…).

26. (…) manteve a qualidade de gerente da (…), Unipessoal, Lda. até ao dia 07/10/2013.

27. (…) foi nomeada gerente da (…), Unipessoal, Lda. através de deliberação de 02/10/2013.

28. (…) assumiu apenas funções de cozinheira no restaurante acima até à data da cessão do respectivo estabelecimento.

29. Na data indicada no acordo de cessão da exploração do restaurante … (dia 26/9/2013), … – quer a título pessoal, quer enquanto gerente da (…), Unipessoal, Lda. – e, consequentemente, a própria sociedade unipessoal (…), Lda., conheciam a existência de dívidas de (…) e de (…) para com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL.

B) Factos não provados:

a. Que, com a celebração do acordo acima indicado no ponto 21.º dos factos provados, os insolventes pretendessem acautelar o valor do Restaurante “(…)”, em funcionamento.

b. Que (…) tenha procedido até ao mês de setembro de 2013, a descontos/contribuições a favor do Instituto da Segurança Social, IP. com base na remuneração de (…).

x

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:

-se o recorrente deve ser declarado afetado pela qualificação da insolvência como culposa:

Na sentença recorrida, qualificou-se como culposa a insolvência de (…) e de (…), nos termos dos artigos 186º, nºs 1 e 2, alínea d) e 4, do CIRE, declarando afetados pela qualificação como culposa da insolvência os insolventes (…), (…) e o visado (…). Declarou-se ainda o visado (…) inibido para o exercício do comércio pelo período de quatro anos, bem como a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos do artigo 189º, nº 2, alínea c), do CIRE.

Cumpre decidir:

Na sentença decidir-se-á então se a insolvência deve ser qualificada como culposa ou fortuita (art.º 189º, nº 1, do CIRE).

Nos termos do artigo 186º, nº 1, do CIRE, a insolvência é considerada culposa se “tiver sido criada ou agravada, em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência”.

Exige-se, assim, para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores, mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência.

O art.º 186º, nº 2, do CIRE contém, no entanto, uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, considerando como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado atos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais. Entre os atos destinados ao empobrecimento do património encontra-se: a dissipação do seu património (art.º 186º, nº 2, a)); a criação artificial de passivos ou a redução de lucros (art.º 186º, nº 2, b)); a revenda com prejuízo de mercadorias não pagas (art.º 186º, nº 2, c)); a disposição dos bens dos devedor em proveito pessoal ou de terceiros (artigo 186º, nº 2, d)), a exploração, eventualmente a coberto da personalidade coletiva da empresa, da sua atividade em proveito pessoal ou de terceiros (art.º 186º, nº 2, g)). Em relação ao incumprimento das obrigações legais encontra-se a de manter a contabilidade organizada, incluindo a posse de contabilidade dupla, fictícia ou a prática de irregularidades na mesma que perturbem a compreensão da sua situação financeira ou patrimonial (art.º 186º, nº 2, h)); ou o incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e colaboração no possesso de insolvência (art.º 186º, nº 2, i)).

Verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art.º 186º, nº 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer no nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.

O art.º 186º, nº 3, do CIRE, contém uma presunção iuris tantum de culpa grave do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal e de submete-las à devida fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial.

Demonstrados esses factos, o juiz presumirá a culpa do devedor na sua situação de insolvência, excluindo, porem, essa qualificação se for demonstrado que a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas não se deveu a culpa do devedor. Efetivamente, o que resulta do art.º 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não tanto uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art.º 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.

O artigo 186º, nº 4, do CIRE, estende as presunções dos nºs 2 e 3, com as necessárias adaptações, à atuação do devedor pessoa singular e seus administradores (cfr. art.º 6º). Efetivamente, com exceção da situação referida na alínea e) do nº 2 do art.º 186, todos os restantes factos mencionados podem facilmente ser aplicáveis à insolvência de pessoas singulares, devendo as mesmas presunções funcionar igualmente nessa situação[1].

Dispõe o art.º 189º do CIRE:

(…)

2. Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:

a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;

b) (…)

c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Conforme ensina Alexandre Soveral Martins[2] “…, se para a qualificação da insolvência como culposa é necessário o dolo ou culpa grave dos devedores ou dos seus administradores de direito ou de facto (art.º 186º, nº 1), por maioria de razão deve exigir-se esse dolo ou culpa grave para que alguém seja afetado pela qualificação da insolvência como culposa.

Vejamos algumas situações possíveis.

Serão afetados pela qualificação da insolvência culposa TOC´s, ROC´ou outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto que, com dolo ou culpa grave, atuaram de forma tal que contribuíram para a criação ou agravamento da situação de insuficiência do devedor. Mas já sabemos que, só por si, essa atuação não permite a qualificação da insolvência como culposa, pois para isso é necessário que o devedor ou os seus administradores atuem nos termos descritos no art.º 186º, 1. A situação de insolvência pode ter sido criada em consequência da atuação, com dolo ou culpa grave do devedor ou dos seus administradores pode ter agravado essa mesma situação de insolvência. Nesse caso, a insolvência já teria sido qualificada como culposa.

Serão também afetados os TOC´s, ROC´s ou outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto que, com dolo ou culpa grave, colaboraram com o devedor ou com os seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência ou que colaboraram com o devedor ou com os seus administradores em qualquer das atuações previstas no art.º. 186º, nº 2.

Também serão afetados os TOC´s, ROC´s ou outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto que, com dolo ou culpa grave, tenham colaborado com o devedor ou com os seus administradores nas atuações abrangidas pelas alíneas do art.º 186º, 3 (mais uma vez, desde que a presunção de culpa não seja afastada e se demonstre o nexo causal).

No que diz respeito aos TOC´s, ROC´s ou outras pessoas que não sejam o devedor e seus administradores de direito ou de facto, não parece possível dizer que sejam abrangidos pelas presunções contidas no art.º 186º, 2 e 3, no que diz respeito ao dolo ou culpa grave”.

Decorre daqui, que o ora recorrente só pode ser considerado afetado pela insolvência culposa se tiver tido uma atuação dolosa ou com culpa grave.

E uma vez que o artigo 186º do CIRE nada dispõe, em particular, nessa matéria, as noções de dolo e de culpa grave devem ser entendidas nos termos gerais de direito[3].

O nexo de causalidade que, segundo a redação do n.º 1 do artigo 186.º, deve existir entre a ação ou omissão do devedor ou do administrador deste e a produção ou o agravamento da insolvência, deve ser apreciado de acordo com a Doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Ennecerus-Lehmann, consagrada no nosso direito através do artigo 563.º do Código Civil[4].

O nexo da imputação do resultado (situação de insolvência) à conduta do visado deve ser estabelecido a título de dolo ou de culpa grave. Ficam excluídas do conceito de insolvência culposa a culpa leve e a culpa levíssima.

O dolo, enquanto conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo ou emocional) de realização do facto em causa, pode assumir a forma de direto, necessário ou eventual. Existe dolo direto quando o agente representa ou prefigura no seu espírito determinado efeito da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua atuação.

Age com dolo necessário o agente que prevê o resultado ilícito, ainda que não tenha a

intenção de o produzir, prevendo-o como uma consequência certa e não apenas como possível. Neste caso, o agente não se preocupa, contudo, que tal resultado venha a ocorrer, querendo-o para a hipótese.

Existe dolo eventual quando o agente prevê o resultado ilícito como uma consequência certa, mas apenas como possível, conformando-se, contudo, com tal eventualidade.

A culpa grave, normalmente equiparada à culpa grosseira ou negligência grosseira, pode ser definida como aquela com que age o agente que omite os deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente descuidada, incauta e desleixada deixaria de respeitar[5].

Vejamos agora os factos dados como provados mais relevantes para a apreciação do presente recurso:

- Em 23/09/2013 foi constituída a sociedade (…) – Unipessoal, Ld.ª, cuja gestão foi assumida por … (ora recorrente) no período compreendido entre o dia 23-09-2013 e o dia 7-10-2013;

- Com a data de 26/09/2013 foi celebrado um escrito particular com a epígrafe “Contrato de Cessão de Exploração”, entre (…) e (…), na qualidade de legal representante da (…) – Unipessoal, Ld.ª; através do qual foi cedido por aquela a esta o direito de exploração do estabelecimento comercial de café, snack-bar e restaurante, sito na Rua (…), 102, denominado (…), pelo prazo de 15 anos, iniciando-se em 1-10-2013 e termo no 30-09-2028, mediante a retribuição mensal de € 700,00;

- Por deliberação de 2/10/2013, a (…) foi nomeada gerente da (…) – Unipessoal, Ld.ª.

- A 31/10/2013 (…) e (…) apresentaram-se à insolvência, declarando apresentar plano de insolvência e caso o mesmo não fosse aprovado, requereram a exoneração do passivo restante;

- Na petição inicial, declararam ser donos do restaurante “(…)”;

- Por sentença de 19/11/2013 foram declarados insolventes (…) e (…);

- (…) é filho de (…) e de (…);

- (...) apenas assumiu as funções de cozinheira no restaurante acima até à data da cessão do respetivo estabelecimento;

- Em 26/09/2013, (…), quer a título pessoal, quer enquanto gerente da (…) - Unipessoal, Ld.ª e, consequentemente, a própria sociedade unipessoal (…), Ld.ª conheciam a existência de dívidas de (…) e de (…) para com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL.

Conforme refere a Srª Administradora da Insolvência no seu parecer:

“- O contrato de cessão de estabelecimento comercial do estabelecimento dos ora insolventes “Restaurante (…)”, foi celebrado em 26.09.2013 entre o aqui insolvente (…) e a sociedade “(…) – Unipessoal, Ld.ª”.

- Esta sociedade foi constituída 3 dias antes da outorga do contrato: 23.09.2013, conforme documento nº 1 que ora junta, inscrição nº 1, apresentação nº …/20130923, com sede na Rua (…), nº 102, Benfica do (…), Almeirim, 2080-400 Foros de Benfica, com os seguintes membros e órgãos sociais:

(…), com uma quota de € 5.000,00;

(…) foi designado gerente, exercendo funções até 7.10.2013, conforme Averbamento nº (…), Apresentação nº …/20131007;

- De modo que a partir de 7.10.2013 foi designada gerente a única sócia: (…), inscrição (…), Apresentação nº …/20131007;

- Pelo que, ressalve-se desde já que o sobredito contrato foi subscrito por (…), com um carimbo com menção de “(…). Unipessoal, Ld.ª” O Gerente”, tendo a assinatura sido reconhecida em 26.09.2013, como representante legal da sociedade;

- Algo que não correspondia à verdade, pois em tal data não era representante legal da sociedade, mas sim o senhor (…) que exerceria funções até 7.10.2013;

- Da mesma forma, não poderia tal assinatura de (…) ter sido reconhecida para o efeito como legal representante daquela sociedade”.

Destes factos, não decorre que o recorrente, à data da celebração do escrito denominado por cessão de exploração, teve qualquer intervenção na sua realização e outorga (não obstante ser de direito gerente da sociedade adquirente), sendo que no caso presente o dolo ou culpa grave não se pode presumir, mas têm de resultar de factos provados. Ou seja, por outras palavras, era necessário que o visado (…) tivesse praticado um ato (ou omissão) com dolo ou culpa grave e que desse ato ou omissão tivesse criado ou agravado a situação de insolvência.

Assim sendo, a presente apelação tem de proceder, com a consequente revogação da sentença recorrida na parte relativa ao recorrente.

x

No caso em apreço, a responsabilidade pelo pagamento das custas respetivas recai sobre a recorrida Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL[6].

Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):

(…)

v- DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar procedente a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida na parte respeitante ao recorrente.

Custas nesta instância recursiva pela recorrida a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL – artigo 527º do CPC.

Évora, 14 de julho de 2020

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Lopes Barata

Maria Emília Ramos Costa

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[1] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2015-6ª edição, Almedina, pp. 253-255.

[2] Um Curso de Direito de Insolvência, 2016, 2ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, pp. 425-426.

[3] Luís. A Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, p. 680.

[4] João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I- 10ª Ed., Almedina, 2008, p. 891.

[5] Vera Lúcia Gomes da Silva Freitas de Oliveira, Incidente de Qualificação da Insolvência, p. 50, Dissertação de Mestrado, https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/20808/1/Dissertaçao%20Final%20-%20Vera%20Silva.pdf.

[6] Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido, file:///C:/Users/MJ01646.MAG5SCLWJ200010/Desktop/E-BOOK/DIREITO%20DAS%20CUSTAS/COSTA,%20S.%20DA,%20Responsabilidade%20pelas%20custas%20no%20recurso%20julgado%20procedente%20sem%20contra-alegação%20do%20recorrido%20(06.2020).pdf.