Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2736/19.3T8FAR.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os critérios a adotar para fixação do quantum indemnizatório devido a título de dano pela perda da capacidade de ganho e, bem assim, pelos danos de natureza não patrimonial assentam na equidade, o que não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, cuja prossecução implica a procura de uma uniformização de critérios, sem descurar as circunstâncias concretas do caso.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Ré: (…) Seguros, SA, anteriormente designada Seguradoras (…), SA
Recorrido / Autor: (…)

Trata-se de uma ação declarativa de condenação no âmbito da qual o A peticionou a condenação da R a pagar-lhe:
- a quantia global de € 199.022,05, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais;
- a quantia a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença, referente aos danos alegados nos artigos 144.º, 167.º, 170.º, 171.º, 172.º e 179.º;
- a quantia a título de juros de mora calculados à taxa legal e contabilizados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Invocou, para tanto, ter sido atropelado quando seguia na passadeira pelo condutor de um veículo automóvel cuja responsabilidade civil foi transferida por contrato de seguro para Ré, tendo sofrido ferimentos que lhe provocaram os danos patrimoniais e não patrimoniais alegados.
A R deduziu contestação na qual impugnou a versão alegada do acidente de viação, os danos invocados e o montante dos pedidos.

II – O Objeto do Recurso
Foi proferida sentença julgando a ação conforme segue:
«julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente ação e, em consequência, condena-se a Ré Seguradoras (…), SA a pagar ao Autor (…) a quantia de total de € 168.804,80, sendo € 17.904,80 por danos emergentes, € 53.900,00 por lucros cessantes, € 22.000,00 por dano futuro e € 75.000,00 por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à data da prolação da sentença até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis, com exceção do valor pelos danos emergentes no valor de € 17.904,80, cujos juros de mora são devidos desde a citação, absolvendo-a do demais peticionado.»
Inconformada, a Ré apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que, alterando a decisão proferida sobre a matéria de facto, passando o facto 63 para a matéria de facto não provada, absolva a Ré da quantia de € 53.900,00 a título de lucros cessantes, reduzindo a indemnização por danos não patrimoniais para a quantia de € 30.000,00. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«I. A Recorrente não se conforma com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, razão pela qual, por via do presente recurso, a vem contestar, sob o fundamento da incorreta análise da prova produzida – refletida na factualidade dada como provada e não provada –, e na inadequada aplicação do direito ao caso sub judice, que culminou na condenação da Recorrente no pagamento do montante de € 53.900,00 de lucros cessantes e € 75.000,00 por danos não patrimoniais;
II. Dos documentos juntos aos autos, nomeadamente das declarações de IRS juntas pelo Recorrido, referentes aos anos de 2016 a 2019, não decorre que o mesmo tenha deixado de auferir rendimentos após o acidente ocorrido a 9 de março de 2018, muito menos que os rendimentos que deixou de auferir correspondessem a € 980,00 mensais.
III. Entendeu o Tribunal a quo fixar as perdas de ganho do Autor em € 53.900,00.
IV. Ora, o valor que o Tribunal a quo fixou a título de perda de capacidade de ganho teve por base o montante que determinou no facto 63.
V. Ou seja, o Tribunal a quo presumiu que o Recorrido deixou de auferir € 980,00 mensais, calculando essa perda por quatro anos e sete meses (até aos 80 anos).
VI. No entanto, entende a Recorrente que não ficou provado que o Recorrido tivesse deixado de auferir aquele montante, requerendo a alteração do facto provado 63 para a matéria de facto não provada.
VII. Não ficando demonstrada a perda daquele montante, não será devida a quantia de € 53.900,00.
VIII. Não se podendo concluir que o Recorrido deixou de receber uma remuneração mensal média mínima de € 980,00, não se poderá, de igual forma, concluir pela fixação de um montante de indemnização no valor de € 53.900,00 (através da seguinte fórmula: 4 anos e 7 meses x 980), pelo que mal andou o Tribunal a quo ao decidir pela fixação de um montante de indemnização no valor de € 53.900,00, valor este infundado e sem correspondência com a prova documental junta aos autos.
IX. Entende a Recorrente que deverá ser dado como não provado o facto 63 da matéria de facto provada, pois, com o devido respeito, não resulta das declarações de IRS que o Recorrido tenha deixado de auferir a quantia de € 980,00 após o acidente, termos em que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
X. O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção, para dar como provado o facto 63, nomeadamente, nas declarações de IRS do Autor juntas a fls. 79 a 101 e 200 a 222.
XI. Para dar como provado o facto 63, o Tribunal a quo analisou somente as declarações de IRS dos anos de 2016 e 2017 (tendo o acidente ocorrido a 9 de março de 2018), calculando então a média desses 2 anos.
XII. Para calcular a média dos anos de 2016 e 2017 socorreu-se dos valores constantes das Declarações de IRS, no campo «TOTAL DAS VENDAS / PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS E OUTROS RENDIMENTOS», que, no ano de 2017 foi de €4 3.292,75 e no ano de 2016 foi de € 51.695,69, fazendo incidir uma percentagem de 25% de lucros e chegando a um valor mensal de € 980,00, presumindo que a partir do acidente deixou de auferir esse montante de € 980,00, o que não tem qualquer correspondência com a declaração de IRS dos anos 2018 e 2019.
XIII. Sucede que o raciocínio subjacente a essa conclusão é falacioso e não tem qualquer suporte documental.
XIV. Só poderia o Tribunal concluir que o Recorrido efetivamente deixou de auferir rendimentos se se encontrassem juntas aos autos as declarações fiscais dos anos seguintes, pelo menos até ao ano de 2022, o que não acontece e, por essa razão, sempre será de concluir que não ficou provado que o Recorrido deixou de auferir rendimentos mensais.
XV. Se atendermos às declarações de IRS referentes a 2018 e 2019, podemos retirar que, naqueles anos, se verificou, a título de vendas e prestações de serviços, respetivamente, € 51.601,23 e € 38.204,55, razão pela qual cai por terra a presunção subjacente à decisão do Tribunal a quo, porquanto, em 2018, o valor total das vendas e prestações de serviços foi, ainda, superior ao do ano transato (não se verificando qualquer redução), e, no ano de 2019, embora se tenha verificado uma redução para € 38.204,55, é evidente que o Recorrido continuou a auferir rendimentos, não se compreendendo a decisão do Tribunal a quo, ao concluir pela ausência total de rendimentos.
XVI. Aliás, se fizermos uso da fórmula utilizada pelo Tribunal a quo para calcular o rendimento mensal no ano de 2019 (valor total das vendas e prestações de serviços, fazendo incidir a percentagem de 25% de lucros e dividindo por 12 meses), podemos concluir que, nesse ano, o rendimento mensal foi de € 795,92 (menos € 184,08 do que a média mensal em 2016 e 2017), e, nesse sentido, mais uma vez, é manifestamente evidente que não é verdade que o Recorrido tenha deixado de auferir a totalidade dos € 980,00.
XVII. Assim, entende a Recorrente que o facto 63 da matéria de facto provada deverá passar a constar do elenco dos factos não provados, não resultando da prova produzida que o Recorrido deixou efetivamente de auferir essa quantia mensal.
XVIII. Caso assim não se entenda, considera o Recorrente que qualquer indemnização atribuída ao Recorrido sempre teria de ter em consideração «fatores de correção, sob pena de enriquecimento ilegítimo e injusto ou injustificado», impondo-se a dedução de 20%.
XIX. Conforme decorre da decisão colocada em crise, o Tribunal a quo condenou a ora Recorrente no pagamento ao Recorrido de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 75.000,00, quando este peticionou, a esse título, uma indemnização no montante de € 55.000,00.
XX. Não compreendendo a Recorrente em que concretos fundamentos se baseou o Tribunal a quo para proferir a sua decisão.
XXI. Ora, não pode a Recorrente concordar com o valor fixado pelo Tribunal a quo, que, com o devido respeito, se revela desproporcional e excessivo.
XXII. Na sentença proferida, o Tribunal a quo refere que os danos morais do Recorrido devem ser aferidos com recurso à equidade.
XXIII. Entende a Recorrente que, para o efeito, sempre deverão ser consideradas, no âmbito da resolução dos litígios de acordo com juízos de equidade, a evolução jurisprudencial no arbitramento das indemnizações.
XXIV. No entanto, em nenhum local da sentença agora proferida, o Tribunal a quo menciona ou cita decisões em que se baseou para fixar tal valor da indemnização, diga-se, largamente superior ao peticionado pelo Recorrido, valor este que, no nosso entendimento, é deveras excessivo.
XXV. Numa situação em que a incapacidade de que ficou a padecer o Autor é superior à do Recorrido em 60% e o dano estético é também superior ao do Recorrido (diferença de 3 para 4), sendo o quantum doloris em ambos os casos de 5/7, foi fixada a indemnização por danos não patrimoniais em € 60.000,00, montante inferior àquele em que foi condenada a Recorrente.
XXVI. Verificando-se uma situação mais gravosa do que a sub judice, tendo sido arbitrada uma indemnização inferior à agora fixada pelo Tribunal a quo (€ 75.000,00).
XXVII.Com o devido respeito, deverá ter-se em consideração todas as circunstâncias do caso concreto, compará-las com outras situações similares, e até mais gravosas, de forma a determinar uma indemnização justa, adequada e equilibrada, atendendo as normas legais e aos princípios de direito aqui aplicáveis, o que não aconteceu no caso aqui em apreço.
XXVIII. Nem todos os danos não patrimoniais são passíveis de ser indemnizados, só devendo ser objeto de indemnização aqueles danos suficientemente graves que clamem por uma tutela do direito.
XXIX. E, mesmo nesses casos, tem necessariamente de existir uma ponderação, caso a caso, por parte do Tribunal, tendo em consideração, inclusivamente, as decisões judiciais já proferidas anteriormente sobre esta matéria, com o intuito de se obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
XXX. Perante todo o supra exposto, a Recorrente entende que mal andou o Tribunal a quo ao fixar a título de danos não patrimoniais uma indemnização correspondente a € 75.000,00.
XXXI. Termos em que, considerando a idade do Recorrido à data do acidente e comparando as sequelas descritas nos acórdãos citados, em sinistrados muito mais novos que o aqui Autor, deverá ser revogado o segmento da sentença que fixa o valor da indemnização por danos não patrimoniais em € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), e substituindo-se por outro que fixe uma indemnização não superior a € 30.000,00.»
O Recorrido apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, pugnando pela rejeição do recurso relativo à matéria de facto por falta de cumprimento dos pressupostos legais e pela falta de fundamento relativamente à matéria de direito, mais considerando adequados os montantes indemnizatórios atribuídos em 1.ª Instância.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) do valor da indemnização por perda da capacidade de ganho;
iii) do valor da indemnização pelos danos de natureza não patrimonial.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1) No dia 9 de março de 2018, pelas 08.00 horas, na Estrada da (…), na freguesia da União das freguesias da Sé e S. Pedro, concelho de Faro, no sentido sul - norte, à velocidade de 60 km horários, circulava o veículo ligeiro de passageiros, de marca Toyota, modelo (…), de matrícula (…), propriedade de (…) e conduzido por (…) com o conhecimento e autorização da sua proprietária (artigos 1º a 3º e 6º da petição inicial).
2) Quando o veículo de matrícula (…) se encontrava a cerca de 20/30 metros de uma passadeira para peões existente sensivelmente em frente ao prédio com o n.º (…) de polícia, a sua condutora, porque circulava desatenta ao trânsito que se processava naquela via aquela hora, seja ele pedonal ou automóvel, não se apercebeu que o Autor (…) se encontrava a proceder à travessia da faixa de rodagem, da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha seguido pelo veículo, utilizando, para esse efeito, a sobredita passadeira para peões (artigo 7º a 10º da petição inicial).
3) A condutora do veículo de matrícula (…), quando avistou o peão ainda travou mas a estrada estava molhada em consequência da chuva intensa que se fazia sentir e o veículo derrapou (artigos 11º e 12º da petição inicial).
4) Por sua vez, o Autor ao se aperceber que o veículo automóvel estava descontrolado, ainda conseguiu desviar-se ligeiramente, contudo, não conseguiu evitar que o veículo automóvel lhe viesse a embater no seu braço direito, provocando a sua projeção e queda, tendo o peão ficado prostrado a ocupar parcialmente a faixa de rodagem (artigos 13º a 15º da petição inicial).
5) O mencionado atropelamento ocorreu numa faixa de rodagem de traçado reto, de piso betuminoso, sendo constituída por dois corredores de circulação, cada um afeto ao seu sentido de marcha (artigo 16º da petição inicial).
6) Após ter sido colhido pelo veículo de matrícula (…), o corpo do Autor ainda veio a cair, de forma totalmente desamparada, no pavimento da Estrada da (…), tendo sido nesse local que o Autor permaneceu, com um quadro álgico relevante, até ser encaminhado para a entrada do prédio com o n.º (…) de polícia, em face da chuva intensa que se fazia sentir, local esse onde permaneceu até ser socorrido pelo INEM (artigos 39º e 40º da petição inicial).
7) O Autor foi transportado pelo INEM para o Centro Hospitalar Universitário do Algarve, tendo dado entrada nas urgências dessa unidade hospitalar (artigo 41º da petição inicial).
8) Efetuou um RX, o qual revelou que o Autor apresentava uma luxação do ombro direito (artigo 43º da petição inicial).
9) Após realizar uma redução incruenta, o Autor veio a realizar um novo RX ao ombro, tendo recebido alta hospitalar nesse mesmo dia com indicação de imobilização braquial e medicação analgésica para as dores (Brufen e Ben-u-ron) (artigos 44º e 45º da petição inicial).
10) Como as dores não diminuíram e como o Autor começou a perder alguma sensibilidade na mão direita, este voltou à urgência dessa unidade hospitalar no final desse mesmo dia, episódio de urgência esse que ficou registado sob o n.º … (artigo 46º da petição inicial).
11) Voltou a efetuar dois RX ao seu ombro direito, tendo-lhe sido administrada 10 mg de metociopramida,100 mg de Tramadol e 2000 mg de Metamizol magnésio (artigos 47º a 50º da petição inicial).
12) Alguma dessa medicação foi tomada por injeção intravenosa (artigo 51º da petição inicial).
13) Voltou a ter alta hospitalar pelas 22:30 horas desse dia 9 de março (artigo 52º da petição inicial).
14) O quadro álgico voltou a agudizar-se no dia seguinte, provocando a impotência funcional do seu membro superior direito (artigo 53º da petição inicial).
15) Sendo que o Autor voltou a recorrer à urgência do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, quando seriam 22.15 horas do dia 10 de março – vide episódio de urgência com o n.º … (artigo 54º da petição inicial).
16) Na triagem de Manchester efetuada, foi atribuída uma prioridade laranja (muito urgente), tendo sido identificada uma dor severa, a qual foi quantificada num grau 8, numa escala crescente 0/10 e voltou a fazer vários exames radiológicos e múltiplas análises (artigos 55º e 56º da petição inicial).
17) Vieram-lhe a ser administrados mais medicamentos (Carvedilol, Insulina humana, Diazepam, Petidina, Tramadol, Metoclapramida, Metamizol magnésico e Cetrolac), sendo que alguns o foram através de soro (artigo 57º da petição inicial).
18) Foi observado por Medicina Geral e Familiar e Ortopedia e teve alta hospitalar apenas no dia seguinte, por volta da hora do almoço (artigos 58º e 59º da petição inicial).
19) A medicação para as dores foi alterada passando o Autor a tomar Tridural e Metoclapramida Labestal (artigo 60º da petição inicial).
20) O seu corpo tinha sinais de derrames de sangue desde o ombro direito até ao umbigo (artigo 62º da petição inicial).
21) Não conseguia mexer o ombro e o braço direito (artigo 63º da petição inicial).
22) Não conseguia cuidar da sua higiene pessoal e não conseguia vestir-se ou calçar-se, são conseguia alimentar-se sem ajuda (artigos 64º a 67º da petição inicial).
23) Como a sua situação não melhorava, o Autor, no passado dia 15.3.2018, recorreu aos serviços do Sr. Dr. (…), médico no Hospital de Loulé, tendo realizado um novo RX (artigo 68º da petição inicial).
24) Receitou-lhe ainda a realização de um eletromiograma (EMG) ao seu membro superior direito (artigo 70º da petição inicial).
25) Pese embora o Autor tomasse abundasse medicação analgésica, o certo é que, o quadro de dor, se mantinha e até se exponenciava em alguns momentos do dia, tornando-se praticamente impossível ao Autor aguentar as mesmas (artigo 72º da petição inicial).
26) O Autor, no passado dia 24.3.2018, voltou a recorrer à urgência do Centro Hospitalar Universitário do Algarve porque o seu braço e mão direita estavam muito inchados, não tinha sensibilidade nesse membro e não conseguia mexer nem o pulso, nem os dedos (artigos 73º e 74º da petição inicial).
27) Voltou a fazer um RX, com incidência no ombro, tórax, cotovelo e antebraço (artigo 75º da petição inicial).
28) Foi novamente à consulta do Sr. Dr. (…) no dia 10.4.2018 – tendo retirado a imobilização do braço e iniciado sessões de MFR (artigo 76º da petição inicial).
29) Foi-lhe receitado a realização de uma EMG e, de acordo com a eventual evolução clínica, eventual ecografia e ressonância magnética (artigo 77º da petição inicial).
30) A 12 de abril de 2018, o Autor foi contactado pela Ré para no dia seguinte deslocar-se à Clínica Avenida em Faro, para ser observado pelo Sr. Dr. … (artigo 78º da petição inicial).
31) O Autor compareceu a essa consulta, tendo o Sr. Dr. (…), após examinar o seu ombro e braço, entendeu que deveria ser realizada uma eletromiografia (EMG) ao ombro (artigo 79º da petição inicial).
32) Deslocou-se novamente à consulta médica agendada na Clínica (…), no passado dia 27.4.2018 (artigo 81º da petição inicial).
33) No dia 15.5.2018 realizou a eletromiografia no Hospital da Luz, em Lisboa, tendo esse exame identificado uma “…severa lesão do plexo braquial direito, ao nível da clavícula” (artigo 82º da petição inicial).
34) No dia 16.5.2018 voltou ao Hospital da Luz em Lisboa para ser observado em consulta do Sr. Dr. (…), especialista em cirurgia plástica reconstitutiva, consulta essa que repetiu no dia 6.6.2018 (artigos 83º a 85º da petição inicial).
35) No dia 8.6.2018 realizou novos exames radiológicos e novas análises clínicas no Hospital da Luz e voltou a ir à consulta do Sr. Dr. … (artigo 86º da petição inicial).
36) Foi orientado para tratamento cirúrgico no Hospital da Luz que veio a realizar no passado dia 17.6.2018 (artigo 87º da petição inicial).
37) Onde, sob anestesia geral e com utilização de material de microcirurgia e meios óticos de aumento, se procedeu ao nível da região supraclavicular direita a:
- Exploração supra e retroclavicular do plexo braquial direito, constatando-se intensa fibrose em torno de todo o plexo braquial;
- Neurólise intra e extraneural de todo o plexo braquial, bem como dos seus ramos colaterais e terminais;
- Constatou-se a integridade anatómica e resposta à neuroestimulação destes elementos nervosos;
- Hemostase cuidadosa;
- Aplicação de cola de fibrina em torno das estruturas nervosas;
- Encerramento das feridas operatórias por planos;
- Penso, tal como resulta de fls. 68-vº, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 88º da petição inicial)
38) Fez tratamentos de fisioterapia em número não concretamente apurado e teve diversas consultas de acompanhamento (artigo 89º da petição inicial).
39) Voltou a realizar uma eletromiografia no dia 20.12.2018 – documento 28 a qual concluiu, entre outras, que “…os músculos dependentes do cordão medial do plexo braquial…” são “…os mais afetados…”, tendo-se detetado “…apenas uma unidade motora.” tal como resulta de fls. 69-vº e 70, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 90º da petição inicial).
40) Continuou a realizar sessões de fisioterapia, sempre sob a orientação terapêutica do Sr. Dr. … (artigo 91º da petição inicial).
41) E orientação funcional do médico fisiatra Dr. (…), no Hospital Particular do Algarve (artigo 92º da petição inicial).
42) Comparativamente a setembro de 2018, o Autor evoluiu favoravelmente apresentando força muscular no ombro de grau 1 abdutores =>2+, grau 3 em extensores e flexores, grau 4 adutores, no cotovelo flexores grau 3 => 4 e extensores grau 3 => 4, no punho flexores e extensores grau 2, nos dedos extensores grau 2 e flexores mas apresentava ainda complicação tardia de encurtamento dos grupos flexores dos dedos da mão à direita com anquilose das interfalângicas proximais concluindo-se por plexopatia braquial incompleta, com potencial de reabilitação requerendo período longo de reabilitação, sugerindo-se manter plano de MFR por mais seis meses (e enquanto houver ganhos funcionais) com terapia funcional / terapia da mão, tendo como objetivo (i) o aumento das amplitudes de movimento, força e controlo motor, (ii) a estimulação elétrica de pontos motores, (iii) treino de destreza e (iv) execução das atividades de vida diária e a realização de nova eletromiografia tal como resulta de fls. 71, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 93º a 98º da petição inicial).
43) Em consequência do embate, o Autor:
I) Sofreu traumatismos com dor no ombro, braço e mão direitos e apresenta:
II) No membro superior direito – cicatriz operatória antero e infra clavicular direita com 12 cm; amiotrofia escapular e braquial (2 cm) e antebraço (1 cm), limitação da mobilidade do ombro (abdução de 70º flexão palamar de 30º do punho com dorsiflexão do punho de 60º e mão neuropática (plexopatia do plexo braquial com força muscular grau IV);
III) Consolidação das lesões em 30-10-2020;
IV) Défice Funcional Temporário Total de 19 dias;
V) Défice Funcional Temporário Parcial de 948 dias;
VI) Uma Repercussão Temporária na atividade Profissional Total de 930 dias;
VII) Uma Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial de 37 dias;
VIII) um Quantum Doloris no grau 5/7;
IX) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100 (plexopatia braquial direita);
X) Dano Estético Permanente no grau 3/7;
XI) Em termos de Repercussão Permanente na atividade Profissional, as sequelas são compatíveis com a atividade de empresário no ramo automóvel embora com esforços acrescidos, mas não são compatíveis com a sua atividade de mecânico de precisão no ramo automóvel;
XII) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas no grau 3/7;
XIII) O Autor terá de fazer tratamentos regulares e periódicos de fisioterapia (artigos 98º, 102º a 112º e 170º da petição inicial).
44) O Autor é destro não consegue utilizar a sua mão direita para as mais elementares tarefas do dia-a-dia, como escrever, comer, apertar os botões da camisa, apertar ou desapertar as calças, lavar os dentes, pentear-se, manusear um telemóvel ou um comando de televisão, etc. (artigos 114º e 115º da petição inicial).
45) Atualmente o Autor consegue conduzir por ter sido feita uma adaptação nas mudanças num dos seus veículos, tendo estado 3 anos sem conduzir, conduzindo apenas dentro da cidade de Faro onde reside (artigo 116º da petição inicial).
46) O Autor tem carta de condução que lhe permite conduzir veículos ligeiros, motas e veículos pesados, sendo proprietário de dois jipes e de uma carrinha (artigo 117º da petição inicial).
47) O Autor é ainda possuidor de carta de marinheiro, sendo proprietário de um barco (artigo 119º da petição inicial).
48) Sendo certo que pescava e caçava com muita regularidade (artigo 120º da petição inicial).
49) Em face das limitações que padece o Autor não vai poder mais pescar ou caçar, como não vai poder mais conduzir o seu barco (artigo 121º da petição inicial).
50) Impossibilidades essas que muito o entristecem já que o Autor retirava delas muito prazer e satisfação pessoal (artigo 122º da petição inicial).
51) O Autor é membro da Direção Nacional da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas, com sede no (…) e, bem assim, deputado da Assembleia Municipal de Faro, eleito nas listas do Partido (…) e militante ativo e empenhado desse mesmo partido político (artigo 123º da petição inicial).
52) Atividades essas que fazia de forma autónoma e independente (artigo 125º da petição inicial).
53) O Autor precisou que o transportassem para essas reuniões políticas, associativas e partidárias (artigo 126º da petição inicial).
54) O Autor necessita que o ajudem a vestir-se, a comer e a ir à casa de banho (artigo 127º da petição inicial).
55) Pelo que, para não passar vergonhas, o Autor tem abdicado dessa sua vida política, associativa e partidária (artigo 128º da petição inicial).
56) O que agrava a sua tristeza e indignação (artigo 129º da petição inicial).
57) Na altura do acidente, o Autor tinha 72 anos de idade, tendo nascido em 11 de maio de 1945 (artigo 130º da petição inicial-parte).
58) O Autor era um homem dinâmico, alegre, independente e de bem com a vida (artigo 130º da petição inicial-parte).
59) À data do acidente exercia a atividade profissional de mecânico de automóveis, sendo especialista em retificar e “encamisar” cilindros em blocos de motor, retificação de cambotas e cabeças de motor, reconstrução de cabeças de motor em alumínio, soldaduras diversas e serviço de torno (artigo 131º da petição inicial).
60) O Autor desempenhava esses serviços numa oficina de sua propriedade denominada de “Auto Reparadora” de (…), com sede na Rua (…), n.º 34, 8000-262 Faro (artigo 132º da petição inicial).
61) Essa oficina prestava igualmente outros serviços de reparação automóvel, no entanto, o Autor é que era o único que realizava os serviços afetos à sua especialidade de retificações, soldaduras e serviço de torno (artigo 133º da petição inicial).
62) O Autor prestava ainda esses serviços especializados para outras oficinas de reparação automóvel, situadas na zona de Faro, pois nenhuma delas tinha essa especialidade (artigo 134º da petição inicial).
63) O Autor, no desempenho dessa sua atividade de mecânico, auferia uma remuneração mensal média mínima de € 980,00, não tendo mais auferido esse rendimento depois do acidente (artigo 135º da petição inicial).
64) A sua oficina apresentou no ano fiscal de 2016, a título de vendas e prestações serviços, uma faturação de cerca de € 51.695,69 (artigo 136º da petição inicial).
65) No ano fiscal de 2017 esse valor cifrou-se em € 43.292,75 (artigo 137º da petição inicial).
66) Todo esse rendimento acrescia ao montante que o Autor recebia da Segurança Social, atenta a sua qualidade de reformado por velhice (artigo 138º da petição inicial).
67) O Autor vivia (como vive) com a sua esposa (artigo 139º da petição inicial).
68) Era com todo esse rendimento que o Autor suportava todos os seus encargos pessoais, profissionais e lúdicos (artigo 140º da petição inicial).
69) Designadamente, despesas com condomínio, água, luz, televisão e telecomunicações, combustível, seguros, gás, portagens, estacionamentos, medicamentos, alimentação, vestuário, licenças, despesas de manutenção e conservação (artigo 141º da petição inicial).
70) O Autor, desde a data do acidente, apenas recebe o valor da sua reforma por velhice, nada tendo recebido da segurança social em consequência da sua incapacidade temporária para o trabalho (artigo 142º da petição inicial).
71) O Autor necessitará durante toda a sua vida da ajuda e acompanhamento de terceira pessoa, designadamente, na preparação de refeições e alimentação, na higiene pessoal, na manutenção do seu corpo, para se vestir e calçar (artigo 173º da petição inicial).
72) Durante um período de cerca de duas horas, durante 7 dias por semana (artigo 174º da petição inicial).
73) O Autor despendeu em despesas médicas, medicamentosas e outras (transportes, farmácias, consultas e despesas diversas) a quantia de € 558,80 (artigos 176º e 178º da petição inicial).
74) O acidente, os ferimentos, os tratamentos a que o Autor teve de se submeter causaram-lhe, causam e causar-lhe-ão dores, desespero, ansiedade, dependência e perda de autonomia (artigo 184º da petição inicial).
75) Aos 72 anos de idade o Autor sabe que vai viver permanentemente nesta dependência e com limitações, sentindo-se um fardo e a sua vida um verdadeiro inferno (artigo 187º da petição inicial).
76) No contexto familiar e afetivo, a sua situação física conduz a uma sobrecarga de distress devido, sobretudo, à instabilidade emocional resultante da sua incapacidade para desempenhar as funções inerentes à sua condição de marido, além da sua incapacidade de prover ao seu próprio sustento e da ajuda que prestava habitualmente à sua família mais próxima (artigo 188º da petição inicial).
77) O Autor perdeu o interesse no relacionamento social, associativo, político e até partidário, limitando tais atividades (artigo 193º da petição inicial).
78) Por isso, pessoa outrora alegre e de bem com a vida, realizada na sua profissão, feliz na sua família e zeladora da sua autonomia e independência, está hoje transformada num ser deprimido e triste, sem qualquer gosto e interesse pela vida (artigo 194º da petição inicial).
79) Em virtude do acidente e das sequelas que ficou a padecer jamais poderá realizar gestos e atividades que muito gostava e que faziam parte do seu quotidiano, como sejam, por exemplo, fazer caminhadas, caçar, pescar, conduzir motos e veículos pesados, conduzir o seu barco e, acima de tudo, poder trabalhar como mecânico na retificação, soldadura e serviço do torno (artigo 195º da petição inicial).
80) Pelo menos, com a independência e autonomia que fazia antes do acidente (artigo 197º da petição inicial).
81) Ao nível pessoal, denotam-se fragilidades psico-emocionais decorrentes do seu quadro clínico, que afetam determinantemente o seu bem-estar e ajustado funcionamento psicológico, tais como sentimentos de impotência e revolta, embotamento afetivo, pesadelos e desânimo são uma constante (artigo 202º da petição inicial).
82) O proprietário do veículo de matrícula (…) transferiu para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação provocados pelo veículo (artigo 32º da petição inicial).

B – As questões do Recurso
i) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A Recorrente considera que a factualidade inserta no n.º 63 dos factos provados deve ser julgada não provada, atento o teor das declarações de IRS relativas aos rendimentos dos anos de 2018 e 2019 juntas pelo Recorrido.
Nestes termos, a Recorrente especificou devidamente os itens a que alude o n.º 1 do artigo 640.º do CPC. Uma vez que a pretensão recursiva assenta em meios de prova de natureza documental, não tem cabimento a observância dos ónus consagrados no n.º 2 do artigo 640.º do CPC.
Está em causa a seguinte factualidade:
63) O Autor, no desempenho dessa sua atividade de mecânico, auferia uma remuneração mensal média mínima de € 980,00, não tendo mais auferido esse rendimento depois do acidente (artigo 135º da petição inicial).
Mais está provado que:
64) A sua oficina apresentou no ano fiscal de 2016, a título de vendas e prestações serviços, uma faturação de cerca de € 51.695,69 (artigo 136º da petição inicial).
65) No ano fiscal de 2017 esse valor cifrou-se em € 43.292,75 (artigo 137º da petição inicial).
66) Todo esse rendimento acrescia ao montante que o Autor recebia da Segurança Social, atenta a sua qualidade de reformado por velhice (artigo 138º da petição inicial).
67) O Autor vivia (como vive) com a sua esposa (artigo 139º da petição inicial).
68) Era com todo esse rendimento que o Autor suportava todos os seus encargos pessoais, profissionais e lúdicos (artigo 140º da petição inicial).
(…)
70) O Autor, desde a data do acidente, apenas recebe o valor da sua reforma por velhice, nada tendo recebido da segurança social em consequência da sua incapacidade temporária para o trabalho (artigo 142º da petição inicial).
Em sede de motivação de tal decisão foi exarado o seguinte:
«Factos 63 a 70 – Provados com base nas declarações de IRS do Autor de fls. 79 a 101 e 200 a 222, na informação da Segurança Social da qual resulta que o Autor está inscrito como trabalhador independente com início em 01-02-1982 e termo das remunerações em maio de 2010, sendo pensionista de velhice desde 30 de junho de 2010, com uma pensão no valor mensal de € 423,39, não possuindo outras prestações de fls. 185 e 194-vº a 196, na Informação da Segurança Social relativa à pensão do Autor no ano de 2017, de fls. 101-vº e 102, bem como nas declarações das testemunhas (…), (…), (…), (…), (…) e (…) relativamente à situação do Autor viver com a esposa, a qual descreveu as alterações na sua situação económica com perda de rendimentos, merecendo credibilidade ao Tribunal, até porque não imputou a diminuição de clientes na oficina apenas ao facto do Autor já não poder trabalhar mas também à situação de crise em que vivemos, sendo das regras da experiência comum que as pessoas usam os seus rendimentos mensais para custar a suas despesas.
A resposta restritiva ao facto 63) deve-se à circunstância de resultar da documentação fiscal dos autos que o rendimento médio dos 2 anos anteriores ao acidente, sobre o qual foi calculada uma percentagem de 25% de lucro dividido por 12 meses, aí se obtendo o valor apurado (não havendo motivos para a afastar o ano de 2016 dado que este tipo de rendimentos não é estanque e não há motivos para que se conclua que em 2018 fossem diminuir ou aumentar).»
Ora vejamos.
As declarações de IRS juntas evidenciam, efetivamente, que no ano fiscal de 2016, a título de vendas e prestações serviços, a contabilidade organizada relativa à atividade da oficina do Recorrido registou faturação de € 51.695,69 (n.º 64 dos factos provados) e que no ano fiscal de 2017 esse valor se cifrou em € 43.292,75 (n.º 65 dos factos provados).
Mais evidenciam que, no ano fiscal de 2018, a título de vendas e prestações serviços, a contabilidade organizada relativa à atividade da oficina do Recorrido registou faturação de € 51.601,23 e que no ano fiscal de 2019 esse valor se cifrou em € 38.204,55.
Afirmado que está que se trata do rendimento que acrescia ao montante que o Autor recebia da Segurança Social a título de reforma por velhice (n.º 66), embora não tendo auferido da segurança social outros rendimentos/pensões senão a reforma por velhice (n.º 70), que era com esse rendimento que suportava todos os seus encargos pessoais, profissionais e lúdicos (n.ºs 68 e 69), as declarações fiscais relativas aos rendimentos dos anos de 2018 e de 2019 implicam se julgue não provado que, depois do acidente, o Autor não mais auferiu rendimento decorrente do desempenho da sua atividade de mecânico.
O que é ainda corroborado pelo facto de, a título de rendimentos provenientes de trabalho dependente ou seja, para além das pensões processadas pela segurança social (NIF …), as declarações atestarem a quantia de € 457,92 auferida pelo Autor no ano de 2016, a quantia de € 686,88 auferida pelo Autor no ano de 2017, a quantia de € 381,60 auferida pelo Autor no ano de 2018 e a quantia de € 1.755,36 auferida pelo Autor no ano de 2019.
As declarações fiscais não constituem único meio de prova dos rendimentos auferidos, admitindo-se essa demonstração, por outros meios. Igualmente se admite a demonstração, por ouros meios de prova, de rendimentos superiores aos constantes dessas declarações. Porém, declarados que sejam os rendimentos junto da autoridade tributária, cumpre tomá-los como verificados, não obstante a afirmação por prova testemunhal de que ocorreu perda de rendimentos.
Mantém-se, no entanto, provado o segmento inicial, a afirmação de que o Autor, no desempenho dessa sua atividade de mecânico, auferia uma remuneração mensal média mínima de € 980,00, até porque a Recorrente não indica fundamento que o coloque em causa.
Termos em que o n.º 63 dos factos provados passa a contemplar a seguinte redação:
63) O Autor, no desempenho dessa sua atividade de mecânico, auferia uma remuneração mensal média mínima de € 980,00 (novecentos e oitenta euros).

ii) Do valor da indemnização por perda da capacidade de ganho
O Recorrente considera excessiva a verba de € 53.900,00 fixada em 1.ª Instância a título de indemnização pela perda da capacidade de ganho até aos 80 anos de vida, pugnando pela respetiva redução em 20%, o que implica na indemnização em montante nunca superior a € 43.120,00.
Ora vejamos.
Está em causa a afetação da pessoa do ponto de vista funcional, que é determinante de consequências negativas a nível da sua atividade geral, justificando a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Importa, pois, determinar o montante justo e adequado a indemnizar o dano aqui em discussão, a perda de capacidade de ganho decorrente do défice funcional de integridade físico-psíquica de que o Recorrido ficou afetado.
Em temos jurisprudenciais, vem sendo entendido que, por um lado, o dano biológico é o prejuízo que se repercute nas potencialidades e na qualidade de vida do lesado, afetando-lhe o seu viver quotidiano na sua vertente laboral, recreativa, sexual, social ou sentimental, determinando-lhe a perda de faculdades físicas ou intelectuais em termos de futuro, deficiências que se agravarão com a sua idade. E, por outro, que esse dano é indemnizável de per se, como dano patrimonial futuro, independentemente de se verificarem ou não consequências em termos de diminuição de proventos por parte do lesado. Tendo o lesado ficado com incapacidade permanente e com sequelas em termos de rebate profissional, esforço acrescido ou particular repulsa, deve aquela incapacidade relevar em termos de prejuízo funcional, ou seja, do chamado dano biológico.[1] O que decorre, desde logo, da circunstância de que “o estado de saúde normal é a premissa indispensável para uma capacidade produtiva normal.”[2]
No que respeita aos critérios a adotar para fixação do quantum indemnizatório, tem-se entendido que assentam na equidade, à luz do regime inserto no artigo 566.º, n.º 3, do CC. Porém, «a utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, cuja prossecução implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso. Os critérios seguidos pela Portaria n.º 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25/06, destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extra-judicial, e se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem ao critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações fixado pelo Código Civil.»[3]
À luz de tais ensinamentos, bem como dos parâmetros que vêm sendo aplicados pelos tribunais superiores[4], importa levar em linha de conta a seguinte factualidade provada:
- o Recorrido contava, à data do acidente, 72 anos de idade;
- a esperança de vida prolonga-se até aos 73,3 anos;[5]
- a idade legal de acesso à reforma é, atualmente, de 66 anos e 4 meses;
- o Recorrido ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 20 pontos, sendo as sequelas compatíveis com a atividade de empresário no ramo automóvel embora com esforços acrescidos, mas não com a atividade de mecânico de precisão no ramo automóvel;
- o A auferia a remuneração média mensal que de € 980,00.
Por aplicação das regras decorrentes da Portaria n.º 377/2008 e respetivo anexo IV (artigos 3.º, alínea b) e 8.º da citada Portaria), na redação atualizada, a indemnização ascenderia, segundo o simulador da Associação Portuguesa de Seguradores[6], ao montante de € 6.218,40.
Procedendo às operações inerentes a tal tabela, ou seja, multiplicando por 20 o valor de € 256,50 constante da tabela atenta a idade do Recorrido à data do acidente, alcança-se o montante de € 5.130,00, valor fixado com referência à RMMG de 2007, no montante de € 403,00[7]. Tomando por referência o rendimento mensal apurado (€ 980,00) e aplicando a regra matemática de três simples, obtém-se o montante indemnizatório de € 12.474,93.
Trata-se do montante apontado como critério orientador para efeitos de apresentação, pelas seguradoras aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, em caso de incapacidade permanente parcial – ver artigo 1.º da referida portaria.
Já aplicando a tabela inserta no Ac. do STJ de 04/12/2007[8], considerando 8 anos de vida ativa acolhidos em 1.ª Instância e o fator 7,01969, alcança-se o valor de € 19.262,02, a que se reduziria 1/3 pela antecipação da disponibilidade do capital, implicando em € 12.841,34. Tal construção considera uma taxa de juro de 3%, manifestamente desajustada dos tempos presentes.
Afigura-se, no entanto, que a utilização de tais instrumentos só pode servir para determinar o minus indemnizatório[9], o qual terá de ser corrigido com vários elementos que possam conduzir a uma indemnização justa[10], já que tais tabelas não contemplam, designadamente, os seguintes itens:
- o prolongamento da IPP para além da idade de reforma (entrando na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 65 anos, não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter atividade depois dela);
- a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade e do próprio aumento de produtividade;
- a tendência para o aumento da vida ativa para se atingir a reforma nem o aumento da própria longevidade;
- a inflação;
- a progressão na carreira e, decorrentemente, a progressão salarial.[11]
Por outro lado, afigura-se não ser devida a redução da quantia apurada em 1/3 a título de compensação da vantagem decorrente da antecipação do capital, desde logo atentas as reduzidas taxas de juros que atualmente se registam e perspetivam.
Considerando tudo o que se deixa exposto, nenhum obstáculo se apresenta à pretensão da Recorrente em deduzir 20% ao montante fixado em 1.ª Instância, o que importa na verba de € 43.120,00 (quarenta e três mil cento e vinte euros).

iii) Do valor da indemnização pelos danos de natureza não patrimonial
Em sede de danos não patrimoniais, o montante indemnizatório fixado em 1.ª Instância pelos danos sofridos pelo recorrido (que tinha peticionado € 55.000,00) ascende a € 75.000,00. O que a recorrente coloca em crise, sustentando que tal montante deve fixar-se em valor não superior a € 30.000,00.
Ora, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – artigo 496.º do CC. O montante adequado a indemnizá-los, nos termos do disposto no artigo 496.º, n.º 3, 1.ª parte e 494.º do CC, resultará de um julgamento de equidade que terá por base o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções, atendendo às circunstâncias concretas de cada caso tendo em conta a situação económica do agente e do lesado, bem como o grau de culpa daquele, sem esquecer os padrões geralmente adotados pela jurisprudência.
Estão em causa prejuízos de natureza infungível em que, não sendo possível uma reintegração por equivalente, importa atribuir ao lesado uma compensação que proporcione certas condições decorrentes da utilização do dinheiro. A indemnização por tais danos, «sem embargo da função punitiva que, outrossim, reveste, tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indiretamente, esses danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar a havido sofrimento moral»[12]. Abrange, «nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de atividades agradáveis».[13] O valor da indemnização deve ter um alcance significativo, que não simbólico ou miserabilista[14], apurado segundo um juízo de equidade (artigo 496.º, n.º 3, do CC), efetivando a procura da justiça do caso concreto, assente numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso, sem olvido do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), iluminador da uniformização de critérios, tendo em atenção os padrões de indemnização normalmente adaptados na jurisprudência em casos similares.[15]
Considerando toda a factualidade elencada que contende com tal questão, que traduz os padecimentos sofridos pelo A em decorrência do evento e das lesões e alterações físico-funcionais que regista, o quantum doloris de grau 5/7, o dano estético de grau 3/7, a falta de autonomia para certas atividades da vida diária e de lazer a que se dedicava, levando em linha de conta os montantes indemnizatórios atribuídos em casos concretos submetidos a apreciação superior[16], afigura-se adequado fixar em € 40.000,00 (quarenta mil euros) a compensação a atribuir ao Recorrido a tal propósito.

Termos em que procedem parcialmente as conclusões da alegação do presente recurso.

As custas recaem sobre a Recorrente e o Recorrido na proporção do decaimento – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela parcial procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida relativamente à condenação nos montantes de € 53.900,00 por lucros cessantes e de € 75.000,00 por danos não patrimoniais, condenando-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 43.120,00 (quarenta e três mil e cento e vinte euros) por lucros cessantes e a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) por danos de natureza não patrimonial, mantendo-se, quanto ao mais, o decidido em 1.ª Instância.

Custas pela Recorrente e Recorrido na proporção do decaimento.

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Évora, 11 de janeiro de 2024

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Francisco Matos
Anabela Luna de Carvalho


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[1] Ac. STJ de 08/09/2009.
[2] Álvaro Dias, in Dano Corporal. Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios, 2001, pág. 133.
[3] Cfr. Ac. STJ de 04/06/2015 (Maria dos Prazeres Beleza) e demais acórdãos aí citados.
[4] Ac. STJ de 25/11/2009, proc. n.º 397/03.0GEBNV.S1 A/lesado com 8 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 80% acrescida de 5% de dano futuro, indemnização de € 350.000,00; ac. STJ de 11/09/2014, no proc. n.º 3437/07.0TBVCT.G1.S1 Autora/lesada com 18 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 19 pontos, indemnização correspondente a danos patrimoniais futuros fixada em € 72.000,00; acórdão do STJ de 04/06/2015, no proc. n.º 1166/10.7TBVCD.P1.S1, Autora/lesada com 17 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 16,9 pontos, indemnização pelos danos patrimoniais futuros em € 55.000,00; acórdão do STJ de 26/01/2017, no proc. n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1 Autora/lesada com 29 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 13 pontos, indemnização pelo dano biológico em € 70.000,00; acórdão STJ de 06/04/2021, proc. n.º 2908/18.8T8PNF.P1.S1, A/lesado com 6 anos de idade à data do acidente, incapacidade de 50 pontos, indemnização em € 300.000,00.
[5] Cfr. www.pordata.pt.
[6] https://www.apseguradores.pt/pt/ferramentas/simuladores/valoriza%C3%A7%C3%A3o-de-dano-corporal
[7] DL n.º 2/2007, de 03/01.
[8] Relatado por Mário Cruz, onde publicita “tabela acessível a qualquer jurista ou cidadão, que, em seu entender, permite através de operações aritméticas simples, chegar a resultados muito semelhantes na determinação da indemnização da IPP, como dano patrimonial futuro, tendo apenas como suporte a aplicação do programa informático Excell à fórmula utilizada pelo STJ no Acórdão de 1994.05.05 e que foi construída tendo como referência a atribuição de 3% ao fator aí indicado como taxa de juro previsível no médio e longo e prazo, taxa essa que, apesar dos anos, tem vindo a confirmar-se dada a estabilidade do euro.”
[9] Veja-se que o valor alcançado com a aplicação da tabela no acórdão de 4/12/2007, de €53 123,782 conduz a indemnização fixada, pela equidade, em € 110.000,00.
[10] Ac. STJ de 04/12/2007 já referido.
[11] Ac. STJ de 04/12/2007 já referido.
[12] Ac. do STJ de 17/01/2008.
[13] Ac. STJ de 26/01/2012.
[14] Cfr. Ac. STJ de 25/06/2002.
[15] Cfr. Acs. STJ de 22/10/2009, de 24/04/2013.
[16] Cfr. montantes das indemnizações arbitradas nomeadamente nos Acs. do STJ de 11/02/2016 (João Trindade), 14/07/2016 (João Trindade), de 16/03/2017 (Maria da Graça Trigo), de 09/01/2018 (José Rainho).