Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
102/21.0T9BNV.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Resulta do teor do artigo 287º, n.º 2, do CPP que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente deve conter as menções previstas no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c) do mesmo código.

Conforme tem vindo a ser unanimemente afirmado pela doutrina e jurisprudência, esta exigência corresponde à materialização de um imperativo constitucional, sendo uma decorrência da estrutura acusatória do processo prevista no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

É assim necessário que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente enuncie claramente os factos que pretende imputar ao arguido e tais factos deverão pelo menos integrar os elementos objectivo e subjectivo de um tipo legal de crime. De outra forma, como também vem entendendo uniformemente a doutrina e jurisprudência, a instrução estará vazia de conteúdo e realizá-la seria de todo em todo inútil, pois não existiria base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido.

Isto porque o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, configura ele mesmo, em substância, um libelo acusatório que irá delimitar tematicamente a fase jurisdicional que se seguirá, devendo assim conter os seus elementos essenciais acima discriminados, para que o arguido poder exercer plenamente o contraditório quanto a estes – neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 138-147.

De resto, como se extrai do artigo 309º, n.º 1, “a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução.”.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No seguimento do r.a.i. apresentando pelo assistente AA, foi proferido o seguinte despacho:

“I – Da (in)admissibilidade legal da instrução:

Analisado o requerimento de abertura de instrução (RAI) do assistente, afigura-se-nos que este não tem a virtualidade de sustentar a abertura da instrução e o prosseguimento do processo, pelos motivos que passaremos a expor.

*

Resulta do teor do artigo 287º, n.º 2, do CPP que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente deve conter as menções previstas no artigo 283º, n.º 3, als. b) e c) do mesmo código.

*

Por outras palavras, deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “a indicação das disposições legais aplicáveis”.

Conforme tem vindo a ser unanimemente afirmado pela doutrina e jurisprudência, esta exigência corresponde à materialização de um imperativo constitucional, sendo uma decorrência da estrutura acusatória do processo prevista no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Isto porque o requerimento de abertura de instrução, quando deduzido pelo assistente, configura ele mesmo, em substância, um libelo acusatório que irá delimitar tematicamente a fase jurisdicional que se seguirá, devendo assim conter os seus elementos essenciais acima discriminados, para que o arguido poder exercer plenamente o contraditório quanto a estes – neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 138-147.

De resto, como se extrai do artigo 309º, n.º 1, “a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução.”.

Daqui se extrai a relevância desta peça processual no âmbito da fase, equiparada portanto à acusação do MºPº.

É assim necessário que o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente enuncie claramente os factos que pretende imputar ao arguido e tais factos deverão pelo menos integrar os elementos objectivo e subjectivo de um tipo legal de crime. De outra forma, como também vem entendendo uniformemente a doutrina e jurisprudência, a instrução estará vazia de conteúdo e realizá-la seria de todo em todo inútil, pois não existiria base factual que permitisse uma eventual pronúncia do arguido.

Vem-se entendendo assim que a falta de enunciação de factos suficientes para integrar o tipo objetivo e subjetivo de crime no RAI do assistente configura uma causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução por “inadmissibilidade legal” desta fase, nos termos do artigo 287º, n.º 3, do CPP1.

Atentando no teor do RAI, no segmento em que respeita à imputação dos factos aos demais arguidos, devemos pois ter em conta o que aí vem alegado e confrontar tais alegações com as disposições incriminadoras em causa, bem como com as normas relevantes da parte geral do Código Penal.

Ora o crime imputado aos arguidos é o de burla qualificada, nos termos p. e p. pelo artigos 217º, e 218º, n.º 2, als. c) e e) do Código Penal.

O artigo 217º, n.º 1 do Código Penal define o crime de burla como a conduta de quem “com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial…”.

Sintetizando, são assim os elementos do tipo legal de burla:

a) A intenção de obter, para si ou outra pessoa, enriquecimento ilegítimo;

b) A indução de outrem em erro sobre determinados factos;

c) Que esse erro resulte de astúcia ou ardil do agente;

d) Que a pessoa enganada pratique atos que lhe causem ou causem a outrem prejuízo patrimonial;

e) Que exista uma relação causal entre os atos causadores de prejuízo e o erro de quem os pratica;

f) O dolo genérico (cognitivo e volitivo) sobre os demais elementos do tipo, para além do dolo específico referido em a).

Alega-se em síntese no RAI que o assistente padece de anomalia psíquica que o impede de discernir e se determinar e muitas vezes de compreender o sentido dos atos que pratica (incapacidade esta que aparentemente não se aplica à celebração de contrato de mandato forense, tendo o assistente assinado pessoalmente a respetiva procuração, sem estar representado por acompanhante).

Mais se alega que, por via dessa doença o arguido toma medicação com efeitos sedativos.

Alega-se também que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no RAI os assistentes, aproveitando-se da incapacidade do assistente e do facto deste estar sob os efeitos sedativos da medicação que toma, o levaram ao Cartório Notarial de …, dizendo-lhe que iria assinar “um documento destinado a beneficiá-lo a ele” (sic), sob a “promessa de elevadíssimas vantagens patrimoniais” (que não são concretizadas), o levaram a assinar um documento cujo teor o assistente não percebeu, tal como não percebeu as consequências desse ato.

Tal documento correspondeu a uma escritura de partilha, por óbito do seu falecido pai na qual:

- os valores das verbas um a quatro não correspondem aos seus valores reais; e foram omitidos os saldos bancários do falecido.

Refere que tal lhe causou prejuízo patrimonial de valor nunca inferior a 15 milhões de euros.

Ora salvo o devido respeito, os factos alegados no RAI são manifestamente insuficientes para que se possa concluir pela existência de qualquer prejuízo patrimonial derivado dessa partilha, muito menos no valor indicado.

Isto porque o RAI não especifica os termos concretos em que essa partilha foi feita, qual o valor aí atribuído às respetivas verbas (por oposição ao seu valor real) e a quem foram adjudicadas as mesmas verbas, por forma a poder concluir-se que a partilha gerou prejuízo patrimonial ao assistente.

Note-se que independentemente do valor atribuído aos bens em sede de partilha, se a partilha efetivamente feita respeitar as quotas relativas de cada um dos herdeiros no património total, então não haverá prejuízo, pois a mera menção na escritura de valores inferiores aos reais não diminui o valor real dos bens em causa.

Por outro lado, a omissão de certos bens patrimoniais em sede de partilha também não causa prejuízo patrimonial ao assistente, até porque estes podem ser alvo de partilha adicional.

O facto de terem sido omitidos bens ou direito da escritura de partilha não faz com que esses bens deixem de integrar esse património autónomo nem os transfere para a esfera patrimonial de outra pessoa que a eles não tenha direito.

Caso esses bens (nomeadamente contas bancárias) tenham sido apropriados por terceiros, poderá estar em causa a prática de crime autónomo, mas já não será o que se investigou nestes autos.

Ora tendo em conta que dos factos narrados no RAI não resulta que do ato praticado pelo assistente tenha resultado para este qualquer prejuízo patrimonial, conclui-se que mesmo que tais factos sejam considerados suficientemente indiciados, ainda assim não será possível operar a pronúncia dos arguidos.

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Termos em que, com os fundamentos expostos, rejeito o RAI do assistente, por inadmissibilidade legal da instrução.

Notifique e, oportunamente, devolva ao MºPº.”

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Inconformado com a referida decisão, dela recorreu o assistente, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. Ao não ter fundamentado, de direito e de facto, a decisão recorrida, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 607 nº 4 do CPC e 726 do CPC (cfr. art 615 do CPC) e art 374 nº 2 do CPP, preceitos que foram interpretados em violação dos princípios constitucionais da confiança, do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade disposto nos artigos 1º, 13º, 20º e 205º da Constituição da República Portuguesa.

2. O Tribunal recorrido deveria ter fundamentado a decisão recorrida, explicando, em termos de lógica comunicacional, em que medida é que, pela matéria alegada e pela prova produzida, entendeu que a pretensão da recorrente não merece provimento, interpretando correctamente o disposto nos artigos 607 nº 4 do CPC e 726 do CPC e 374 nº 2 do CPP, em conformidade com os princípios constitucionais da confiança, do acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade disposto nos artigos 1º, 13º, 20º e 205º da Constituição da República Portuguesa.

3. Tal como resulta da acusação deduzida pelo assistente, no seu RAI descreve, com todo o pormenor, o preenchimento dos tipos legais de crime, designadamente dos tipos objectivos e dos tipos subjectivos.

4. Ao ter indeferido, como indeferiu o RAI, nas condições em que o faz, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts 287 do CPP e os artigos 217 e 218, ambos do Código Penal, tendo interpretado tais preceitos em violação dos arts 1, 13, 20 e 64 da Constituição da Republica Portuguêsa e dos princípios constitucionais do acesso ao direito, igualdade e dignidade da pessoa humana.

5. O Tribunal recorrido deveria ter interpretado o disposto nos arts 287 do CPP e os artigos 217 e 218, ambos do Código Penal, em conformidade com os arts 1, 13, 20 e 64 da Constituição da Republica Portuguêsa e dos princípios constitucionais do acesso ao direito, igualdade e dignidade da pessoa humana, determinando a abertura da instrução, a produção da prova requerida e a pronuncia do arguido pelos crimes descritos no RAI.

Pedido

Termos em que, fazendo-se a correcta interpretação dos elementos dos autos e a melhor aplicação das normas legais invocadas, deve o Despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, , determine a abertura da instrução, a produção da prova requerida e a pronuncia do arguido pelos crimes descritos no RAI.”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1.ª

O recorrente não identifica os factos integradores de todos os elementos objectivos do tipo legal de crime que pretende ver decidido a seu favor, neste caso o crime de burla agravada, p. e p. nos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 a), com referência ao artigo 202.º b), todos do Código Penal.

2.ª

Caso o Tribunal “a quo” viesse a declarar aberta a fase de Instrução nos presentes autos, estaria a fazer “tábua rasa” do AUJ n.º 1/2015 supra mencionado, o que lhe está vedado pela lei.

3.ª

Tal AUJ exige a menção, ainda que de forma sintética, de todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal referido em 1.ª, destas conclusões.

4.ª

Ao omitir parte dos elementos objectivos do tipo, o RAI retira ao arguido a possibilidade de defesa quanto aos elementos típicos omissos, dado que não lhe é exigível que presuma factos de que teria de se defender, não cabendo ao Tribunal a integração de tais elementos em falta, nem existindo, previsto na lei, o aperfeiçoamento de tal requerimento.

5.ª

Daí a inadmissibilidade legal da fase de Instrução nos presentes autos, tal como vem exposto no RAI.

6.ª

Por outro lado, o despacho impugnado não violou qualquer norma legal.

7.ª

Por isso, tal despacho deverá ser mantido nos seus precisos termos.

Mas V. Excelências, Senhores Juízes Desembargadores farão, Como sempre:

JUSTIÇA!!!”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão a analisar no presente recurso, delimitado pelas conclusões do mesmo, é a de se saber se o r.a.i. apresentado pelo recorrente reúne, ou não, os elementos necessários para ser admitido.

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O referido r.a.i. é do seguinte teor:

“Inconformado com o Despacho de Arquivamento, AA, Assistente (com apoio judiciário), Requer a Abertura da Instrução, o que fazem aqui, nos termos e com os fundamentos seguintes:

Suficiência dos indícios da pratica pela Arguida, dos crimes denunciados

1. O MP arquivou o inquérito, com fundamento na falta de indícios da pratica de crime e por falta de preenchimento de dois dos objectivos do tipo do ilícito de burla: emprego de astúcia e prejuízo financeiro.

2. Não ignorando que o Assistente padece de esquizofrenia paranóide, patologia que o coloca numa posição de excecional susceptibilidade, sensibilidade, fragilidade, inferioridade e deficiente percepção da realidade (no sentido de que, com pouco esforço, muito inferior ao que tem que ser impresso sobre um homem médio, sem patologia crónica nem aguda), que se deixa enganar muito mais facilmente do que qualquer outra pessoa sem doença mental,

3. Sem sequer, ter mandado avaliar os activos que constituem a herança (para poder concluir, como parece ter concluído, que não logrou contabilizar o efectivo prejuízo financeiro, o Despacho em crise é nulo por insuficiência de inquérito, violando os princípios do inquisitório, da descoberta da verdade material, da aquisição processual e da legalidade, devendo ser alterado, através da prolacção de outro que determine a Pronuncia dos Arguidos.

4. Ao arquivar o inquérito, o Ministério Público (doravante designado apenas por MP) fez tábua rasa de toda a prova carreada para os autos, tendo interpretado erradamente o disposto nos artigos 217 e 218, ambos do Código Penal e o disposto nos artigos 277 e 283 do Código de Processo Penal, preceitos que interpretou em violação do disposto nos artigo 1, 13, 20 e 32 da Constituição da República Portuguêsa. Se não vejamos:

5. Da conjugação dos depoimentos do Assistente, dos Arguidos e das testemunhas, facilmente se infere que os arguidos praticarem os factos denunciados. Com efeito,

6. Tendo o Assistente declarado padecer de doença mental crónica (esquizofrenia), diagnóstico confirmado pelo seu psiquiatra BB, a fls. …, que afirmou que, face ao seu quadro clínico e à medicação que tomava à data, o queixoso poderia efectivamente não estar capaz para compreender o alcance e teor dos documentos que assinou, existindo evidência de instauração, pelo próprio Ministério Publico, Acção de Acompanhamento (que construiu o Apenso B) e Internamento Compulsivo (Apenso C), tendo a patologia do Assistente sido também confirmada pela saúde publica, que lhe fixou uma incapacidade de 73% e pela segurança social (cfr. fls. …, … e … dos autos), resultando dos autos que o Assistente foi acordado, na manhã do dia da escritura, para ir ao notário, onde compareceu, ainda sedado, pressionado pela sua irmã, que lhe disse para assinar, dizendo-lhe que era bom negócio para ele e com a cabeça numa prova desportiva a que pretendia assistir, levando em conta o valor total da herança que o MP nem se dignou avaliar,

7. Resultando à saciedade, suficientemente demonstrada, a pratica pelos arguidos, dos factos denunciados, consubstanciando os factos descritos, além do mais, a pratica de Burla Qualificada (arts 217 e 218 do código penal) deverão os arguidos ser pronunciados, para serem submetidos a Julgamento. Acusação

8. Para tanto, o Assistente requer se submeta a Julgamento, com a intervenção do Tribunal Colectivo de CC, viuva, NIF …, a citar na …, …, …, id a fls. …; ADD, natural de …, casada com EE, NIF …, residente na Rua …, …, id a fls. …; EE, NIF …, casado com a 2ª Ré e com ela residente na Rua …, …; por resultar suficientemente indiciado que:

9. O Assistente nasceu em …, em …1980 é filho de FF e da arguida CC, sendo irmão da arguida DD, que é casada com EE.

10. O Assistente padece de esquizofrenia paranóide, facto que os arguidos bem conhecem, pelo menos, desde a data do diagnóstico em 1998.

11. FF faleceu, intestado, em …2005, no estado e casado com a 1ª Ré, tendo-lhe sucedido esta e os filhos de ambos, o A e a segunda Ré, casada com o segundo R.

12. FF deixou, além do mais, os bens identificados na relação de bens que integra a participação fiscal apresentada e constante de fls. … a …, donde constam, além dos beneficiários da transmissão, os bens integrantes do acervo hereditário, mormente 10 veículos automóveis e 3 participações sociais.

13. A herança aberta por morte do pai do Assistente tem um valor muito superior a quinze milhões de euros.

14. Não ignorando que o irmão, ora Assistente toma múltiplos fármacos, para a patologia de saude mental de que padece, apesar de bem saber que grande parte desses fármacos têm efeito sedativo, bem sabendo que o irmão passa grande parte das manhãs, na cama, sedado pelos medicamentos que toma na véspera e durante a noite, para conseguir dormir,

15. Na manhã de 11.10.2012, a arguida DD foi acordá-lo, à pressa, para que ele fosse com ela, com a mãe de ambos e o cunhado EE, ao notário, assinar um documento, tudo desacompanhado de qualquer explicação acerca do seu sentido, alcance, limites e consequências.

16. Mal saiu de casa na companhia da irmã, ainda sedado, encontrou à porta de sua residência, a sua mãe e o seu cunhado que, juntamente com a arguida DD, lhe disseram que, ele tinha que se despachar, andando muito mais depressa, para ir com os arguidos ao notário, muito rapidamente, tão só para assinar um documento destinado a beneficiá-lo a ele, sem no entanto, lhe explicarem do que se tratava.

17. Cambaleando, sedado, sem ter a noção do que ia fazer, ao mesmo tempo que lhe diziam que, se fosse mais rápido ainda o levavam a assistir a uma prova desportiva de motociclos (modalidade preferida dele), o Assistente foi levado pelos arguidos, para o Cartório de ….

18. Quando o Assistente chegou ao notário e com a promessa de elevadíssimas vantagens patrimoniais, os arguidos, em conjugação de esforços, fizeram-no assinar, aquilo que veio a constatar, mais tarde, tratar-se da escritura de partilhas (dos bens da herança aberta por morte de seu pai) um pacto de preferência, divisões e cessões, uma confissão de dívida e uma hipoteca.

19. Apesar de não poder negar que pode ter assinado as identificadas escrituras, o Assistente nunca percebeu aquilo que assinou, nem as consequências daqueles actos.

20. Isto porque, para além de profundamente sedado, o Assistente padece de esquizofrenia, patologia que foi diagnosticada há mais de 25 anos e motivou a atribuição de uma incapacidade de 73%, facto que é bem conhecido pelos arguidos.

21. Tal patologia impede-o de discernir, de se determinar e, muitas vezes, de compreender o sentido alcance e limites dos actos que pratica, designadamente, aqueles que podem gerar direitos e obrigações, facto que é conhecido pelos arguidos.

22. Os valores indicados em cada uma das verbas da partilha por óbito de seu falecido pai, não correspondem, nem nunca corresponderam aos valores reais dos respectivos bens.

23. O imóvel que constitui a Verba Um valia e vale Euros 250 mil.

24. O imóvel que constitui a Verba Dois valia e vale Euros 150 mil.

25. A participação social que constitui a Verba Três valia e vale mais de Euros 10 000 000.

26. A participação social que constitui a Verba Quatro valia e vale mais de Euros 10 000 000.

27. Os RR omitiram também da partilha os saldos bancários do falecido;

28. À data da outorga das identificadas escrituras, o Assistente estava sedado, não se encontrava na posse das suas faculdades mentais, não tendo tido, sequer, a consciência do sentido, alcance, limites e consequências de cada uma das declarações de vontade descritas em tais escritos, facto que os arguidos bem sabiam.

29. Aproveitando-se das limitações cognitivas e comportamentais resultantes da patologia do Assistente e com o firme objectivo concertado de obterem a assinatura do Assistente, a troco de falsas promessas de elevadas vantagens patrimoniais, traduzidas num encaixe patrimonial e financeiro de milhões de euros, a sua irmã, o seu cunhado e a sua mãe promoveram, a adjudicação (em partilhas) de grande parte do património à irmã e à mãe, o estabelecimento de preferências, divisões, cessões, uma confissão de dívida e uma hipoteca, com elevadíssimos prejuízos financeiros para o próprio Assistente, que ficou, praticamente, sem nada.

30. Tal apelo (insistente, persistente, reiterado e persuasivo) dos Arguidos para o Assistente assinasse, foi acompanhado de sérias promessas de elevadas vantagens patrimoniais e financeiras, que nunca se concretizaram.

31. Sendo a esquizofrenia paranoide de que padece o Assistente, um facto publico e notório

32. que os arguidos conheciam, pelo menos, desde 1998 e de que qualquer pessoa se apercebe ao fim de dois minutos de conversa com ele,

33. Tendo as assinaturas feitas pelo Assistente, nas escrituras, sido por ele apostas, debaixo de uma grande pressão, numa manhã nebulosa de Outubro, com Assistente sedado e com falsas promessas de elevadas vantagens patrimoniais e financeiras,

34. Conduta que foi causa directa e necessária, da outorga, por evidente engano, pelo Assistente, dos identificados actos, sendo manifesto o prejuízo patrimonial do Assistente, de valor nunca inferior a 15 milhões de euros, que resultou directa e necessariamente dessas outorgas, que resultaram de actividade premeditada e concertada, dos arguidos, em união de esforços,

35. Agiram os arguidos, em conjugação de esforços e intentos, livre e conscientemente, com a intenção de conseguirem, como conseguirem, a outorga com assinatura, do Assistente, nas escrituras de partilhas, preferência e confissão de dívidas, para desses actos alcançarem, como alcançaram, elevadas vantagens patrimoniais e financeiras, muito acima dos respectivos quinhões, com o correspondente prejuízo do Assistente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.

36. Praticaram, pois, os Arguidos (um crime de burla qualificada cada um dos arguidos), em co-autoria material, em concurso real e na forma consumada de três crimes de burla qualificada previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º1 e 218º, n.º 2, alíneas a) e c), por referência ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal.

Em instrução e julgamento requer:

(…)

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A parte que interessa do despacho de arquivamento (excluindo-se o relato dos actos processuais e considerações gerais) é do seguinte teor:

“Conclui-se, contudo, que não foi recolhida prova suficiente dos elementos objectivos do crime de burla, mormente o emprego de astúcia pelo agente, a verificação de erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia e, bem assim, a existência de prejuízo patrimonial da vítima, resultante da prática dos referidos actos e, portanto, em consequência, dos elementos subjectivos do ilícito.

Apreciemos.

Desde logo, da análise da prova documental que foi possível coligir, designadamente da escritura de partilha por óbito do pai do assistente e arguida, das informações prestadas nos autos pelo primeiro e da relação de bens junta, não se logrou aferir que o assistente haja sido prejudicado financeiramente tendo em consideração o quinhão que lhe cabia e os quinhões que cabiam aos demais herdeiros, sua mãe, também cônjuge meeira, e irmã, ora arguida.

Não obstante o valor atribuído pelo assistente ao acervo hereditário em causa, referindo, na denúncia e em sede de declarações que ao mesmo correspondia um valor de cerca de 15.000.00,00€ (embora a certa altura, remeta informação aos autos a referenciar um valor de 30.000.00,00€), tal não decorre da prova documental carreada.

Na verdade, além dos bens imóveis e participações sociais que decorrem do elenco dos bens constantes da escritura em sindicância e dos veículos que constam da informação da Autoridade Tributária, não foi demonstrada a existência de outros bens, móveis ou imóveis, participações sociais ou saldos bancários que permitissem corroborar o valor adiantado pelo assistente.

Assim, nesta parte, é de concluir que a versão do assistente surge isolada e desacompanhada de qualquer outro meio probatório, não sendo a demais provas coligidas demonstrativas da existência de um efectivo prejuízo patrimonial para aquele e, portanto, de uma astúcia por banda da arguida e consequente actuação em erro por parte do assistente, que resultasse naquele prejuízo.

E para tal não é suficiente a demonstração da doença psiquiátrica de que padece o assistente, esquizofrenia paranóide, que decorre desde logo do relatório médico junto aos autos e das declarações do médico psiquiatra que o acompanha, Dr. BB.

Não é de desconsiderar, todavia, que tal doença lhe provoca igualmente “a ideação delirante e desorganização de pensamento e, consequentemente, comportamental, pela perda da associação das ideias e bizarrias, que lhe provocam total ausência de crítica…”, conclusão a que chega a perícia psiquiátrica médico-legal efectuada no âmbito do inquérito n.º 176/19.3… e que se mostra junta ao Apenso B do qual constam os elementos retirados do processo administrativo de acompanhamento de maior que corre termos na Procuradoria do Juízo Local Cível de … e que agudizam o sentimento evidenciado pelo médico psiquiatra que acompanha o assistente contra a sua família, designadamente contra a sua irmã, relativamente a questões patrimoniais.

Certo é que a arguida ajuda financeiramente o assistente, dando-lhe quantias monetárias diárias elevadas que variam entre os 40,00€ e os 45,00€ diários (inclusive aos fins-de-semana), circunstância que foi, aliás, adiantada pelo próprio assistente em sede de declarações, o que contraria, desde logo, ou pelo menos abala seriamente, uma intenção da parte da arguida de prejudicar o assistente financeiramente.

E não menos relevância assume a sua problemática aditiva ao jogo e, consequentemente, a sua preocupação com questões de cariz patrimonial que, apesar de negada pelo mesmo, foi adiantada pelo médico psiquiatra que acompanha.

Acresce que, não deixa de estranhar igualmente a circunstância de, tendo sido a escritura outorgada a …2012, a presente denúncia tenha apenas sido apresentada pelo assistente a …2021, ou seja, mais de 8 anos depois do sucedido, dando-se, só então, conta de que fora prejudicado no seu património, situação que, até essa altura, não deu conhecimento às autoridades competentes, datando, aliás, a propositura da acção cível para anulação da escritura notarial de ….2022, sendo, portanto, ainda posterior àquela data.

Por outro lado, pese embora a arguida não tenha prestado quaisquer declarações nos autos, compulsado o teor da contestação apresentada por CC, mãe daquela e do assistente, no âmbito da acção cível n.º 718/22.7…, daí resulta explanada uma difícil situação financeira que atravessava a família, à data do falecimento do pai destes, existindo um passivo significativo a que a herança teve de responder que, também face à sua doença, possivelmente o arguido não foi capaz de discernir e compreender.

Sempre se diga que, independentemente do desfecho da aludida acção cível, isto é, de uma eventual decisão de anulação da escritura de partilha naquela sede, tal questão não contende com a conclusão a que se chegou de que não foram coligidos indícios suficientes da prática do ilícito, nem tal a questão a decidir naquela jurisdição é questão prévia à matéria aqui em apreço, desde logo porquanto a prova da factualidade típica sempre dependeria da demonstração dos elencados elementos objectivos e subjectivos do crime de burla, que extravasam o thema decidendum daquela acção.

Ademais, não se olvide que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da subsidiariedade do direito penal, que tem como consequência o facto de o recurso a este ramo do direito, enquanto instrumento de tutela de bens jurídicos, se faça, tão-somente, quando os demais meios de intervenção, necessariamente, menos gravosos, se revelem insuficientes.

Como corolário deste princípio temos o princípio da tipicidade, de acordo com o qual compete, exclusivamente, à lei determinar quais os factos ou condutas que consubstanciam um crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação de uma medida de segurança. As condutas e efeitos das mesmas devem, portanto, estar inscritos, de forma clara, no tipo, carecendo, pois, nesta fase processual, de suficiente indiciação.

Face às considerações expendidas, determina-se o arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela inexistência de indícios suficientes da verificação dos elementos objectivos e subjectivos da prática, pela arguida, do crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217º, n.º1 e 218º, n.º 2, alíneas a) e c), por referência ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal.”

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Tem sido uniformemente afirmado pela jurisprudência que quando o r.a.i. é apresentado pelo assistente, o mesmo deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo de forma completa os factos da vida real imputados ao arguido e os factos que constituem o elemento subjectivo do crime respectivo.

É isso mesmo que resulta da remissão para a al. b) do nº 3 do artº 283º do C.P.P., feita na última parte do nº 2 do artº 287º do mesmo Código.

Nos termos daquela al. b), o r.a.i. deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neste teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Um r.a.i. bem estruturado, e em obediência a todo o nº 2 do artº 287º do C.P.P., deve (em casos como o destes autos) conter uma primeira parte com as razões relativas à discordância quanto ao arquivamento, com os actos de instrução que se pretendem levar a cabo, com os meios de prova e com a indicação dos factos que com eles se pretendem provar; e uma segunda parte com uma verdadeira acusação que servirá de vinculação temática para o tribunal e será indispensável para o exercício de verdadeiro contraditório por parte do arguido. (a este propósito, entre muitos outros, ac. da rel. de Lisboa de 4/6/2013).

A não exigência de formalidades especiais prevista logo no início do nº 2 do artº 287º do C.P.P., nada tem que ver com a necessidade da alegação de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sejam eles integradores do elemento objectivo, sejam do elemento subjectivo, do tipo de crime em causa, sendo certo que a verificação destes últimos também é condição de aplicação de uma pena.

A relevância de uma clara narração dos factos é também evidente face ao que dispõe o artº 309º, nº 1, do C.P.P., o qual dispõe que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos (…) no requerimento para abertura da instrução.

Quanto ao elemento subjectivo, não é necessário que se utilizem as palavras “habituais”, mas com essas ou outras com o mesmo significado, têm que ser alegados os factos que consubstanciam tal elemento, sabendo-se que não deve haver “presunções de dolo”.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142].

Se o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, após abstenção do MºPº em deduzir acusação, não é legalmente apelidado de acusação, substancialmente é isso que ele deve ser e daí a remissão do artº 287º, nº 2, para o artº 283º, nº 3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (neste sentido: Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 167).

É que a não ser assim, teria que ser o juiz de instrução a substituir-se ao assistente, na pesquisa dos factos potencialmente criminosos, o que seria clara violação do princípio do acusatório, constitucional e legalmente previsto. O juiz de instrução investiga autonomamente os factos (artºs 289º e 291º, nº 1, do C.P.P.), mas sempre dentro dos limites definidos no requerimento de abertura de instrução.

“Uma instrução concebida como suplemento investigatório seria absolutamente incongruente com a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial que constituiu a pedra de toque do modelo processual no Código de 1987 e do mesmo passo constituiria um desvio incompreensível à dimensão material da estrutura acusatória de que o mesmo reveste, em observância do preceituado no nº 5 do artº 32º da Constituição” - Nuno Brandão, A Reforma do Direito Processual Penal Português em Perspetival Teórico-prática, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, pág. 229 e 230.

Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, C.R.P.Anot., 4ª edição, vol. I, pág. 522, “a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulação orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também órgão de acusação.”

A “acusação” que o requerimento para abertura da instrução deve conter tem que ser auto-suficiente, não sendo admissível (tal como não é para a acusação formulada pelo MºPº) a remissão, ou qualquer outra forma de referência, feita para outra peça processual ou para documentos. Estes servem para provar os factos que se alegam e não para suprir a obrigação de os alegar. E é preciso distinguir bem os factos das provas que os sustentam.

Feitas estas considerações gerais, importa analisar o caso concreto.

Importa desde logo referir que, ao contrário do que alega o recorrente, o despacho recorrido encontra-se suficientemente fundamentado, pois que nele constam claramente as razões que levaram à rejeição do r.a.i. como resulta do seguinte segmento:

“Isto porque o RAI não especifica os termos concretos em que essa partilha foi feita, qual o valor aí atribuído às respetivas verbas (por oposição ao seu valor real) e a quem foram adjudicadas as mesmas verbas, por forma a poder concluir-se que a partilha gerou prejuízo patrimonial ao assistente.

Note-se que independentemente do valor atribuído aos bens em sede de partilha, se a partilha efetivamente feita respeitar as quotas relativas de cada um dos herdeiros no património total, então não haverá prejuízo, pois a mera menção na escritura de valores inferiores aos reais não diminui o valor real dos bens em causa.

Por outro lado, a omissão de certos bens patrimoniais em sede de partilha também não causa prejuízo patrimonial ao assistente, até porque estes podem ser alvo de partilha adicional.

O facto de terem sido omitidos bens ou direito da escritura de partilha não faz com que esses bens deixem de integrar esse património autónomo nem os transfere para a esfera patrimonial de outra pessoa que a eles não tenha direito.

Caso esses bens (nomeadamente contas bancárias) tenham sido apropriados por terceiros, poderá estar em causa a prática de crime autónomo, mas já não será o que se investigou nestes autos.

Ora tendo em conta que dos factos narrados no RAI não resulta que do ato praticado pelo assistente tenha resultado para este qualquer prejuízo patrimonial, conclui-se que mesmo que tais factos sejam considerados suficientemente indiciados, ainda assim não será possível operar a pronúncia dos arguidos.”

Não se trata, pois, de apreciação de prova, mas sim de carência dos factos necessários para que, a provarem-se, os arguidos possam, eventualmente, vir a ser pronunciados.

E que esses factos são omissos no r.a.i. é evidente, tal como claramente se refere no despacho recorrido.

.Não se pode contrariar o despacho de arquivamento “pedindo” ao tribunal que proceda a diligências de prova de modo a, eventualmente, se comprovarem factos que não foram alegados, nem se vislumbra que ocorram.

Com efeito, o assistente pretende que seja o tribunal a proceder a diligências de prova de modo a apurar se ocorrem factos que não foram alegados, o que não pode acontecer, sob pena de o Juiz se tornar na entidade acusatória, tal como bem se refere nos ensinamentos acima referidos.

Cabia ao assistente a alegação de factos concretos (e não de meras generalidades, solicitando que seja o tribunal a concretizá-las) de onde resultasse a astúcia e o prejuízo.

Não significa isto que a partilha efectuada seja “intocável”, mas terá que ser pela via civil, tal como, aliás, já foi, uma vez que estará pendente acção de anulação da partilha efectuada, tal como se refere no despacho de arquivamento.

A eventual omissão de bens na escritura de partilha ou a eventual discrepância dos valores de imóveis e participações sociais que aí constam com os valores reais do mesmo não significa, só por isso, que o assistente tenha sido “enganado”, uma vez que, desde logo, não são alegados os necessários factos concretos que possam consubstanciar tal discrepância, em prejuízo do assistente.

Por tudo o referido, há que concluir que bem andou o tribunal recorrido ao não admitir o requerimento para abertura de instrução, restando acrescentar que nos termos do Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/05, D.R. de 4/11/05, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artº 287º, nº 2, do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

A reforma operada ao C.P.P. pela L. 48/07 de 29/8, em nada alterou qualquer dos preceitos legais pertinentes, designadamente o nº 2 do artº 287º do C.P.P., pelo que inexistem quaisquer razões para não seguir o decidido no referido Ac. de Fixação de Jurisprudência.

Por último, refira-se que o T.C. já rejeitou a inconstitucionalidade do nº 2 do artº 287º, quando exige, sob pena de rejeição, que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, contenha os elementos referidos no artº 283º, nº3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (Ac. do T.C. nº 358/04, D.R. IIª série de 28/6/04).

Assim sendo, por inadmissibilidade legal da instrução, por virtude de ocorrência de nulidade do r.a.i., deve o mesmo ser, como foi, rejeitado (cfr. artºs 287º, nºs 2, parte final, e 3, e 383º, nº 3, al. b), do C.P.P.), sendo certo que a lei não admite que se proceda a instrução com base num r.a.i. como o que foi apresentado.

Não se vislumbra, pois, a violação de qualquer preceito legal (a referência feita pelo recorrente a disposições legais do C.P.C. é desadequada, uma vez que existem preceitos do C.P.P. acerca do dever de fundamentação, quando mais não seja o artº 97º, nº 5) ou constitucional, designadamente os referidos pelo recorrente.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

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Deverá o recorrente suportar 4 UCs de taxa de justiça (artº 515º, nº 1, al. b), do C.P.P.).

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Évora, 19 de Março de 2024

Nuno Garcia

Jorge Antunes

Maria Clara Figueiredo