Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1084/14.0GDSTB.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
SUBSTITUIÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A “substituição” da prova testemunhal, em julgamento, por prova documental, que consubstancia assim uma espécie de declaração documentada, contraria princípios como os da imediação e da oralidade e restringe intoleravelmente o contraditório.
2. A possibilidade dos sujeitos processuais se poderem pronunciar sobre uma declaração documentada não satisfaz o contraditório, pois este exige, não apenas a possibilidade dos sujeitos processuais se pronunciarem sobre um documento junto ao processo, mas a possibilidade de poderem instar e contra-instar uma testemunha sobre a matéria probanda. Trata-se da salvaguarda da observância de “um contraditório pela prova” e não apenas de “um contraditório sobre a prova”.
Decisão Texto Integral:



Processo nº 1084/14.0GDSTB.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo sumário nº 1084/14.0GDSTB do Tribunal da Comarca de S foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido IM, como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez do art. 292º nº 1 do Cód. Penal, na pena de 55 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, perfazendo a multa total de 385,00€, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e 15 dias.
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“1. O Tribunal reconheceu que com a prova produzida em audiência deixava dúvidas insanáveis, que levariam á absolvição do arguido.
2. A regra sobre as alegações é que finda a prova há alegações.
3. Não foi alegada nenhuma situação excepcional, nem superveniente para aplicação do nº 4 do artigo 360º.
4. De facto, se ouvida a gravação, o mandatário do arguido alegou que o talão não estava assinado e referia-se a uma máquina que não era a do auto,
5. Esta discrepância, lança a duvida pertinente, legítima e mais que razoável de quem era o talão e se o mesmo era do arguido.
6. O Tribunal reconheceu que havia a dúvida e de forma extemporânea tentou sanar a mesma. Tal nunca poderia acontecer nos moldes como aconteceu.
7. A junção dos documentos é inadmissível e coloca problemas insolúveis.
8. De facto, a prova testemunhal deve ser produzida em audiência e o senhor agente não tem qualquer privilégio para poder depor por escrito, sem contraditório.
9. Assim, eventualmente poder-se-ia em situações excepcionais ou supervenientes admitir a junção de um documento, mas nunca um depoimento por escrito que é nulo.
10. Por outro lado, com esta situação foi alterada a estrutura do processo.
11. O mandatário e o arguido têm o direito de se pronunciar sobre a prova produzida para se defender quando a mesma findar como defesa.
12. Esta situação e esta interpretação do artigo do CPP tira o efeito útil a qualquer alegação final, que deixa de ser final e dá ao Tribunal ou ao MP a possibilidade de apresentar nova prova.
13. Os meios de prova tem que ser supervenientes e não são.
14. De facto a presente interpretação contraria a constituição, artigo 32º, e a DERH, artigo 6º.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:
“1. O recorrente coloca em crise o teor do despacho proferido a fls. 47 e não a decisão condenatória;
2. No caso concreto, tendo em conta o preceituado nos ars 360° nº 4 e 365º nº 1, do Cód. Proc. Penal, estava ao alcance do juiz constatar, como constatou, não estar suficientemente esclarecido quanto à certificação do equipamento utilizado para aferição da TAS e ao número do respectivo aparelho e afigurar-se-lhe ser essencial confirmar a existência de um lapso de escrita, pelo que não procedeu à leitura da sentença antes ordenou a produção dessas provas;
3. Produzida a nova prova, o Mmo. Juiz "a quo" deu, de novo, a palavra ao arguido e ao Ministério Público e à Defesa para alegações finais e, encerrada a discussão, reponderou a prova na sua globalidade e decidiu em conformidade, respeitando o contraditório.
4. Assim, entende-se que, enquanto não der início à leitura da sentença, o julgador estará sempre a tempo de ordenar a produção de novos meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à decisão da causa;
5. Pelo que, in casu, entende-se que não foram violadas quaisquer preceitos legais;
6.Devendo, consequentemente, o recurso apresentado ser julgado improcedente.”
Neste Tribunal, o Sra. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar é a da validade (na apreciação) da prova documental junta aos autos no decurso da audiência de julgamento.
O arguido foi condenado como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º nº 1 do Cód. Penal), sumariamente, pela prática, em 23-10-2014, pelas 01h30, na Rotunda no Modelo em P, do acto da condução referente ao veículo automóvel de matrícula 04-85-AB, apresentando uma T.A.S. de 1,97 g/l/, a que é correspondente uma T.A.S. corrigida, de acordo com o erro máximo admissível, de pelo menos 1,82 g/l.
Como nota o MP na sua resposta, o recorrente circunscreve o objecto do recurso à questão da (in)admissibilidade de valoração de um documento, junto em julgamento já após início das alegações orais.
Visa depois, o arguido, retirar dessa inadmissibilidade a ausência de prova dos factos que realizam o crime da condenação, concretamente, da demonstração da taxa de alcoolemia medida ao arguido.
Na verdade, no decurso do julgamento e após alegações da defesa, o Tribunal ordenou oficiosamente que se oficiasse à GNR no sentido de ser esclarecida uma discrepância sinalizada pela defesa nas alegações, discrepância que realmente se detecta entre a referência ao nº de série do alcoolímetro que consta do auto de notícia e a referência que consta do talão junto aos autos.
No decurso do julgamento, após alegações orais e por iniciativa do tribunal, foi então solicitado esclarecimento à GNR. Junto o documento que constitui fls. 58, sob a designação de “informação complementar”, pode ler-se: “Venho por este meio esclarecer o Tribunal que, por lapso do agente autuante no local, das informações complementares onde se lê “ARAA com o nº 0177” deve ler-se “ARNA com o nº 0022”, como consta no talão em anexo com o nº 2824.”
Considera agora o recorrente que esta informação não pode ser valorada, por preterição do princípio do contraditório, e que sem ela inexiste prova concludente da taxa de alcoolemia, devendo o arguido ser absolvido.
Contrapõe o MP, em defesa da sentença, que não houve violação do contraditório, pois uma vez produzida a nova prova, o Senhor Juiz deu de novo a palavra ao arguido, à Defesa e ao Ministério Público para alegações finais, só então tendo encerrado a discussão da causa.
O art. 360º, nº 4 do CPP prevê a possibilidade de produção de meios de prova supervenientes quando tal se revelar indispensável à boa decisão da causa, podendo o tribunal ordenar ou autorizar por despacho, em casos excepcionais, a suspensão das alegações para esse efeito.
O Senhor juiz procedeu ao abrigo desta norma e, pelo menos formalmente, assegurou o contraditório dando de novo a palavra aos sujeitos processuais para alegações complementares.
Este procedimento não esgotaria, no entanto e por si só, a problematização apresentada em recurso, pois poder-se-ia considerar que, materialmente, o contraditório exigiria no caso, não a possibilidade dos sujeitos processuais se pronunciarem sobre um documento junto ao processo, mas a possibilidade de poderem instar e contra instar uma testemunha sobre a matéria probanda.
Na verdade, o modo ideal de obtenção do esclarecimento em causa seria o testemunho do órgão de polícia criminal que sujeitou o arguido ao teste de alcoolemia.
Como refere Damião da Cunha (O regime processual de leitura de declarações, RPCC, ano 7, 3º, p. 442), “o CPP, como não poderia deixar de ser num processo de estrutura acusatória, parte do princípio de que o lugar natural, electivo, para o debate sobre a produção e a valoração da prova é a audiência de julgamento. As excepções à produção de prova em audiência de julgamento (quando estejam em causa declarações de intervenientes processuais) são, pois, pontuais e limitadas e, além disso, reguladas por uma ideia de concordância prática com os princípios fundamentais da prova (o contraditório e a oralidade são, tanto quanto possíveis, salvaguardados) ”.
Acompanhamo-lo também quando afirma que “estando em causa declarações de sujeitos processuais (ou meros participantes processuais) – no fundo a forma de actuação (o tipo de actos processuais) mais importante no processo penal -, tais princípios terão de vigorar na íntegra”.
O que significa que “toda a derrogação a qualquer um destes princípios só poderá vigorar como excepção, justificada por um determinado circunstancialismo (no qual deva intervir um outro valor – princípio conflituante) e regulada segundo um princípio de concordância prática” (loc. cit. p. 406)
A “substituição” da prova oral, em julgamento, por um documento (que consubstanciaria assim uma declaração documentada) contraria princípios como o da imediação e o da oralidade e restringe o contraditório.
O princípio do contraditório (art. 327º do CPP) tem tutela constitucional expressa para o julgamento (art. 32º, nº5 CRP). Os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório e a contraditoriedade abrange tanto a produção como a valoração de todas as provas. Acusação e defesa podem oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas. As provas que hão-de ser objecto de apreciação têm, assim, de ser discutidas no contraditório da audiência de julgamento e só estas valem para a decisão (art. 355º do CPP).
O direito, reconhecido ao acusado, de “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação” integra também o direito a um processo equitativo, previsto no art. 6º (nº 3/d)) da CEDH.
Na expressão esclarecedora de Damião da Cunha, trata-se da salvaguarda da observância de um contraditório pela (para a) prova e não apenas de um contraditório sobre a prova. “Ponto decisivo num processo de estrutura acusatória é que na audiência de julgamento se concretize um contraditório pela prova” (Damião da Cunha, loc. cit. p. 412).
No entanto, no caso sub judice, a concreta actuação desenvolvida pela defesa em julgamento não pode ser excluída da ponderação sobre a eventual compressão, alegadamente intolerável, do contraditório.
Na verdade, a testemunha da GNR em causa fora ouvida em julgamento.
A defesa inquiriu-a então, tendo tido aí a possibilidade de colocar todas as perguntas que reputasse relevantes para a descoberta da verdade e a defesa do arguido.
Nesse momento processual, o defensor do arguido, necessariamente, já detectara a aludida discrepância. Pois a audiência foi contínua, e também só assim adquire sentido a questão que então colocou à testemunha.
Contudo, só depois a veio denunciar, em alegações orais. Reservou-se para o momento final, prescindindo de se ver esclarecido e de esclarecer o tribunal, actuando de modo mais transparente e utilizando o meio de prova correcto.
Ainda assim, não deixou de colocar à testemunha de acusação uma questão relevante para a prova (positiva) do facto impugnado, e cuja resposta acaba por retirar agora toda a importância à concreta questão colocada em recurso.
Na verdade, o defensor do arguido, em julgamento, perguntou à testemunha de acusação se aquele fora “o único condutor interceptado nessa noite”, ao que a testemunha respondeu, fazendo-o sem a mínima hesitação, “nessa noite foi o único”.
Este depoimento foi prestado apenas quatro dias depois da data dos factos, pelo que o episódio relatado estaria bem vivo na memória do depoente. Este detalhou as circunstâncias em que se deu a abordagem policial e explicou também que o arguido se recusou a assinar o talão do alcoolímetro.
Olhando agora o talão junto aos autos, constata-se que o dia e hora neste registados coincide com o dia e hora da ocorrência dos factos (e mais ninguém foi interceptado nessa noite). Verifica-se também que não está assinado pelo arguido e dele consta a menção de que este se recusou a fazê-lo (e assim foi dito em audiência).
A prova produzida em julgamento, excluindo agora a informação documentada em polémica, justifica plenamente a prova dos factos dados como assentes na sentença, constatação que a própria sentença evidencia.
Na verdade, na motivação da matéria de facto, o senhor juiz de julgamento explica, de modo racional e lógico, inexistir dúvida de que o talão junto aos autos respeite ao teste realmente efectuado ao arguido, existindo então, necessariamente, um mero lapso na identificação do alcoolímetro no auto de notícia.
E chegou a esta conclusão, como também diz na sentença, independentemente da confirmação desse seu juízo através do documento junto já após primeiras alegações. Conclusões de facto que se revelam agora acertadas, pelas razões que deixámos já enunciadas.
De tudo se conclui que a decisão sobre a validade ou a invalidade da prova documental em causa, a única impugnada em recurso, se revela, afinal, concretamente indiferente à confirmação da sentença.

3. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.
Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 05.05.2015

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)