Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3/19.1GDSTC.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NULIDADE DA SENTENÇA
MATÉRIA DE FACTO
DOLO
Data do Acordão: 09/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A ausência na matéria de facto dada como provada do dolo de culpa, traduzida em não ter o tribunal “a quo” deliberadamente feito constar o excerto da acusação a ele respeitante, não constitui no específico caso dos autos, em que o crime em causa é a de todos bem conhecida violência doméstica, impedimento a que se mostrem preenchidos todos os elementos desse crime e à condenação do seu autor pelo mesmo.

2 – Outro tanto não se passa com o elemento emocional ou volitivo do dolo, o qual se traduz em o agente agir com vontade, pelo que a omissão na matéria provada ou não provada de que o agente agiu de forma livre e deliberada, constitui nulidade da sentença, prevista no artº 379º, nº 1, al. c), 1ª parte, do C.P.P..

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Santiago do Cacém, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o arguido (...) foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 al.ª a) e c), do Código Penal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante a condição de, até ao termo desse período, pagar à ofendida, (...), a quantia de 350,00 €, a título de danos não patrimoniais.
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
No processo identificado foi o foi o arguido (...), ora recorrente :
A) Condenado pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.° n.° 1, alínea a) e c)do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, nos termos do art. 50°, n°sl e 5, do Código Penal;
B) Subordina-se a suspensão de pena de prisão ao cumprimento, pelo arguido, do dever de pagar à vítima a indemnização arbitrada em sede civil, pelo menos, até ao termo do período de suspensão, nos termos do art. 51°, n°1, alínea a) do Código Penal.
C) Absolvido da forma agravada do crime de violência doméstica de que vinha acusado, previsto e punido pelo artigo 152.° n.° 2 do Código Penal.
D) Dispensa de aplicação de penas acessórias, nos termos do art. 152°, n°s 4, 5 e 6 do Código Penal.
E) Arbitra-se à vítima do crime de violência doméstica, (...), a título de indemnização por danos moras, a quantia de 350,00€ ( trezentos e cinquenta euros ), e condena-se o arguido no pagamento desta quantia à vítima.
F) Entende, o recorrente que o Tribunal a quo na sentença ora recorrida ter incorrido em erro de julgamento, tendo feito uma incorreta aplicação do direito. A prova produzida em julgamento foi manifestamente insuficiente para dar como provados os factos da acusação. Houve por assim dizer insuficiência de provas produzidas para alicerçar a convicção do Tribunal acerca de determinados factos. O Tribunal a quo tirou uma conclusão emocional, parcial, ilógica, arbitrária, tendo realizado uma incorrecta apreciação da prova, no nosso modesto entendimento.
G) O recurso versa sobre matéria de facto, cuja prova consta toda dos autos uma vez que tem por base o depoimento testemunhal que foi gravado. Ora, de acordo com o art° 127° do C.P.P., salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é produzida segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
H) Na sentença do Tribunal a quo, a matéria dada como provada e relativamente ao crime de violência doméstica, salvo melhor opinião, encontra-se erradamente julgada, pois no nosso modesto entendimento -o comportamento do aqui recorrente não preenche o tipo de crime acima identificado, até porque a própria ofendida nem quis prestar declarações, quando muito poderia enquadrar o comportamento do arguido um crime de injúrias.
L) Do depoimento da testemunha (...) verifica-se que existiam conflitos entre o casal, mas nada que configurasse o crime de violência doméstica, tendo sido a situação constante na acusação, um "transbordar o copo", dum desgaste de anos do casamento. Tanto que a própria testemunha acabou por confidenciar ao Tribunal que pensava que o casal se dava bem, nunca tendo assistido a nenhuma discussão.
J) Da transcrição do depoimento da testemunha de acusação, (...) não foi o mesmo capaz de testemunhar os factos imputados ao arguido no libelo acusatório, referindo um único episódio, que no nosso modesto entendimento não se enquadram no tipo de crime de violência doméstica. Até porque a testemunha referiu nunca ter assistido a nenhum comportamento violento por parte do Recorrente, e a própria ofendida se queixava de discussões, nunca referindo ofensas nem verbais nem tão pouco físicas.
K) E ainda que assim não entendesse, deveria o tribunal a quo, por referência ao princípio basilar do processo penal "in dubio pro reo" ter absolvido o arguido da prática do mesmo, atenta a insuficiência da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento quanto aos factos concretamente vertidos na acusação.
L) Não resulta do texto da sentença recorrida prova suficiente e necessária para a condenação do arguido no tipo legal de violência doméstica. Certo é que o Tribunal a quo se baseou unicamente nas declarações da Testemunha (...), suportando a condenação nesse único testemunho, alicerçando a condenação nesse único depoimento.
M) A propósito do princípio da livre apreciação da prova o Professor Figueiredo Dias ensinou na na obra "Direito Processual Penal", 1.° vol. págs. 203/207, "o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imutável e incontornável - e portanto arbitrária - da prova produzida." E acrescenta que tal discricionariedade tem limites inultrapassáveis: "a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada verdade material - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo".
N) Ainda segundo o Professor "a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E se a verdade que se procura é uma verdade prático jurídica, e se, por um lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, quando o tribunal tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudesse haver razões, por pouco verosímil que ela se apresentasse.
O) No que respeita à violação do princípio " in dubio pro reo ", entendemos ter existido tal violação na medida em que as provas recolhidas no processo não eram suficientes e não resultaram dos depoimentos das testemunhas certezas da prática dos crimes do qual vinha acusado, entendendo assim que existiam dúvidas para tal condenação.
P) Lançando mão da jurisprudência :
" Procurando delimitar o âmbito de aplicação do principio in dubio pro reo escreveu-se no acórdão de 10.01.2008; proferido no proc. n° 07P4198, in www.stj.pt que "Não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.° do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir-como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O in dubio pro reo, com efeito, ((parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» - Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, pág. 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)». E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Q) - Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.° do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.° do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.° do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção - por presunção judicial - de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
R) - «A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador -juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que elida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem)."
S) Vem o Recorrente invocar:
A violação do disposto no art.° 410 n.° 2, al.°s a), b) e c) do CPP:
- a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, na medida em que as provas documentais e testemunhais não são suficientes para provar que o Recorrente cometeu o crime do qual vinha acusado e nessa medida deveria ter sido absolvido.

T) Vem ainda o Recorrente e no que toca ao princípio in dubio pro reo, acrescentar que este princípio identifica-se com a da presunção de inocência do arguido e impõe que o julgador valore sempre em favor do arguido um "non liquet", ou seja, em suma, na decisão sobre factos incertos a dúvida favorece o réu, pelo que tal princípio será desrespeitado "quando o tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido", sendo certo que "não é toda e qualquer dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo, mas apenas a dúvida razoável, razoabilidade esta que cabe ao julgador analisar caso a caso"
U) Sendo, que no entendimento do recorrente existiam dúvidas que justificassem a condenação do mesmo, não tendo o Juiz do Tribunal A Quo, atendendo às mesmas para favorecer o recorrente.

Nestes termos, pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por v. Exas. deve conceder-se provimento ao presente recurso, fazendo-se a acostumada JUSTIÇA!
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O Exmo. Procurador do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1 - Sempre que o Recorrente impugne a matéria de facto, deve cumprir os requisitos insertos no art.° 412, do C. P. Penal.

2 - Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, o que não sucede no caso sub judies,.

3 - A prova é valorada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, em nome do princípio da livre apreciação, inserto no art.° 127, do C. P. Penal.

4 – O Recorrente limita-se a discutir o processo lógico do julgamento baseado no princípio da livre apreciação de prova.

5 – O Mm. ° Juiz julgou valorando as provas corretamente, conjugando-as e analisando-as à luz das regras da experiência e das normas legais, pelo que observadas estas premissas outro resultado não pode ser obtido que não seja a justeza da condenação do arguido.

5- Na determinação da medida da pena foram tidos em conta os princípios da adequação e da proporcionalidade.

6 - Perante o crime praticado pelo condenado, é de considerar a pena aplicada como criteriosa e equilibrada, deste modo, conforme com os referidos princípios.

Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, negando provimento ao recurso e, em consequência mantendo a d. sentença recorrida, V. Excelências, agora, como sempre, farão JUSTIÇA.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. O arguido e a vítima contraíram matrimónio no dia (…) e divorciaram no dia (…), tendo o casal residido numa habitação sita na (…).
2. Do relacionamento entre ambos resultou o nascimento de um filho, (…), no dia (…) de 2006
3. No dia 13 de março de 2019, quando a vítima se encontrava no seu local de trabalho, no café da (…), pelas 19h00, o arguido compareceu neste local.
4. Aí chegado, e encontrando-se embriagado, o arguido dirigiu-se à vítima e disse-lhe “quero lá o dinheiro na conta!”, “ladra, tiraste-me o dinheiro!”, “para foder não presta, mas é boa a fazer broches!”, “ladrona, vais-me pagar”, “és uma merda”, “não vales nada”, “isto é uma puta, roubou-me 60 euros lá da caixa!” e “ela vai mas pagar!”.
5. O arguido presentemente reside sozinho, na habitação referida no facto provado 1., contando com o apoio dos seus pais, que visita frequentemente.
6. É operador de máquinas na (…), desde há cerca de 6 anos.
7. Aufere o salário mínimo.
8. Está a pagar ao banco a referida habitação e as demais inerentes à mesma, beneficiando de ajuda dos seus pais.
9. Suporta uma pensão de alimentos a favor do seu filho (…), de cerca de 100€/mês.
10. Tem o 6.º ano de escolaridade.
11. Não possui antecedentes criminais registados.
12. Existem condições materiais para a utilização de meios técnicos de controlo à distancia, tendo o arguido dado o seu consentimento à utilização dos mesmos.
13. A vítima não deu o seu consentimento à utilização de meios técnicos de controlo à distância.
14. A avaliação de risco da vítima, solicitada aquando da marcação do julgamento, atribui um nível de risco baixo.
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-- Factos não provados:
1. Em data não concretamente apurada, mas na semana anterior ao casamento, o arguido dirigiu-se à vítima, quando a mesma estava a tratar do filho de ambos e desferiu-lhe, com força, um murro que a atingiu na face, junto ao olho direito.
2. Em data não concretamente apurada de junho de 2010, no âmbito de uma discussão relacionada com uma festa, o arguido desferiu, com força, uma chapada que atingiu a vítima na face.
3. No decurso do Verão do ano de 2018, no interior da residência do casal e no âmbito de uma discussão, o arguido apertou, com força, o pescoço da vítima.
4. Nesta ocasião, o arguido cessou a sua atuação porque (…), seu filho, lho pediu.
5. No dia 24 de fevereiro de 2019, no âmbito de uma discussão relacionada com a realização de tarefas domésticas, o arguido partiu diversos objetos em loiça, assim como o fogão da residência.
6. Ato contínuo, o arguido dirigiu-se à vítima e agarrou-a com força pelo pescoço.
7. Nesta ocasião, o arguido cessou a sua atuação porque (…), seu filho, lho pediu.
8. No mesmo dia, algumas horas mais tarde, ainda enfurecido, o arguido dirigiu-se à vítima e desferiu-lhe um pontapé que a atingiu na anca e disse-lhe: “Estás feliz? É isto que queres? Queres que te leve ao comboio?”.
9. A vítima sofreu dores e hematomas, mas nunca recebeu assistência hospitalar.
10. No dia 3 de março de 2019, a vítima comunicou ao arguido que pretendia divorciar-se, o que este não aceitou.
11. No dia 13 de março de 2013 (cf., facto provado 3.) a vítima tinha levantado dinheiro para despesas do filho (…).
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Fundamentação da decisão de facto:
A prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, de acordo o princípio da “livre apreciação da prova” (artigo 127.º do Código de Processo Penal), princípio que é “direito constitucional concretizado”, que há-de traduzir-se numa valoração “racional”, “crítica”, “lógica”, cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329.
Dir-se-á que a prova, no mais essencial tem como finalidade produzir uma convicção no julgador, não de certeza absoluta, mas, pelo menos, de probabilidade forte, quanto à verificação ou ocorrência do fato afirmado, “deve entender-se que se encontra demonstrada a realidade do facto desde que se atinja aquele grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamam para dar como exato um determinado facto”, cf., Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, 4º Volume, Atlântida - Coimbra, 1968, pág. 106.
A decisão da matéria de facto reverte ao julgamento de factos, é efetivamente relevante sublinhar que nos movemos no domínio dos factos e não dos juízos de valor, das opiniões, dos estados de consciência, por natureza insondáveis, em suma, de tudo aquilo que não é suscetível de prova ou demostração inequívoca, para além da dúvida razoável.
Facto é, por inerência, um acontecimento do mundo exterior, não apenas na aceção comum do termo facto, mas inclusivamente sob o ponto de vista da sua relevância jurídica, não se devendo catalogar de factos os eventos do foro interno, aos quais apenas se pode chegar por conclusão ou inferência dos factos ou acontecimento externos; “Tanto os actos interiores como os exteriores são actos morais ou imorais, mas só os actos exteriores, ou acções, ou factos, são, do ponto de vista jurídico, lícitos ou ilícitos”, cf., Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, Parte Geral I – II, Almedina, 2010, pág. 16.
Os factos constituem os dados objetivos do problema, como já tivemos a ocasião de assinalar nos aspetos gerais da fundamentação, e esta objetividade reflete-se no facto, ou seja, no que o facto é e no que ele em si mesmo representa, e, simultaneamente, no que representa a fundamentação da decisão da matéria de facto, “recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo”, cf., Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, 1974, pág. 203.
A convicção do tribunal e as razões que, em concreto, determinaram a decisão da matéria de facto:
No que refere à matéria de facto alegada na acusação pública – considerando o tribunal conclusiva e/ou de direito toda aquela que não se mostra mencionada no acervo de factos provados e não provados – localizamos dois depoimentos que merecem particular destaque, suscetíveis de produzir esclarecimento.
O episódio do dia 13 de março de 2019 foi corroborado pela testemunha (…) - todos os depoimentos aqui citados mostram-se exarados na ata da sessão de julgamento referência eletrónica 89709489 -, em termos que se afiguram suficientemente convincentes, até porque inexiste prova de relevo em sentido contrário ou antagónico.
Trata-se de depoimento proveniente de pessoa desinteressada na causa, sem relação de particular proximidade com o arguido ou a vítima, inclusivamente é amigo do arguido, note-se, conhece-o desde pequeno, o que aqui nos parece à abonar à espontaneidade e credibilidade que se deve atribuir a este depoimento.
Com base no mesmo demos provado, na essência – com a exceção que decorre do facto não provado 11. – o episódio em referência.
O segundo depoimento que cumpre registar é o depoimento de (…), que se referiu a um murro, há cerca de três anos, no quadro de uma discussão entre o arguido e a vítima, não sendo absolutamente claro e inequívoco, todavia, se este evento se relaciona com algum dos factos concretamente acusados.
Murro propriamente dito, na acusação pública, deteta-se apenas um, em 2007 - pois que é conclusivo, não suficientemente concretizado, o descrito nos pontos 5. a 7. da acusação pública -, o que não é coincidente, em termos temporais, com referido pela testemunha, ainda que a mesma não estivesse certa ou tenha acusado falha de memória quanto à localização temporal do evento; assim nos parece que o depoimento é, no geral, inconclusivo quanto aos factos acusados.
As testemunhas (…) aludiram a uma discussão, numa ocasião em que se encontravam de férias na residência do casal, depreendemos que há cerca de 8/9 anos, mas diretamente não presenciaram agressões.
No que tange à prova testemunhal produzida pela defesa, consistente nos depoimentos de (…) transversal ou comum aos mesmos é que deram conta de ser a vítima a potenciar discussões entre o casal, porque consumia bebidas alcoólicas em excesso ou tinha “mau beber, exaltando-se com facilidade, enquanto que o arguido se mantinha calmo, de certo invertendo o sentido da acusação e colocando o arguido no lugar da vítima.
Estes depoimentos, todavia – e salientando-se que é desde logo em face da prova da acusação que os factos da acusação não se comprovam -, não contrariam, relevantemente, aquele episódio do dia 13 de março de 2019 que o tribuna considera demonstrado para além da dúvida razoável, em face do depoimento preponderante de (…).
A demais factualidade provada (factos provados 5. e segs.), que considerámos para efeitos de determinação da sanção, tem por base as declarações do arguido, o certificado do registo criminal e as informações solicitadas aos serviços de reinserção social e ao órgão de polícia criminal (a informação atualizada de risco).
Regista-se, por fim, que o casamento, o divórcio, o filho em comum, é matéria que se evidencia meramente em face dos assentos de nascimento que servem de prova documental à acusação pública.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova testemunhal produzida em julgamento que o tribunal "a quo" deu como provado que o arguido praticou o crime pelo qual depois o condenou, mais tendo sido violado o princípio "in dubio pro reo"; e
2.ª – Que o comportamento do arguido não integra a prática do crime de violência doméstica, mas antes o de injúria.
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Como acima dissemos, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
E, neste caso, há um assunto de conhecimento oficioso que se impõe seja conhecido.
É ele o de nem na matéria de facto assente como provada, nem na assente como não provada, constar quaisquer factos relativos ao dolo do agente e que na acusação tinham sido articulados do seguinte modo:
20. Através dos maus-tratos psíquicos e físicos perpetrados pelo arguido, da forma descrita, contra a pessoa de (…), sua mulher, quis o arguido molestá-la psicológica e fisicamente, causar-lhe lesões, dores, incómodos e perturbação psicológica, humilhação e atemorizá-la, limitar-lhe a sua liberdade pessoal e de movimentos e ofendê-la na sua honra e consideração, no interior do domicílio comum do casal e, por algumas vezes, na presença do filho menor do casal, o que representou, quis e conseguiu.
21. O arguido sabia, ainda, que as suas condutas eram aptas a molestar a integridade física de (...) e, não obstante, quis agir da forma por que o fez com o propósito de alcançar tal resultado, o que conseguiu.
22. Agiu o arguido sempre livre, deliberada e conscientemente, com a consciência que lhe incumbia especial dever de respeito pela integridade física e moral e pela dignidade de (...), por força de manter com a mesma relação análoga à conjugal, e que, por praticar tais actos no interior da residência daquela e, por vezes, na presença do filho menor do casal, os seus comportamentos eram particularmente gravosos.
23. O arguido actuou sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiu de as adoptar
Na parte da sentença relativa à apreciação jurídica do caso, exarou o tribunal "a quo" o seguinte acerca dessas matérias:
(…)
O tipo subjetivo pressupõe o dolo, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
(…)
Subjetivamente se conclui, em face da mesma conduta, que o arguido quis maltratar psicologicamente a vítima, prefigurando-se dolo direto (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.
O descrito em 20. a 23. da acusação pública é conclusivo, não deve constar como matéria de facto provada ou não provada, mas, enquanto conclusão sustenta-se, parcialmente ou com reporta à matéria que resulta provada.
Salientar-se-á que a consciência da ilicitude assume-se por defeito, pode é ser afasta, mas mediante fatos que revelem essa ausência (cf., artigos 14.º, n.º 1, e 17.º do Código Penal).
A existência de uma ação humana livre, por outro lado, sempre se assume, ela é pressuposto de toda a dogmática penal, “O homem é um ser racional e livre. Negada a liberdade da vontade, todos os atos humanos seriam apenas fenómenos naturais”, cf., Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, Parte Geral I – II, Almedina, 2010, pág. 15 (Vol. I).
Mas mesmo essa liberdade é um juízo, uma assunção que se faz e onde se alicerça a possibilidade de culpa; o tribunal não pode dar como provada a culpa, como se tratasse de um facto, suscetível de prova ou de uma convicção do julgador; facto é apenas o fenómeno objetivo, e, por isso, renovamos, o descrito nos pontos 20. a 22. é conclusivo ou matéria de direito.
Termos em que, inexistindo causas de exclusão da culpa e/ou da ilicitude, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal.
(…)
Vejamos:
De uma forma muito simples pode dizer-se que o dolo é o cometimento do facto com conhecimento e vontade. Isto é: consiste no conhecimento e/ou representação e vontade de realização do facto material típico.
No dolo é possível individualizar dois elementos distintos. O elemento intelectual ou cognitivo e o elemento emocional ou volitivo.
O elemento intelectual ou cognitivo, no dizer do Prof. Cavaleiro Ferreira, Direito Penal, 1972, pág. 49, consiste na “consciência ou previsão dos elementos essenciais da ilicitude do facto típico”, ou como refere o Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, Coimbra, 1971, pág. 368 o elemento intelectual ou cognitivo “traduz-se na exigência (…) de que o agente conheça o tipo legal de crime que a sua vontade visa realizar”.
O elemento emocional ou volitivo traduz-se em o agente agir com vontade. A vontade, por sua vez, implica um querer e este pode assumir três formas, a saber:
Tanto pode ser aquilo que o agente se propôs realizar com a sua acção (dolo directo), como aquilo que o agente representou ou previu na sua mente como consequência necessária do facto (dolo necessário), como pode ainda ser aquilo que o agente tenha representado como possível resultado da sua conduta (dolo eventual).
O elemento intelectual ou cognitivo aparece vertido na matéria de facto geralmente na formulação de bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Este bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, é um elemento do mais modernamente denominado dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que determinado comportamento ou aquele acervo de factos que praticou, é crime. Ou seja e no que ao caso concreto dos autos interessa, que estava a cometer um crime e que, por isso, o seu comportamento era proibido, quando No dia 13 de março de 2019, quando a vítima se encontrava no seu local de trabalho, no café da (…), pelas 19h00, o arguido compareceu neste local. Aí chegado, e encontrando-se embriagado, o arguido dirigiu-se à vítima e disse-lhe “quero lá o dinheiro na conta!”, “ladra, tiraste-me o dinheiro!”, “para foder não presta, mas é boa a fazer broches!”, “ladrona, vais-me pagar”, “és uma merda”, “não vales nada”, “isto é uma puta, roubou-me 60 euros lá da caixa!” e “ela vai mas pagar!”.
Mas a explicitação deste dolo da culpa no acervo dos factos provados é imprescindível para a punibilidade do crime, no caso do crime de violência doméstica?
Como se diz nos considerandos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 1/2015 (DR 18 SÉRIE I de 27-1-2015):
O conhecimento da proibição legal, que não é exactamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. «Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […] » FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 363/364).
A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à protecção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.
Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que actuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, actuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg.
Ora o mesmo se passa, dizemos agora nós, em relação à violência doméstica. Na verdade, é tal a publicidade e notoriedade que é dada ao assunto nas televisões e demais meios de comunicação social, com campanhas de específica prevenção desse comportamento, notícias da ocorrências e do resultado de operações policiais, que é irrisório pretender que só se constar da matéria de facto assente como provada que o agente bem sabia que tal era proibido e punido por lei é que poderá ser condenado pelo crime de violência doméstica.
E é aqui que vamos convergir com o entendimento que de situações idênticas tem tido a Relação de Évora, designadamente no ac. TRE de 12-3-2019, proc. 251/15.3GESTB.E1, relator António João Latas, quando diz que a consciência da ilicitude respeita, pois, à culpa e em princípio não tem que ser alegada e provada, devendo sê-lo apenas nas hipóteses (residuais, pelo menos do ponto de vista estatístico), de falta de consciência da ilicitude, censurável ou não censurável – art.º 17.º, do Código Penal –, como sucede, aliás, com a generalidade dos elementos da culpa enquanto categoria autónoma da teoria geral da infração, que, integrando a categoria dogmática das causas de exclusão da culpa, apenas são discutidas, constituindo objeto de apreciação e decisão autónomas, nos casos em que as hipóteses factuais respetivas sejam tratadas na fase de inquérito pelo MP, sejam invocadas pelo arguido ou resultem da discussão da causa, pelo que não tem fundamento a exigência de articulação da “consciência da ilicitude” na acusação em todos os crime dolosos.
Também no ac. TRE de 26-6-2018, proc. 8001/15.8TDLSB.E1, relator Sérgio Corvacho, se decidiu que:
I - A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal. Pelo contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal.
II. Não deve ser rejeitada a acusação pela circunstância desta não conter a alegação de que o arguido “ «sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», ou expressão equivalente.
E no texto do ac. TRE de 13-9-2016, proc. 60/09.9T3GDL.E1, relatado pela Exma. Desembargadora que é adjunta no presente acórdão, é referido que se aceita que os factos relativos ao elemento emocional – ou seja, os factos do dolo da culpa – não sejam de especificação obrigatória no requerimento do assistente (e na acusação), sob pena de o terem de ser então todos os restantes elementos da doutrina do crime.
Assim se conclui que a ausência na matéria de facto assente como provada do dolo de culpa, traduzida na omissão de na matéria de facto assente como provado não ter o tribunal "a quo" deliberadamente feito constar o excerto da acusação em que se dizia que 22. Agiu o arguido (…) com a consciência que lhe incumbia especial dever de respeito pela integridade física e moral e pela dignidade de (...), por força de manter com a mesma relação análoga à conjugal, e que, por praticar tais actos no interior da residência daquela e, por vezes, na presença do filho menor do casal, os seus comportamentos eram particularmente gravosos. 23. O arguido actuou sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas, e, ainda assim, não se coibiu de as adoptar, não constitui no específico caso dos autos, em que o crime em causa é a de todos bem conhecida violência doméstica, impedimento a que se mostrem preenchidos todos os elementos desse crime e à condenação do seu autor pelo mesmo.

Não obstante, outro tanto não se passa com o elemento emocional ou volitivo do dolo, o qual se traduz em o agente agir com vontade. Vontade que implica um querer e, como acima já dissemos, pode assumir três formas:
Tanto pode ser aquilo que o agente se propôs realizar com a sua acção (dolo directo), como aquilo que o agente representou ou previu na sua mente como consequência necessária do facto (dolo necessário), como pode ainda ser aquilo que o agente tenha representado como possível resultado da sua conduta (dolo eventual).
E ignorar deliberadamente a explanação na matéria de facto assente como provada de com qual destas vontades agiu o agente, mais: omitir de todo que sequer se tenha ou não provado que o agente agiu de forma livre e deliberada, é – com o devido respeito pela posição assumida na decisão recorrida – um inadmissível retorno civilizacional.
Além disso, obviamente que não são indiferentes à medida da pena concreta que venha a ser aplicada ao agente os factos que se venham a provar descritivos da intenção com que agiu.
Certo que, revolvida a sentença recorrida, encontramos na parte referente à apreciação jurídica dos factos, a fls. 12, a menção de que o tribunal "a quo" conclui, em face da mesma conduta, que o arguido quis maltratar psicologicamente a vítima, prefigurando-se dolo direto (art.º 14, n.º 1, do Código Penal – o que constitui novo motivo de censura desta Relação, porque apesar do dolo, em qualquer das suas vertentes, pela sua própria natureza subjectiva, ser um fenómeno da vida interior do indivíduo, e por isso, insusceptível de apreensão directa, só sendo possível captar a sua existência, na falta de confissão, através dos factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, a sua demonstração ou o seu afastamento tem de constar do elenco da matéria de facto, uma vez que é hoje indefensável no direito penal a ideia de «dolus in re ipsa», isto é, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, que é, ao fim e ao cabo, o caminho seguido pelo tribunal "a quo" ao não fazer na matéria de facto assente como provada ou não provada qualquer referência a factos integradores da intenção do agente, retirando antes esse estado como conclusão jurídica automática da verificação objectiva da infracção.
Ora, ao assim deliberadamente omitir pronunciar-se, em termos de matéria de facto, sobre os factos integrantes do dolo, entendeu pois o tribunal "a quo" não se pronunciar nesse âmbito, quando o devia ter feito – incorrendo assim a sentença recorrida na nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1 al.ª c)-1.ª parte, do Código de Processo Penal.

A existência do apontado vício prejudica o conhecimento, por ora, das questões suscitadas no recurso e que atrás inventariamos.
IV
Nestes termos e com tais fundamentos, anula-se a decisão recorrida, determinando-se que seja proferida uma nova sentença, se possível pelo mesmo tribunal, em que seja suprida a apontada omissão (fazendo constar da matéria de facto assente como provada os factos descritivos pelo menos do elemento emocional ou volitivo do dolo, nos termos explanados a fls. 16 e ss. do presente acórdão), e assim, sanada a nulidade respectiva.
Sem custas.
Évora, 22-9-2020
(elaborado e revisto pelo relator; tem voto de conformidade por parte da Exma. Desembargadora Adjunta, Dr.ª Ana Barata Brito, que não assina por não estar presente, atento o actual estado de pandemia da Covid-19)