Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
702/14.4TBCTX.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: REGISTO PREDIAL
DOCUMENTO IDÓNEO
Data do Acordão: 06/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Um documento que prove um elemento da causa de pedir não é um documento essencial no sentido do art.º 590.º, Cód. Proc. Civil.
II - A fase dos articulados não finda enquanto todos os réus não estiverem citados.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 702/14.4TBCTX.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

O A. (…) intentou a presente acção contra (…), (…) e (…), pedindo a sua condenação no pagamento de metade das despesas que realizou com a Quinta de São (…), prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº (…)/19870421, da freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) da secção S e na matriz urbana, sob os artigos (…), (…) e (…), do qual o A. é proprietário de metade e as RR. proprietárias da outra metade, sob pena de enriquecimento sem causa.
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Notificado para juntar suporte documental onde conste que as RR. são titulares inscritas relativamente ao imóvel, o A. juntou nova descrição predial do imóvel na qual consta o A. como titular inscrito na proporção de 1/3. Para além do A., constam como titulares inscritos na proporção de 1/3 (…), e 1/3 (…), casado com (…), no regime da separação de bens.
Novamente notificado, o A. não juntou suporte documental relativo à titularidade das RR. como proprietárias do imóvel.
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Foi, depois, proferida decisão em que, considerando-se verificada uma excepção dilatória inominada (falta de documento essencial à acção), absolveu as RR. da instância.
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Desta sentença recorre o A. alegando, no essencial:
Na ordem jurídica portuguesa, salvo casos excecionais, o registo destina-se apenas a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, conforme se retira dos art.ºs 1.º, 5.º e 7.º do Código do Registo Predial. Motivo pelo qual entende o Recorrente que o Tribunal a quo não podia fazer depender o andamento dos presentes autos da apresentação, por si, de uma certidão de registo predial.
O Tribunal a quo deveria ter aguardado pela citação de todas as R.R. para que estas se pronunciassem sobre a pretensão do Recorrente e também para que fosse, pelo menos, junta aos autos a eventual habilitação de herdeiros.
O Tribunal a quo decidiu absolver as R.R. da instância por considerar a certidão de registo predial como um documento fundamental que não foi apresentado pelo Recorrente.
Nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 590.º do CPC, ao qual o Tribunal a quo alude para absolver as R.R. da instância, o despacho pré-saneador destinado a determinar a junção de documentos deve ser proferido após o termo dos articulados.
Sendo que no momento da prolação da sentença apenas se encontrava citada uma das R., cujo prazo para apresentar contestação ainda não havia decorrido em virtude de não terem sido citadas as restantes R.R., considerando-se que o Tribunal a quo incorreu na violação do disposto no n.º 2 do art.º 590.º do CPC.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos.
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O relatório contém os elementos necessários para a decisão.
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São dois os problemas: conteúdo do despacho e momento do despacho.
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O despacho recorrido considerou o seguinte:
«O presente processo visa responsabilizar as RR. pelo pagamento de metade das despesas de manutenção do imóvel, suportadas apenas pelo A., na qualidade de comproprietário de metade do prédio, sendo as RR. proprietárias da outra metade.
«Não dispondo o A. de suporte documental relativo à titularidade do prédio que afirma, e resultado dos documentos juntos que a titularidade do mesmo é diversa da invocada, os autos não podem prosseguir os seus termos, pois a prova do facto invocado não pode ser suprida por outro meio.
«A junção da certidão de registo predial na qual conste que as RR. são as titulares inscritas relativamente ao imóvel, é um documento essencial para o prosseguimento da acção e para a apreciação do mérito da causa, pois constitui um pressuposto essencial de que depende esse prosseguimento».
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O art.º 590.º, n.º 2, al. c), Cód. Proc. Civil, manda que, findos os articulados, o juiz profira, se for caso disso, despacho destinado a determinar a «junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador». A função do documento é possibilitar a decisão da causa sem se chegar à fase do julgamento.
O n.º 3 acrescenta que o juiz pode ainda convidar as partes para juntar um documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
Caso típico é o das acções de estado, dadas as regras estritas do Código de Registo Civil no que à prova respeita. Por um lado, «os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados» (art.º 2.º); por outro, a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de Estado e nas acções de registo» (art.º 3.º, n.º 1). São estes, aliás, os primeiros exemplos que os autores dão sobre este assunto (cfr. Antunes Varela et alli, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 263; e, por mais recente, Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 163). Nestes casos existe uma ligação inextricável entre o documento e o próprio objecto da acção. Como escreve o autor citado em último lugar, o «documento é essencial à prova de um facto que constitua situação jurídica (necessariamente) precedente daquela que a parte quer fazer valer» (ob. et loc. cit.; itálico no original)
Mas noutros casos tal ligação não existe, pelo menos de forma tão íntima. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que, simplesmente, a lei exige o documento; tais serão os casos de revisão de sentença estrangeira (art.º 981.º) ou de acção de anulação de deliberação social (art.º 59.º, n.º 4, Cód. Soc. Comerciais).
Mas o documento pode ainda provar um facto constitutivo da situação jurídica alegada e neste caso ele não é um documento essencial mas um mero meio de prova cuja apresentação ou não terá influência no desfecho da acção.
No nosso caso, entendemos que apenas se verifica a terceira situação.
Não estamos perante uma acção real stricto sensu; um dos pressupostos da presente acção é, sem dúvida, a co-titularidade de um direito de propriedade mas o verdadeiro fundamento da acção é a despesa que o A. alega que teve com o prédio.
E aqui, das duas uma: ou as partes são comproprietárias e numa dada proporção ou o não são e será com base num documento do Registo Predial que tal será definido (sem pôr em crise que o registo predial é apenas fonte de uma presunção, nos termos do respectivo art.º 7.º, e que os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes, nos termos do art.º 4.º, n.º 1).
E daqui, com este documento, não se avança mais para o objecto da acção que é o da repartição das despesas que o A. alega ter tido; queremos dizer, não é a falta ou a existência da certidão do Registo Predial que vai demonstrar que o A. tem razão no seu pedido.
Pode-se provar um pressuposto da acção (se calhar, com mais rigor, a legitimidade material das partes) mas não se prova mais do que isso quando há mais a provar.
Por estes motivos, entendemos que a certidão do Registo Predial não é um dos documentos a que se refere o art.º 590.º.
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O outro argumento aduzido para a revogação do despacho tem que ver com o momento: quando pode o juiz convidar as partes para juntarem determinado documento?
A lei dá uma resposta clara: findos os articulados (art.º 590.º, n.º 2, 1.ª parte).
E os articulados estão findos quando mais nenhum se possa apresentar (ou porque já foi apresentado ou porque não foi apresentado no prazo legal). Depois das contestações, no caso de pluralidade de réus, depois da resposta, se a ela houver lugar, é que o processo passa para as mãos do juiz. É quando o processo lhe chegar às mãos, já todo completo com os articulados das partes (e sem prejuízo, claro, da previsão do art.º 588.º), que o juiz vai decidir uma série de coisas; entre elas, convidar as partes a juntarem um documento.
Acontece que, no nosso caso, os réus não foram ainda todos citados o que significa de imediato que ainda não surgiu a possibilidade de eles (os não citados) contestarem, ainda não surgiu a possibilidade de um deles apresentar o seu articulado; enquanto esta possibilidade se mantiver, não podemos dizer que a fase dos articulados está finda.
E é só depois deste momento que a lei permite que o juiz tome as decisões referidas no n.º 2, 3 e 4 do art.º 590.º.
Assim, tem razão o recorrente quando afirma que o Tribunal a quo incorreu na violação do disposto no n.º 2 deste preceito legal.
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Como acima se disse, os problemas eram dois; mas existe um outro tema (que não um problema).
No despacho recorrido, depois de se ter decidido a absolvição da RR. da instância e depois do sacramental «registe e notifique», acrescenta-se o seguinte:
«Ainda que tal excepção não ocorresse, sempre estaria deserta a instância, ao abrigo do disposto no art.º 281º, nº 1, CPC, pois o processo encontrava-se a aguardar impulso processual por parte do A. há mais de seis meses».
Nada mais se diz.
O recorrente contraria, nas suas alegações e apenas por cautela de patrocínio, que a instância esteja deserta.
Cremos que sobre este assunto nada há a dizer porque nada se decidiu.
Existe, eventualmente, o fundamento de uma decisão mas não existe decisão.
E que assim é basta ter em conta que a instância não foi julgada extinta por deserção; foi julgada extinta por existir uma excepção dilatória inominada (é esta a decisão, aliás, a única decisão, que consta do texto).
Assim, não trataremos deste tema.
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente em função do que se revoga o despacho recorrido devendo a acção prosseguir os seus termos.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 8 de Junho de 2017
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho