Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
615/16.5 T9LLE - A.E1
Relator: MARIA LEONOR BOTELHO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Decisão: DEFERIDA
Sumário:
I - Estando em causa a investigação de crimes de tráfico de estupefacientes e branqueamento de capitais é de deferir o pedido de quebra do sigilo profissional de advogado por ser absolutamente essencial e imprescindível para a descoberta da verdade material e a realização da justiça que a senhora advogada deponha sobre os factos de que tem conhecimento no exercício das suas funções.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO
1. 1. - No âmbito de processo-crime a correr termos sob o n.º 26100376Z no Tribunal de Zeeland-West-Brabant, em Breda, nos Países Baixos, em que são arguidos Ivan, Giuliano, Sebastianus, Adriaan e Mario, foi emitida pelo Gabinete do Juiz Comissário daquele Tribunal e dirigida às Autoridades Judiciárias de Portugal carta rogatória, solicitando a audição como testemunha da Sra. Dra. A, advogada, a qual veio a ser distribuída à 1ª Secção de Instrução Criminal do Tribunal da Comarca de Faro com o nº 615/16.3T9LLE.

1.2. - Designada data para audição da referida testemunha, veio a dar-se início à audição da testemunha, que afirmou desconhecer os arguidos e, quando informada do nome das sociedades sobre as quais iria ser questionada, invocou o segredo profissional, afirmando que conhece a sociedade I… Consulttants LTD, com a qual manteve uma relação profissional, que está assim ao abrigo daquele segredo profissional, informando não pretender accionar por sua iniciativa o levantamento daquele segredo.

1.3. - Posteriormente, as Autoridades Judiciárias Holandesas vieram requerer que fosse dado início ao processo que levasse a decisão judicial que decidisse se a testemunha invocou o sigilo profissional injustificadamente ou não.

1.4. - Por despacho de 10.02.2017, veio a Mma. Juiz de Instrução a proferir despacho no qual, reconhecendo a legitimidade da recusa de prestação de depoimento, ordenou que se solicitasse a este Tribunal da Relação, nos termos previstos no art.º 135.º, n.º 3, do C. P.P., fosse autorizada a quebra do sigilo profissional da testemunha A., de forma a prestar depoimento no âmbito da referida carta rogatória.

Tal despacho tem o seguinte teor:

«Da quebra de sigilo:
Nos presentes autos de carta rogatória emitida pelas autoridades judiciárias do Reino dos Países Baixos (Juiz de Instrução de Breda, Holanda), foi requerida a cooperação judiciária internacional para inquirição de A. na qualidade de testemunha.

Foi realizada a inquirição da testemunha, com a presença do Juiz de Instrução (cfr. despacho de autorização de fls. 38) e defensores de parte dos arguidos na Holanda.

A testemunha A. tem a qualidade de advogado, tendo invocado sigilo profissional relativamente à generalidade das questões a colocar, sustentando ter sido nessa qualidade que poderá ter tido qualquer intervenção com os suspeitos cujo nome possui nos seus registos na qualidade de clientes.

Nos autos de que foi expedida a carta rogatória, investiga-se a prática de crime de branqueamento de capitais, bem como de tráfico de estupefacientes, consistente em os suspeitos branquearem dinheiro de factos criminosos relacionados a drogas através de transações de quotas, empréstimos de dinheiros, a compra de bens móveis e investimentos em bens imóveis (estrangeiros), uma e outra pela utilização de pessoas coletivas estrangeiras, ascendendo a quantia em dinheiro branqueada, a aproximadamente 1.850.000,00.

E que, em mensagens de fax, confiscada dos suspeitos, A. terá dado instruções para transferir, a cargo da sua conta 153 -----, uma quantia de 145.483,86 euros para R (R---- Holding S.A.H.), respeitando a “venda de estoque de Chiquita-Gibraltar” e que terá dado também instruções para transferir 100.000,00 para a conta bancária de E…. Holding S:A., ambas empresas que podem estar relacionadas com os suspeitos, sendo que não foi ainda possível apurar a proveniência efetiva das importâncias transferidas para a R--- Holding, tanto mais que o foram por intermédio de A.. Sendo que se suspeita que os dinheiros são ilegais (provenientes do tráfico de droga dos suspeitos), sendo que as entidades rogantes pretendem inquirir A. relativamente às referidas transações e empresas dos suspeitos (cfr. explanação mais pormenorizada a fls. 10 a 16.

Os ilícitos em investigação são punidos pelos arts. 420ter e bis do Código Penal dos Países Baixos, arts. 2° e 10° da Lei do Ópio e pelos arts. 368°-A do Código Penal e 21° e 21° do DL 15/93, de 22/01.

Ora, a testemunha a inquirir invocou que os factos sobre os quais se pretende recaia o seu depoimento versam matéria a coberto do sigilo profissional de advogada, por ter sido nessa qualidade que terá tido intervenção e referiu que não pretende requerer dispensa de sigilo.

Nessa sequência, pelo Juiz de Instrução rogante, foi requerido que no âmbito da presente carta rogatória se suscitasse o incidente de quebra de sigilo, dado o interesse na inquirição da testemunha.

Efetivamente, o depoimento da testemunha revela-se fundamental a aferir da proveniência das quantias monetárias transferidas e em investigação nos autos de que foi extraída a carta rogatória.
Nos termos do estatuído no art.º 92° do Estatuto da Ordem dos Advogados:

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.

Deste modo, a prestação de depoimento na qualidade de testemunha por parte da Sra. Advogada no âmbito dos presentes autos de carta rogatória e referente aos factos já referidos mostra-se, ao que tudo indica, a coberto de sigilo profissional de advogada, de invocação legítima por parte da mesma.

Considerando que o segredo profissional não tem um valor absoluto e não pode obstar à realização da justiça e à descoberta da verdade material, entendemos que estes valores, atenta a natureza dos ilícitos em investigação, são manifestamente superiores aos que se pretendem salvaguardar com o sigilo profissional de advogado, pelo que se impõe a sua quebra.

Face a tudo o exposto, e ao abrigo do disposto no art.° 135°, n.º 3 do Código do Processo Penal, determino que se solicite ao Tribunal da Relação de Évora para que, caso assim seja entendido, autorize a quebra do sigilo profissional da testemunha A., de forma a prestar depoimento no âmbito dos presentes autos de carta rogatória.

Instrua o apenso de incidente com certidão de fls. 2 a 16, 21, 24 a 27, 30, 33, 37 a 38, 42, 44, 47 a 49, 53 a 66, 71 a 72 e do presente despacho, bem como de CD contendo o depoimento oral prestado pela testemunha.

Dê conhecimento às autoridades rogantes».
*
1.3. - Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, chamado a pronunciar-se, emitiu parecer no sentido de os autos serem remetidos à 1ª Instância a fim de ali se averiguar se a testemunha actuou, ou não, na sua qualidade de advogada, já que só nesses caso se tratará de levantar, ou não, o segredo profissional, sendo que, se se apurasse que foi nessa qualidade que a testemunha agiu, haveria que ser ouvida a Ordem dos Advogados.

1.4. - Efectuado exame preliminar, foi proferido despacho que considerou o incidente o próprio e ordenou a notificação da Ordem dos Advogados a fim de emitir parecer nos termos previstos no art.º 135.º, n.º 4, do C. P. P..

1.5. – No seguimento de tal notificação, veio a Ordem dos Advogados a juntar aos autos o parecer que consta de fls 92/95, no qual conclui não ser de admitir a quebra do dever de segredo profissional, sem no entanto ter procedido à ponderação concreta dos valores em presença, tendo nomeadamente em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos, nos termos previstos no n.º 3 do mesmo art.º 135.º do C.P.P..

1.6. – Notificado tal parecer e colhidos os vistos legais, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do C.P.P..

II – FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. – Compulsados os autos, com relevo para a decisão, são de elencar os seguintes factos:

1 - Corre termos no Tribunal de Zeeland-West-Brabant, em Breda, nos Países Baixos processo-crime com o n.º 26100376Z, em que são arguidos Ivan, Giuliano, Sebastianus, Adriaan e Mario;

2 - Aqueles arguidos são suspeitos, entre outros, de:

Ivan:
Branqueamento de capitais e/ou quotas, cometido nos Países-Baixos e/ou Luxemburgo no período compreendido entre 2002-2010 (artigos 420ter e 420bis do Código Penal).

Guiliano:
Branqueamento de capitais e/ou quotas e/ou bens, cometido nos Países-Baixos e/ou Luxemburgo no período compreendido entre 2002-2010 (420ter e 420bis do Código Penal); A prática de actos de preparação para a produção de MDMA e anfetamina no período compreendido entre 2000-2010 nos Países-Baixos (artigos 2 e 10 Lei do Ópio). A exportação de drogas duras nos Países-Baixos e/ou na Austrália no período compreendido entre 2001-2002 (artigos 2 e 10 Lei do Ópio).

Sebastianus:
Branqueamento de capitais e/ou quotas e/ou bens imóveis, cometido nos Países-Baixos e/ou Luxemburgo no período compreendido entre 2000-2010 (artigos 420ter e 420bis do Código Penal).

Adriaan:
Branqueamento de capitais e/ou quotas e/ou bens, cometido nos Países-Baixos e/ou Luxemburgo no período compreendido entre 2002-2011 (420ter e 420bis do Código Penal).

Mario:
Branqueamento de capitais e/ou quotas, cometido nos Países-Baixos e/ou Luxemburgo no período compreendido entre 2002-2008 (artigos 420ter e 420bis do Código Penal. A prática de actos de preparação para a produção de drogas duras, cometida no período de Julho de 2010, nos Países-Baixos (artigos 2 e 10 do Lei do Ópio).

3 - No período compreendido entre 2000-2010 foram iniciadas várias investigações criminais com respeito aos suspeitos. Essas investigações não conduziram a condenações penais. Os resultados das investigações foram, a seguir, utilizados para uma investigação iniciada em 2010 (chamada "Pyriet Financiee1" ("Pyriet Financeiro")), baseada na suspeita de que suspeitos branquearam dinheiro de factos criminosos relacionados a drogas através de transações de quotas, empréstimcos de dinheiro, a compra de bens móveis e investimentos em bens imóveis (estrangeiros), uma e outra pela utilização de pessoas colectivas estrangeiras. Os suspeitos foram aconselhados a esse respeito por Ivan.

4 - A quantia total em dinheiro branqueado importa, segundo o Ministério Público, em aproximadamente 1.850.000,00 Euros.

5 - Os suspeitos, com excepção de Ivan, invocaram o seu direito de manter o silêncio.

6 - Ivan declarou que entrou em contacto com os suspeitos em relação a uma possível participação num projecto de horticultura (Fytofoam, Húngria). Segundo Ivan, os suspeitos (Família Azzarito, Sebastianus e Adriaan) junto com as pessoas colectivas ainda para serem constituídas R… Holding S.A. (H), M…. Holding S.A. (H) e D…. S.A. participariam nesse projecto. Ivan declarou que pôs a família Azzarito e Sebastianus em 2002 em contacto com Paul M (proprietário do escritório de contabilidade C… S.A.) para fins da constituição das pessoas colectivas acima mencionadas. Ivan declarou que M… até 2005 tratava das finanças (entre as quais a introdução de capital e os demais depósitos de dinheiro em e os pagamentos através das contas) das três pessoas colectivas, uma e outra sob as instruções dos "beneficial-owners". Ivan, a seguir, declarou que tomou posse de D… S.A. em 2004 e de R…. S.A. e de M… S.A. em 2005. Um número de depósitos, segundo Ivan, foram, a partir dessa altura, feitos por ele próprio a benefício das suas próprias actividades de empreendimento. Ivan declara que em 2005 foi constituída A… Soparfi S.A. para o comércio vinícola de Mario.. A constituição e a gestão do holding realizava-se, segundo Ivan, também através de C… Luxemburgo. Ivan declara, a seguir, que não tem nada a ver com a pessoa colectiva luxemburguesa de C… Real Estate Soparfi S.A. (constituída em 2000) e R… Soparfi S.A.;

7 - Paul M. foi ouvido em 2013 e 2014 pela polícia luxemburguesa. Declarou, em resumo, que R… Holding, M… Holding e D… S.A. foram constituídas por instrução de Ivan e Mário. Sebastianus, Mario e Adriaan depositaram o capital social no Banco "Dexia Banque Internationale Luxembourg". M. declara que não sabe nada de alguns depósitos nas contas das pessoas colectivas acima mencionadas. Um depósito de 200.000,-- Euros aos 27 de Maio de 2005 na conta de R… Holding S.A., foi, segundo M, feito por Ivan com o seu próprio dinheiro. A seguir, M. declarou que Mario exercia o controlo efectivo sobre A…Soparfi S.A. Em 2005 foram depositados por Mario 100.000 Euros em numerário no banco "Dexiabank" na cidade de Luxemburgo;

8 - As pessoas acima mencionadas, consequentemente, declaram - brevemente resumido - que estiveram envolvidas em actividades comerciais dos suspeitos com um número de sociedades estrangeiras, mas que não têm conhecimento de factos/circunstâncias indicadores de branqueamento, através dessas sociedades, de capital/bens criminosos;

9 - Na investigação foram examinados, pelo Ministério Público, os fluxos financeiros de entrada e de saída de, entre outras, R… Holding S.A.H. Aos 13 de Janeiro de 2004 são depositados 145.331,96 Euros na conta dessa holding, com a descrição "sales of stock from Chiquita Gibraltar". Numa mensagem de fax, confiscada das pessoas suspeitas, de 12 de Janeiro de 2004 está escrito na língua portuguesa que A. deu instruções para transferir, a cargo da sua conta 153 307----, uma quantia de 145.483,86 Euros para R…., respeitando a “venda de estoque de Chiquita-Gibraltar”. O assunto da mensagem de fax é: Chiquita-Adriaan.

10 - A seguir, torna-se evidente através dessa mensagem de fax, que A. ao mesmo tempo dá instruções para transferir 100.000,00 Euros para a conta bancária de E…. Holding S.A. Tanto E… Holding (Europe Venture Capital Holding) como R… Holding podem ser relacionadas com os suspeitos. Através de investigações tornou-se evidente que em 2005 foram depositadas grandes importâncias a favor de E… Europe BV e E.W. Fruits RT.

Estas sociedades também podem ser relacionadas com os suspeitos.

11 - O Ministério Público não conseguiu verificar a proveniência efectiva das importâncias transferidas para R…Holding. A seguir, não é claro porque essas importâncias foram transferidas (por intermédio de A.). Suspeita-se que os dinheiros são ilegais (provenientes de dinheiros do tráfico de droga dos suspeitos) e que foram transferidos para R. Holding através de uma pessoa intermediária (A.).

12 – A. em 2000 comprou, em nome de I… Consultants LTD (Sebastianus é o "Ultimate Beneficial Owner" da mesma), um bem imóvel em Portugal;

13 - Sebastianus tem como representante em Portugal A., NIF …...

14 - As Autoridades Judiciárias Holandesas pretendem inquirir A. relativamente às referidas transações e empresas dos suspeitos.

2.2. – Apreciando e decidindo
Impõe-se decidir se deve conceder-se a quebra do sigilo profissional invocado pela Ilustre advogada, Dra. A..

O segredo profissional abrange o conhecimento de factos ou informações obtido no exercício da profissão, no âmbito da qual normalmente existe uma especial relação de confiança que justifica, por um lado, a obtenção desse conhecimento, e que, por outro, proíbe a divulgação desse conhecimento, sem autorização ou causa que a justifique.

Os profissionais obrigados ao sigilo profissional estão assim impedidos de divulgarem as informações que obtiveram no exercício da sua actividade profissional, sobre eles impendendo um dever ético de não revelarem o que apreenderam por força de tal actividade.

Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, pág. 961, o segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da sua actividade profissional e na base de uma relação de confiança.

Não basta assim o simples exercício da actividade sujeita a sigilo profissional para se verificar a obrigatoriedade de respeito pelo referido segredo, necessário sendo que os factos ou informações em causa se encontrem em conexão com o exercício dessa actividade, isto é, tenham sido obtidos por força e no âmbito de tal actividade.

Não obstante, o segredo profissional não é um segredo absoluto, sem qualquer possibilidade de afastamento, mas as razões da sua existência impõem que, só excepcionalmente, possa ter lugar a quebra de tal segredo.

No caso, o sigilo profissional foi invocado por uma advogada, relativamente a factos de que, segundo afirma, teve conhecimento no âmbito da sua profissão.

A legitimidade de tal recusa foi reconhecida pela Mma. Juiz de Instrução, nada existindo nos autos que permita pôr em causa tal conclusão.

Impendendo sobre a generalidade das testemunhas a obrigatoriedade de testemunharem, isto é, de revelarem os factos em investigação de que têm conhecimento (art.º 131.º do C.P.P.), situações existem em que a recusa em depor se afigura legítima, sendo uma dessas situações precisamente o caso do segredo profissional.

Sobre o mesmo segredo, determina-se no art.º 135.º do C.P.P.:

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.»
(sublinhados nossos)

Quanto ao segredo profissional do advogado, determina-se no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de Setembro, que:

«1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a)A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

Assim, no que respeita ao sigilo profissional do advogado, verifica-se que este deixa de estar sujeito ao mesmo em três situações distintas:

- quando é o próprio cliente que o desvincula de tal segredo, autorizando a divulgação da informação;

- quando é dispensado do segredo profissional pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo no seguimento de pedido formulado pelo próprio advogado, nos termos previstos no n.º 4 do citado art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados; e

- no âmbito do incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art.º 135.º do C.P.P..

No âmbito deste incidente, subidos os autos ao Tribunal da Relação, impõe-se fazer uma análise ponderada e prudente dos interesses em jogo, por forma a determinar qual deles deve prevalecer, nos termos previstos no n.º 3 do art.º 135.º do C.P.P., atendendo nomeadamente à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção de bens jurídicos.

No caso em apreço, os interesses conflituantes prendem-se, por um lado, com o interesse do Estado na realização da justiça penal e, por outro, com o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na advocacia, havendo também que atentar que existe um terceiro interesse, o da defesa dos arguidos em processo penal, consagrado no art.º 32.º da C.R.P., já que, no caso, os titulares de tal direito, os arguidos, não são os obrigados ao segredo cujo levantamento é pretendido.

A imprescindibilidade do depoimento da testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial na decisão sobre a quebra do segredo.

De acordo com os dispositivos legais transcritos, o tribunal só pode determinar a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, daí resultando que o levantamento do sigilo só se justifica se se mostrar indispensável para a investigação do crime em causa.

Conforme podemos ler no Ac. TRL de 24-09-2008, CJ, 2008, T4, pág.134:

«I. A quebra de sigilo profissional dos advogados impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do sigilo profissional deve ceder ou não perante outros interesses, designadamente o da colaboração com a realização da justiça penal, ponderando-se a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime em causa e a necessidade de protecção dos bens jurídicos.

II. Ouvida a Ordem dos Advogados, nos termos do artº 135º, nº4 do CPP, o parecer emitido por este organismo não é vinculativo para o tribunal a quem compete decidir o incidente de quebra de segredo profissional.»

Também no Ac. do TRC de 05.04.2017 se considerou:
«I - Por norma aquele que está sujeito ao dever de guardar segredo ou sigilo, obteve conhecimento de factos devido a uma especial relação de confiança com quem lhe presta a informação, justificando-se assim a não divulgação, sem consentimento ou causa justificativa. II - O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer. III - O interesse da investigação criminal é preponderante em relação ao interesse protegido pelo sigilo profissional, pelo que se justifica a sua quebra, mediante a prestação dos depoimentos pretendidos.»

No caso sub judice, ouvida a Ordem dos Advogados, nos termos previstos no n.º 4 do art.º 135.º do C.P.P., emitiu aquele Organismo parecer no qual não é feita qualquer ponderação dos interesses em jogo, como o impõe o n.º 3 do mesmo normativo legal, limitando-se a concluir não ser caso de quebra de sigilo profissional.

Ora, conforme decorre da factualidade acima elencada, os factos conhecidos pela testemunha e cobertos pelo segredo profissional de advogado afiguram-se essenciais para a investigação e descoberta da verdade material quanto aos crimes de branqueamento de capitais e de tráfico de estupefacientes, sendo certo que o conhecimento dos fluxos financeiros (entradas e saídas) dos montantes monetários obtidos com tais ilícitos criminais se mostra essencial à investigação de tais crimes.

O depoimento da testemunha revela-se efectivamente fundamental para aferir da proveniência das quantias monetárias transferidas e em investigação nos autos de onde foi extraída a carta rogatória no âmbito da qual foi deduzido o presente incidente de levantamento de sigilo profissional, já que, tanto quanto resulta dos autos, a testemunha teve intervenção directa nos factos, tendo dado instruções para transferências de quantias monetárias elevadas de conta bancária de que é titular para contas de empresas relacionadas com os suspeitos, encontrando-se esses movimentos bancários em investigação por suspeita da prática de crimes de branqueamento de capitais e de tráfico de estupefacientes, consistente em os suspeitos branquearem dinheiro de factos criminosos relacionados com drogas através de transações de quotas, empréstimos de dinheiros, compra de bens móveis e investimentos em bens imóveis (estrangeiros), recorrendo à utilização de pessoas colectivas estrangeiras, ascendendo a quantia em dinheiro branqueada aproximadamente a 1.850.000,00 euros.

Neste enquadramento, estando em causa crimes de elevada gravidade e de difícil investigação, dada a facilidade de movimentação dos capitais, a dispersão internacional dos diversos elementos probatórios e consequente necessidade de intervenção de diferentes Ordens Jurídicas, e não visando o segredo profissional do advogado acobertar os proventos de actividade ilícita de outrem e inviabilizar a acção da justiça, revelando-se absolutamente essencial e imprescindível para a descoberta da verdade material o depoimento da Ex.ma advogada, dúvidas não existem de que deve ser reconhecido como preponderante o interesse da realização da justiça, interesse que deve assim ser acautelado, ficando secundarizados os interesses relativos à reserva profissional e que subjazem ao sigilo profissional.

Impõe-se, pois, e legitimamente, a quebra do segredo profissional, já que a testemunha Dra. A. se encontra em situação privilegiada para contribuir para o cabal esclarecimento dos factos e descoberta da verdade material, justificando-se assim que cesse o dever de segredo profissional da Ilustre advogada e se abra caminho à sua colaboração na realização da Justiça, mediante a prestação do depoimento pretendido.

Consequentemente, na ponderação concreta dos interesses presentes, ao abrigo do que se dispõe no art.º 135.º, n.ºs 3 e 4, do C.P.P., impõe-se determinar a quebra do segredo profissional invocado.
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder a pretendida quebra de segredo profissional, e, consequentemente, em determinar que a Srª. Drª A. preste depoimento como testemunha no âmbito da Carta Rogatória com o n.º 615/16. 5 T9LLE, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro (JIC – J1).
Sem tributação.
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Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)


Évora, 6 de Junho de 2017

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(Maria Leonor Botelho

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(Gilberto da Cunha)