Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
17/07.4GBORQ.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: NULIDADE DA ACUSAÇÃO
ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2009
Votação: MAIORIA, COM VOTO DE VENCIDO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. Não se encontrando prevista no art. 119.º do CPP, a nulidade de acusação é sanável, pelo que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente, não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 311.º, nº1 ou no art. 338.º, n.º1, ambos do CPP.

2. Por seu lado, a rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no nº3 daquele mesmo art. 311.º, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução, constituindo aquela rejeição consequência específica, sui generis, dos vícios das als a), b) e c) do n.º3 do art. 283.º do CPP quando conhecidos no despacho de saneamento e recebimento dos autos.

3. Ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 311.º do CPP), fica precludida tal possibilidade, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado, a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos.

4. No caso vertente, a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a acção penal em julgamento e os vícios previstos no nº3 do art. 311.º (incluindo a al. d)), apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável.

5. Não pode, pois, afirmar-se, que a decisão de rejeição proferida em momento anterior à abertura de audiência (como se verificou no caso sub judice) ou mesmo no início desta ao abrigo do disposto no art. 338.º nº1 do CPP, se limita a antecipar a decisão que infalivelmente virá a ser proferida após a audiência de julgamento, com os consequentes ganhos de economia e celeridade, processuais. Contrariamente ao que pode parecer numa primeira abordagem da questão, o vício formal verificado (seja ele a falta de narração de factos, ou a falta de indicação de provas ou dos preceitos legais aplicáveis) não inutiliza a funcionalidade do acto viciado (in casu a acusação), pois aquela pode cumprir ainda a sua função, nomeadamente no que respeita à satisfação dos interesses de índole material inerentes ao processo penal, como seja a condenação dos culpados, com respeito pelas garantias de defesa do arguido. Na verdade, o nosso processo penal, que não é indiferente ao princípio da conservação dos actos imperfeitos, contempla soluções de excepção em momento tardio do processo, como sejam as previstas nos artigos 358.º e 359.º, do CPP, que, conjugados com aquele princípio, tornam razoável a sua aplicação em casos de acusação imperfeita, nomeadamente nas situações de omissão parcial de narração de factos, como sucede no caso presente, tanto mais que o art. 339.º. nº4 do CPP expressamente inclui no objecto da discussão da causa os factos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. Relatório

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular n.º 17/07.GBORQ, do Tribunal Judicial de Ourique, J. constituiu-se assistente e deduziu acusação particular contra os arguidos (fls. 83 e ss.), imputando-lhe a prática, como autores materiais, de um crime de injúria na forma continuada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

O M.º P.º acompanhou esta acusação (fls. 90-91).

Notificados da mesma, os arguidos invocaram a fls. 104 e ss. a sua nulidade por dela não constar que estes tivessem agido com dolo, violando assim o disposto nos art.º 285.º, n.º 3 e 283.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, e peticionaram fosse, nos termos dos art.º 311.º, n.º 2 al.ª a) e n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, rejeitada pelo Senhor Juiz, por ser manifestamente infundada.

Considerando ser aquele requerimento legalmente inadmissível, o tribunal recorrido deu o mesmo como não escrito e recebeu a acusação, designando dia para julgamento pelo despacho de fls. 119-121.

Os arguidos apresentaram, oportunamente, contestação, na qual, entre outros assuntos, voltaram a invocar a nulidade da acusação.

Foi então proferido o despacho agora recorrido, do qual consta, além do mais, o seguinte:
(...)
J. constituiu-se assistente nos autos e deduziu acusação particular contra os arguidos (fls. 83 e ss.), imputando-lhe a prática, como autores materiais, de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 181.º n.º 1 e 30.º n.º 2, ambos do Código Penal (doravante C.P.).

Prescreve o art.º 285.º do Código de Processo Penal (adiante C.P.P.) que, em casos como o dos autos, ou seja, quando o procedimento depender de acusação particular, o assistente é notificado para, em 10 dias, querendo, fazê-lo.

Esclarece o n.º 3 do aludido preceito que à acusação particular é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 7 do art.º 283.º.
Ora, diz-nos este normativo que a acusação contém, sob pena de nulidade, além de outros requisitos, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (…).”

Da leitura atenta da aludida acusação não se extraem, efectivamente, e conforme propugnam os arguidos, factos donde resulte o conhecimento e vontade, por parte daqueles, em ofender a honra e consideração do assistente.

Com efeito, a simples indicação de que “os arguidos agem da forma descrita com o intuito de prejudicar o assistente” não preenche o apontado requisito de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido duma pena ou duma medida de segurança, porquanto a acusação particular em causa é desprovida de suporte factual no que concerne ao dolo dos arguidos, ou seja, dela não constam os elementos subjectivos constitutivos do crime de injúria àqueles imputado.

Os factos, tal como se encontram descritos na acusação particular, não poderão conduzir a uma condenação dos arguidos pela prática do crime de que vêm acusados.

Assim sendo, e pese embora o despacho que a recebeu, o qual, em meu entender, não constitui caso julgado, não constando da acusação particular apresentada pelo assistente, os elementos subjectivos constitutivos do crime de injúria p. e p. pelo art.º 181.º n.º 1 do C.P. , impõe-se a rejeição da mesma com fundamento no disposto no art.º 311.º n.º 2 al. a) do C.P.P., por referência ao disposto na al. b) do n.º 3 do mesmo preceito.

Com efeito, subjacente à consagração de tais preceitos está o princípio de evitar a sujeição a julgamento (e, consequentemente, a um processo incómodo e vexatório) de cidadãos que, à partida, se sabe, serão absolvidos.

Nestes termos, considerando a acusação particular deduzida nos autos pelo assistente J. nula, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto nos arts. 311.º n.ºs 1 e 2 al. a) e n.º 3 al. b) do C.P.P. (com referência aos arts. 285.º n.º 3 e 283.º n.º 3 al. b), todos do C.P.P.) decido rejeitá-la, bem como o pedido de indemnização civil que sobre ela vem fundado.

Face ao exposto, dou sem efeito as datas designadas para a realização da audiência de julgamento.
(...)
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Inconformado com o assim decidido, o assistente interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1 - O recorrente, na qualidade de assistente, deduziu, a fls. 83, acusação particular e pedido de indemnização civil contra os arguidos nos presentes autos.

2- A acusação particular foi acompanhada pelo Ministério Público, que também acusou pelos mesmos factos, a fls. 90.

3 - A fls. 109 os arguidos invocaram a nulidade da acusação particular, por falta de indicação do elemento subjectivo - dolo - relativamente ao crime que lhes é imputado.

4 - Por despacho proferido a fls. 119 pelo Tribunal a quo, o processo foi saneado, as acusações foram recebidas, e foram designadas datas para a realização da audiência de julgamento.

5 - Tal despacho declarou não existirem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.

6 - Uma vez transitado este despacho, o Tribunal só terá oportunidade de reexaminar a qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos ao proferir a sentença.

7 - Tal despacho tem força de caso julgado formal, não podendo incidir sobre a mesma questão de direito duas decisões contraditórias proferidas pelo mesmo Tribunal.

8 - A isso se opõem necessidades de segurança e de certeza jurídicas.

9 - Na medida em que ofende o caso julgado constituído pelo despacho de fls. 119, o despacho recorrido deverá ser revogado.

10 - Não se verifica a invocada nulidade de omissão, na acusação particular, de factos concernentes ao elemento subjectivo do crime, porquanto o recorrente alegou que os arguidos agiram com o intuito de prejudicar o assistente, e que este se sentiu ofendido na sua honra e consideração.

11 - Além de que "a consciência da ilicitude decorre da prática do facto punível, por alguém dotado das suas faculdades e sem que possa invocar-se erro relevante sobre a ilicitude", ou seja, "se alguém não privado das suas faculdades mentais dirige a outra pessoa palavras consideradas ofensivas da sua honra, tal implica necessariamente o conhecimento da ilicitude da respectiva conduta" (Acórdão da Relação do Porto, de 15/10/2007).

12 - A culpa, enquanto elemento constitutivo do tipo de crime, terá, assim, de ser apreciada em função da prova produzida em audiência de julgamento, não havendo qualquer razão para afirmar, como se faz no douto despacho recorrido, que os factos descritos na acusação particular "não poderão conduzir a uma condenação dos arguidos pela prática do crime de que vêm acusados".

13 - O Ministério Público, titular da acção penal, decidiu não apenas acompanhar a acusação particular, mas também acusar pelos factos nela descritos.

14 - Também o Tribunal, ao proferir o despacho de fls. 119, entendeu não existirem nulidades que obstem à apreciação do mérito da causa, o que reforça a tese de que aquela acusação não está ferida de nulidade.
15 - O douto despacho recorrido não rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público, pelo que esta se mantém.

Nestes termos, (...) , deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, mantendo-se o despacho proferido a fls. 119, que tem força de caso julgado, e ordenando-se sejam designadas novas datas para a realização da audiência de julgamento (...) .
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A Ex.ma Procuradora Adjunta do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:

1. O presente recurso tem por objecto determinar se o despacho que recebe a acusação e designa data para a realização da audiência de julgamento constitui ou não caso julgado, cfr. conclusões do recorrente;

2. Foi pelo assistente deduzida acusação particular contra os arguidos imputando-lhes a prática de um crime de injúria sob a forma continuada; tal acusação foi acompanhada pelo Ministério Público, tendo sido proferida acusação pelos mesmos factos contra os arguidos;

3. Os arguidos, quando notificados da acusação deduzida, vieram alegar a nulidade da mesma atenta a falta de elemento subjectivo (dolo); contudo, e em sede de despacho proferido no âmbito do art. 311° do C.P.P., o Tribunal entendeu inexistirem nulidades e questões prévias de que cumprisse conhecer, agendando data para a realização de audiência de discussão e julgamento;

4. Contudo, notificados do despacho que designou data para julgamento, vieram os arguidos em sede de contestação, alegar novamente a já invocada nulidade, tendo o Tribunal entendido que se verificava a nulidade invocada, rejeitando a referida acusação particular deduzida pelo assistente por manifestamente infundada;

5. A tal respeito já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto (em douto acórdão de 10/05/2000, in CJ, XXV, tomo 3, 2243), "proferido despacho a receber acusação deduzida pelo MP, não pode, depois, o juiz proferir despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação de despacho de recebimento."

6. Tal deverá ser conjugado com o teor do decidido pelo S.T.J. em douto acórdão de fixação de jurisprudência proferido em 16-05-95, no processo n° 047096 (in www.dgsi.pt), que decidiu "A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311 °, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.".

7. Resulta, assim, em nosso entender e salvo melhor opinião da conjugação de ambos os acórdãos citados que, ao proferir despacho no âmbito do art. 311° do C.P.P., esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal quanto às questões ali apreciadas; no entanto, o teor da decisão concreta não vincula o Tribunal, podendo este vir, em sede de julgamento, a entender de forma diversa e a decidir em sentido oposto ao anteriormente determinado naquele despacho;
8. Assim, a sede própria para apreciar tal questão novamente será o inicio da audiência de discussão e julgamento e não no âmbito de um despacho intercalar, como sucedeu "in casu";

9. Face ao que antecede, entendo que assiste razão à recorrente, devendo o despacho recorrido ser revogado.

Nestes termos, deve ser o douto despacho recorrido revogado, devendo os autos prosseguir os seus trâmites, designando-se data para a realização da audiência de julgamento, concedendo-se provimento ao recurso embora com fundamento distinto do alegado pelo recorrente.
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Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso.
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

A questão suscitada pelo recorrente é a de saber se após ter proferido despacho, nos termos do art.º 311.º e 313.º do Código de Processo Penal, a receber a acusação particular e a acusação pública e designar dia para julgamento, depois de considerar não se verificar nenhuma das nulidades, questões prévias ou incidentais a que se refere o nº1 do art. 311º, o senhor juiz recorrido podia, antes da abertura da audiência de julgamento, proferir despacho a rejeitar a acusação, considerando, “… a acusação particular deduzida nos autos pelo assistente (...) nula, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto nos arts. 311.º n.ºs 1 e 2 al. a) e n.º 3 al. b) do C.P.P. (com referência aos arts. 285.º n.º 3 e 283.º n.º 3 al. b), todos do C.P.P.) pelo que decide rejeitá-la, bem como o pedido de indemnização civil que sobre ela vem fundado.

2. Decidindo

a) Antes de mais, o despacho recorrido parece reflectir alguma confusão, numa dupla perspectiva.

Em primeiro lugar, por não diferenciar entre a decisão de nulidades, excepções e questões prévias ou incidentais a que se reporta o art. 311º nº1 do CPP e a rejeição da acusação prevista nos nºs 2 e 3 daquele mesmo artigo.

Em segundo lugar, por parecer que faz coincidir a nulidade da acusação a que se reporta o art. 283º nº 3 e a rejeição da acusação com fundamento nos vícios previstos nas als a), b) e c) do nº3 do art. 311º do CPP.
Ora, apesar de poder falar-se de sobreposição entre as causas de rejeição da acusação previstas nas alíneas a), b) e c) do nº3 do art. 311º do CPP e a nulidade da acusação (pública ou particular por [1] via da remissão operada pelo art. 285º nº3 do CPP) por falta dos elementos respectivos, de acordo com o disposto no art. 283º nº3, corpo, do CPP, a rejeição da acusação não se confunde com nenhuma daquelas nulidades.

Não se encontrando prevista no art. 119º do CPP, a nulidade de acusação é sanável, pelo que se não for deduzida por algum dos interessados no prazo legalmente estabelecido, perante a autoridade judiciária competente [2] , não pode ser conhecida enquanto tal em momento posterior, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 311º nº1 [3] ou no art. 338º nº1, ambos do CPP.

Por seu lado, a rejeição da acusação com algum dos fundamentos enunciados no nº3 daquele mesmo art. 311º, é decidida oficiosamente pelo juiz a quem o processo é distribuído, apenas no caso de o processo ser remetido para julgamento sem ter havido Instrução, constituindo aquela rejeição consequência específica, sui generis, dos vícios das als a), b) e c) do nº3 do art. 283º do CPP quando conhecidos no despacho de saneamento e recebimento dos autos.

b) Ultrapassado o momento legalmente definido para a rejeição da acusação (art. 311º do CPP), fica precludida tal possibilidade, o que, aliás, é conforme com o estabelecimento legal de fases e momentos próprios para o saneamento do processado [4] , a partir dos quais fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos.

No caso vertente, a acusação tornou-se definitivamente apta para suportar a acção penal em julgamento e os vícios previstos no nº3 do art. 311º (incluindo a al. d)), apenas relevarão na apreciação do mérito da causa (e já não enquanto vício formal lesivo da validade da acusação), de acordo com o regime processual aplicável em audiência e o direito substantivo igualmente aplicável.

Não pode, pois, afirmar-se, que a decisão de rejeição proferida em momento anterior à abertura de audiência (como se verificou no caso sub judice) ou mesmo no início desta ao abrigo do disposto no art. 338º nº1 do CPP, se limita a antecipar a decisão que infalivelmente virá a ser proferida após a audiência de julgamento, com os consequentes ganhos de economia e celeridade, processuais.

Contrariamente ao que pode parecer numa primeira abordagem da questão, o vício formal verificado (seja ele a falta de narração de factos, ou a falta de indicação de provas ou dos preceitos legais aplicáveis) não inutiliza a funcionalidade do acto viciado (in casu a acusação), pois aquela pode cumprir ainda a sua função [5] , nomeadamente no que respeita à satisfação dos interesses de índole material inerentes ao processo penal, como seja a condenação dos culpados, com respeito pelas garantias de defesa do arguido.

Na verdade, o nosso processo penal, que não é indiferente ao princípio da conservação dos actos imperfeitos, contempla soluções de excepção em momento tardio do processo, como sejam as previstas nos artigos 358º e 359º, do CPP, que, conjugados com aquele princípio, tornam razoável a sua aplicação em casos de acusação imperfeita, nomeadamente nas situações de omissão parcial de narração de factos, como sucede no caso presente [6] , tanto mais que o art. 339º nº4 do CPP expressamente inclui no objecto da discussão da causa os factos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos.

São várias as situações em que a ordem jurídica tolera os defeitos do acto processual inválido, acabando por aceitar os efeitos que produziria se fosse perfeito ab initio, nomeadamente quando associados com outros factos sucessivos, que vêm suprir ou tornar irrelevantes as deficiências cometidas [7] .

No caso presente, se da prova produzida em audiência resultarem indiciados os factos consubstanciadores do dolo, o cumprimento do disposto no art. 359º assegura suficientemente as garantias de defesa do arguido, pois apenas permite a sua condenação no processo em curso quando o arguido dê o seu consentimento (359º nº3), ao mesmo tempo que evita o sacrifício dos interesses materiais subjacentes, dado o preceituado nos nºs 2 e 3 do art. 359º nºs 1 e 2). Também no caso de se entender ser antes aplicável o disposto no art. 358º do CPP, quer por omissão parcial da narração de factos (vd supra, nota 5)), quer em casos de falta de indicações das disposições legais aplicáveis, aquele preceito assegura que o arguido disponha de tempo necessário para a sua defesa, permitindo o julgamento definitivo no processo em curso.

Concluímos, assim, que a partir do momento em que foi recebida a acusação pelo despacho a que se refere o art. 311º do CPP, não pode o mesmo juiz ou juiz diferente (como parece ter sucedido no caso presente) decidir rejeitar a acusação em momento processual posterior [8] , designadamente no início da audiência de julgamento, com fundamento em que se trata de nulidade ou questão prévia que obsta ao julgamento do mérito da causa (art 338 CPP), atenta a qualificação dos vícios subjacentes à rejeição de acusação que deixámos feita e o regime processual – maxime o disposto nos arts 358º e 359º, do CPP – que permite o aproveitamento de acusação imperfeita no decurso da Audiência de julgamento.

Dito de outro modo, se o juiz presidente não rejeitou a acusação no despacho a que se reporta o art. 311º do CPP, o vício da acusação eventualmente verificado deixa de relevar enquanto fundamento de rejeição da mesma, tomada tal rejeição como consequência atípica ou sui generis, apenas verificável naquele momento processual, sem prejuízo de o vício em causa poder vir a fundamentar decisão processual (maxime o cumprimento do disposto nos arts 358º ou 359º, do CPP) ou de mérito (v.g. absolvição) a proferir no decurso ou após a audiência de julgamento.

Concede-se, pois, provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que designe data para a audiência de julgamento, prosseguindo os demais termos do processo.

III. – Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP e, em consequência, decidem revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe data para a audiência de julgamento, prosseguindo os demais termos do processo.

Sem custas
Évora, 10.12.2009
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas – relator por vencimento, com base no projecto apresentado pelo anterior relator)

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(Martinho de Sousa Cardoso – anterior relator, com voto de vencido em anexo
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José Felisberto Proença da Costa – Presidente de Secção)

Voto de vencido:

Votei vencido porque teria lavrado acórdão com o seguinte teor:

“Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular n.º 17/07.GBORQ, do Tribunal Judicial de Ourique, J. constituiu-se assistente e deduziu acusação particular contra os arguidos (fls. 83 e ss.), imputando-lhe a prática, como autores materiais, de um crime de injúria na forma continuada, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1, e 30.º, n.º 2, ambos do Código Penal.

O M.º P.º acompanhou esta acusação (fls. 90-91).

Notificados da mesma, os arguidos invocaram a fls. 104 e ss. a sua nulidade por dela não constar que estes tivessem agido com dolo, violando assim o disposto nos art.º 285.º, n.º 3 e 283.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, e peticionaram fosse, nos termos dos art.º 311.º, n.º 2 al.ª a) e n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, rejeitada pelo Senhor Juiz, por ser manifestamente infundada.

Mas o Senhor Juiz na altura titular do processo, olvidando o teor do art. 98.º do Código de Processo Penal, considerou aquele requerimento legalmente inadmissível, deu-o como não escrito, ignorou e não decidiu expressamente a questão que nele lhe era exposta e recebeu a acusação em despacho genérico e tabelar, designando julgamento (fls. 119-121).

Mais tarde, no momento processual adequado, os arguidos apresentaram contestação, na qual, entre outros assuntos, voltaram a lembrar que a acusação era nula.

Foi então, por um outro Senhor Juiz, o novo titular do processo, proferido o despacho agora recorrido, do qual consta, além do mais, o seguinte:
(...)

J. constituiu-se assistente nos autos e deduziu acusação particular contra os arguidos (fls. 83 e ss.), imputando-lhe a prática, como autores materiais, de um crime de injúria, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 181.º n.º 1 e 30.º n.º 2, ambos do Código Penal (doravante C.P.).

Prescreve o art.º 285.º do Código de Processo Penal (adiante C.P.P.) que, em casos como o dos autos, ou seja, quando o procedimento depender de acusação particular, o assistente é notificado para, em 10 dias, querendo, fazê-lo.

Esclarece o n.º 3 do aludido preceito que à acusação particular é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 3 e 7 do art.º 283.º.

Ora, diz-nos este normativo que a acusação contém, sob pena de nulidade, além de outros requisitos, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (…).”

Da leitura atenta da aludida acusação não se extraem, efectivamente, e conforme propugnam os arguidos, factos donde resulte o conhecimento e vontade, por parte daqueles, em ofender a honra e consideração do assistente.

Com efeito, a simples indicação de que “os arguidos agem da forma descrita com o intuito de prejudicar o assistente” não preenche o apontado requisito de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido duma pena ou duma medida de segurança, porquanto a acusação particular em causa é desprovida de suporte factual no que concerne ao dolo dos arguidos, ou seja, dela não constam os elementos subjectivos constitutivos do crime de injúria àqueles imputado.
Os factos, tal como se encontram descritos na acusação particular, não poderão conduzir a uma condenação dos arguidos pela prática do crime de que vêm acusados.

Assim sendo, e pese embora o despacho que a recebeu, o qual, em meu entender, não constitui caso julgado, não constando da acusação particular apresentada pelo assistente, os elementos subjectivos constitutivos do crime de injúria p. e p. pelo art.º 181.º n.º 1 do C.P. , impõe-se a rejeição da mesma com fundamento no disposto no art.º 311.º n.º 2 al. a) do C.P.P., por referência ao disposto na al. b) do n.º 3 do mesmo preceito.

Com efeito, subjacente à consagração de tais preceitos está o princípio de evitar a sujeição a julgamento (e, consequentemente, a um processo incómodo e vexatório) de cidadãos que, à partida, se sabe, serão absolvidos.

Nestes termos, considerando a acusação particular deduzida nos autos pela assistente J. nula, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto nos arts. 311.º n.ºs 1 e 2 al. a) e n.º 3 al. b) do C.P.P. (com referência aos arts. 285.º n.º 3 e 283.º n.º 3 al. b), todos do C.P.P.) decido rejeitá-la, bem como o pedido de indemnização civil que sobre ela vem fundado.

Face ao exposto, dou sem efeito as datas designadas para a realização da audiência de julgamento.
(...)
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Inconformado com o assim decidido, o assistente interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:


A Ex.ma Procuradora Adjunta do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:


Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II

E fazendo-o.

De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que a principal questão posta ao desembargo desta Relação é a de estabelecer se, após o juiz ter, nos termos do art. 311.º e 313.º do Código de Processo Penal, proferido despacho genérico a considerar que o tribunal é competente, o assistente e o Mº Pº tem legitimidade para a acção penal e não existem nulidades excepções ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa, designa dia para o julgamento e define a situação coactiva dos arguidos, pode, antes do julgamento, proferir um outro no qual considera a acusação particular deduzida pelo assistente (…) nula, por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto nos art. 311.º n.º1 e 2, al. a) e n.º3, al. b) do CPP (com referência aos art. 285.º n.º3 e 283.º n.º3 al. b) todos do CPP) e decide rejeitá-la, bem como ao pedido de indemnização civil que sobre ela vem fundado.


Ou, dito de outro modo, se o despacho que recebe a acusação e designa dia para julgamento constitui ou não caso julgado formal que obste a que, posteriormente, o tribunal aprecie e decida a questão.

Vejamos:

Este assunto foi tratado no acórdão da Relação do Porto de 1-4-2009, relatado pelo Ex.mo Desembargador António Gama, proferido no processo 0847314 e acessível em www.dgsi.pt em termos que passaremos a seguir de perto, uma vez que concordamos com os mesmos.

O despacho de saneamento do processo de fls. 119, no qual se considerou o tribunal é competente, o assistente e o M.° P.° têm legitimidade para a acção penal e não existem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa, é um despacho «estereotipado ou tabelar», corrente na prática dos tribunais.

Sendo hoje aceite a preferência do fundo à forma, todos estão de acordo que a decisão genérica sobre inexistência de nulidades, proferida ao abrigo do art. 311. ° do Código de Processo Penal (diploma ao qual pertencerão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), não faz caso julgado formal; só pode falar-se de caso julgado formal, na estrita medida em que o juiz que proferiu o despacho analisou, apreciou e decidiu em concreto a questão.

A jurisprudência que o Supremo Tribunal de Justiça fixou no Acórdão n.º 2/95, publicado no Diário da República n.º 135, Série I-A, de 12-6-1995 - segundo a qual a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do art.º 311.°, n.º l, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento, - pode e deve ser estendida «às nulidades e outras questões prévias ou incidentais» quando sobre as mesmas verse despacho genérico ou tabelar proferido ao abrigo do art.° 311.°, n.º l, dada a identidade e similitude das situações. Essa declaração tabelar de que «não há nulidades...» não tem qualquer valor, razão por que não preclude a sua posterior apreciação nos autos.

Outra questão é a de saber se o momento em que foi proferido o despacho recorrido é o oportuno. Como vimos o despacho foi proferido depois do momento do saneamento do processo, a que se refere o art.º 311°, e antes do início da audiência, concretamente antes do momento do art.º 338°.

O nosso Código de Processo Penal não tem disposição expressa a permitir ou proibir esse conhecimento. Desse silêncio do legislador e do facto de o Código de Processo Penal eleger os momentos dos art.º 311. °, 338.° e 368.° como mais apropriados para o conhecimento de questões que obstem à apreciação do mérito da causa, não se pode retirar que o legislador apenas o possibilite nesses momentos e o proíba fora deles. Não se vislumbra qualquer razão substancial para tal. Só razões de extremo formalismo, que o legislador não abraça por ser adepto de que a forma está ao serviço do conteúdo, é que podiam ditar tal solução. Se v.g. entre o recebimento da acusação e o início do julgamento prescreveu o procedimento criminal, não há valor atendível para que essa declaração, com a consequente extinção do procedimento e arquivamento dos autos, não ocorra de imediato. Bem pelo contrário, razões de economia e celeridade apontam no sentido da permissão do imediato conhecimento; razões atinentes à paz jurídica do arguido e à desnecessária constrição de direitos fundamentais também apontam nesse sentido.

Outrossim o de obstar à prática de actos processuais inúteis. Viola princípios fundamentais do processo penal prolongar uma acusação inviável como, na minha perspectiva, o é a destes autos. A não ser que se entenda que tal inviabilidade nem no momento processual a que alude o art.º 338.° poderá ser conhecida e que o mecanismo contido nos art.º 358.° e 359.° permite colmatar toda a espécie de omissões da acusação quanto ao preenchimento dos elemento típicos do crime acusado e que desde que na acusação conste o nome do arguido e o crime por que é acusado o resto pode ir em branco que o tribunal em julgamento ao abrigo do art.º 358.° procederá ao preenchimento dos espaços vazios, pois que nem de uma alteração substancial dos factos se tratará, uma vez que dela não resulta a imputação ao arguido de um crime diverso, nem da agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.'.. Com o devido respeito por quem defenda esta perspectiva do princípio do acusatório, de todo me afasto dela. Quando o art.º 358.° fala em alteração não substancial dos factos descritos na acusação e quando o art.º 359.° fala em alteração substancial dos factos descritos na acusação quer-se referir a factos que já constam da acusação e que passam a ter outra versão ou a ser complementados por outros, não ao puro e simples preenchimento de elementos típicos do crime que não estão descritos na acusação. Interpretatío facienda est, ut ne sequatur absurdum!


Concluímos assim - abstraindo, por agora, do tipo de nulidade, se de conhecimento oficioso, se tempestivamente arguida e por quem tem legitimidade - que o conhecimento e a declaração da nulidade da acusação pode e deve ocorrer logo que for detectada ou arguida, mesmo num momento intermédio e não apenas nos momentos dos art.º 311.°, 338.° e 368.° [9]

Questão diferente, mas também com interesse para o caso dos autos, prende-se com a possibilidade de conhecimento oficioso do vício «acusação manifestamente infundada», a que se refere o art.º 311.°, n.º 2 al. a) e n.º 3.

Recorde-se que no processo, a seguir à dedução de acusação particular pelo assistente, depois acompanhada pelo M.° P.°, os arguidos vieram invocar a sua nulidade. A circunstância de no despacho do art.º 311.° o Senhor Juiz na altura titular do processo não ter conhecido dessa questão, não prejudica que posteriormente viesse a ser conhecida, como foi, tanto mais que isso sucedeu na sequência da apresentação pelos arguidos da contestação, na qual de novo levantaram a mencionada nulidade. Assim, nesta parte, porque oportuna e correctamente arguida, não se põe a questão de ser possível ou não o seu conhecimento oficioso. Aliás, não fora a circunstância de o Senhor Juiz titular do processo à data da prolação do despacho do art.º 311.° desconhecer o teor do art.º 98.° do Código Penal e essa questão devia ter sido nessa altura decidida, bem ou mal; se tal tivesse sucedido, então sim, não haveria lugar a posteriores novas apreciações do caso até à sentença final.

Não obstante e para maior sossego do assistente, importa dizer o seguinte sobre a possibilidade desse conhecimento oficioso do assunto:

O vício que o art.º 311.°, n.º 2 al. a), com a explicitação do n.º 3,genericamente denomina como «acusação manifestamente infundada», é qualificado no art.º 283. °, n.º 3 al.3 a), b) e c) como nulidade.

Esta nulidade, na falta de disposição legal em sentido contrário e porque não consta do catálogo das insanáveis, seria uma nulidade dependente de arguição, ficando sujeita ao regime legal previsto nos art.º 120. ° a 122.°.

No que respeita ao prazo de arguição, uma vez que a situação em apreço não se enquadra em nenhuma das situações previstas no art.º 120.°, n.° 3, teria de ser efectuada no prazo geral supletivo de 10 dias, previsto no art.° 105. °.

Por outro lado, nos termos do art.° 121. °, n.º l, a nulidade sanável pode ser sanada se os participantes processuais interessados:
a) Renunciarem expressamente a argui-la;
b) Tiverem aceite expressamente os efeitos do acto anulável; ou
c) Se tiverem prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia.

No caso em apreço, não ocorreu nenhuma das situações supra referidas, que implicam a sanação da nulidade, mas a mesma foi invocada no prazo legal supra indicado no art.º 105.°. Mas ainda que não o tivesse sido, segundo Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", 2ª ed., III, pág. 207- 208), face ao aditamento do n.º 3 ao art.º 311.°, operado pela Lei n.° 59/98, de 25-8, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art.º 283. ° e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal (no mesmo sentido: Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código de Processo Penal", 2a ed., pág. 744), não estando, portanto, dependentes de arguição por parte dos sujeitos processuais. Sendo de conhecimento oficioso, pode ser conhecida a todo o tempo, isto é em qualquer fase do procedimento, enquanto a decisão final não transitar em julgado (Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", 2ª ed., II, pág. 79; e acórdão Tribunal Constitucional n.° 146/2001).

Resolvido este assunto, resta-nos abordar a alegação do recorrente de que não se verifica a invocada nulidade de omissão, na acusação particular, de factos concernentes ao elemento subjectivo do crime (cfr. conclusão 10.ª).

Nos termos prevenidos no art. 311.°, n.° 2 al, a) e 3, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz de julgamento despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, devendo considerar-se como tal (i) quando não contenha a identificação do arguido, (ii) quando não contenha a narração dos factos, (iii se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, ou (iv) se os factos não constituírem crime.

Nos termos do disposto nos art. 283.°, n.° 3 al. b), ex vi art.º 285.°, n.° 3, a acusação, quer a deduzida pelo Ministério Público, quer a deduzida pelo assistente, deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a questão da determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

Tendo em atenção o princípio nuliapoena sine culpa, enunciado, máximo no art 13 ° do Código Penal, tem de reconhecer-se que o arrolamento dos elementos identificadores e integradores da culpa é inarredável quando se pretenda fazer imputação da prática de determinado ilícito criminal. Basta que se veja a culpa, na lição do Prof. Eduardo Correia, como a censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso e que nessa medida, se traduz num juízo de valor, sendo o juízo de culpa integrado pé a imputabilidade do agente, pela sua actuação dolosa ou por negligência e pela inexistência de circunstâncias que tomem não exigível outro comportamento ("Direito Criminal", 1971, Vol. I, pág. 313-314 e 322).

O dolo (ou a negligência) tem como substrato um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante o facto ilícito capaz de ligar um ao outro. É sabido, por outro lado, que esses factores psicologicamente «inscritos», eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo, não podem deixar de ser considerados «factos processualmente relevantes». Tudo para concluir que da acusação devem constar os factos que autorizem o referido juízo de censura ético-jurídica e, assim, para além do mais, que permitam fazer imputação da prática do crime ao acusado, a título de dolo (ou de negligência).

Ora o crime de injúria, como crime de resultado e doloso que é, tem como elementos constitutivos, objectivamente, a acção adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração de outrem, e, subjectivamente, o dolo, constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los - cfr. art.13.° e 14.° do Código Penal.

No plano do elemento subjectivo do tipo, importa reter que estamos em presença de um crime doloso, que se basta com um dolo genérico, em qualquer das modalidades - directo, necessário e eventual - elencadas no art.º 14.°, do Código Penal. Encontra-se hoje superada a antiga controvérsia no que respeitava à exigência da verificação do dolo específico, "animus injuriandi vel difamandi", sendo actualmente pacífico que o aludido crime se basta com o dolo genérico, não se exigindo qualquer finalidade específica.

Assim, para a verificação do elemento subjectivo do crime em referência, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que com o seu comportamento pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir.

Ora a asserção, constante da acusação particular e que o M.° P.° acompanhou, de que «os arguidos agem da forma descrita com o intuito de prejudicar o assistente» (art.º 13 da acusação particular, a fls. 84) é claramente insuficiente para preencher o elemento típico subjectivo do crime de injúria necessário e imprescindível à aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que a acusação que não contenha este elemento típico subjectivo é manifestamente infundada - e é nula - e deve ser rejeitada, nos termos dos art.º 311.° n.º l e 2 al. a) e n.º 3 al. b), com referência aos art. 285.º, n.º3 e283.º n.º3al.ª b).

Na minha opinião, bem andou, pois, a Senhora Juiz "a quo" ao fazê-lo.

IV
Termos em que teria decidido negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida, com custas pelo arguido e fixando-se a taxa de justiça em cinco UC (art.º 87. °, n.º l al.ª b), do Código das Custas Judiciais).

Évora, 10-12-2009

(Elaborado e revisto pelo vencido)

João Martinho de Sousa Cardoso




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[1] A propósito de cada uma das causas de rejeição da acusação previstas nas alíneas a), b) e c) do nº3 do art. 311º do CPP, o Prof. Germano M. da Silva refere que a nulidade do art. 283º que lhes corresponde se encontra sanada se não for arguida tempestivamente. – Cfr Germano M. Silva, Curso de Processo penal III, 2ª ed-Verbo-2000 pp. 206 a 208.
[2] Pinto de Albuquerque (Comentário do CPP-2007 p. 732, entende que a nulidade da acusação pública deve ser arguida perante o MP, titular do inquérito, cabendo reclamação hierárquica para o respectivo superior hierárquico, solução para que propendemos, sem prejuízo, porém, de aquela nulidade poder ser igualmente invocada e conhecida na fase judicial de Instrução, dado o disposto no art. 120º nº3 c) do CPP
[3] P. Albuquerque (Comentário do CPP 2007 p.777-8) afirma que nos casos em que não houve Instrução o juiz deve conhecer das nulidades de acusação, o que apenas faria sentido se a nulidade devesse ser arguida perante o juiz, entendimento que não sufraga, como referido na nota anterior, pelo que não é claro para nós o seu entendimento sobre esta matéria. Em todo o caso, tratando-se de nulidade sanável, a nulidade da acusação não pode ser conhecida oficiosamente, enquanto tal.
[4] Como diz Conde Correia, «A fixação destas barreiras [encerramento do inquérito, fim do debate instrutório, despacho que designa dia para a audiência de julgamento, início desta nos processos especiais e, por fim o trânsito em julgado da sentença final] …relaciona-se com a estrutura acusatória do processo penal. De facto, a inobservância das disposições processuais parece ganhar maior relevo quando ocorrer na fase de audiência de discussão e julgamento, momento fundamental neste tipo de processo. Os vícios cometidos anteriormente parecem ter uma relevância mais limitada dado o carácter provisório ou preparatório dos actos praticados nesta fase.» - nota 413 de p. 179
[5] Numa perspectiva próxima da que deixamos no texto, decidiu-se no Ac desta R. Évora de 15.07.2008 (CJ A. XXXIII, T. III/p. 264) que “A insuficiência de narração na acusação do elemento subjectivo não constitui fundamento para a sua rejeição”, pois “A rejeição apenas deve ser usada pelo julgador quando se verifique que a omissão detectada é integral e irremediavelmente insusceptível de vir a ser suprida, sendo por isso, de todo inviável a condenação do arguido.” Argumenta-se ainda naquele acórdão, a propósito, precisamente, da falta de indicação dos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo de crime de difamação que aquele elemento subjectivo, “…poderá sempre ser integrado no decurso da audiência, através de requerimento do MP ou oficiosamente por via do disposto no art. 358º do CPP, dado que então se estará perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, na medida em que não redundará em imputação de crime diverso – art. 1º nº1 al. f) do CPP – como entre outros foi abordado no Ac TC nº 450/2007 de 18.09 ….”. Não tomamos posição no texto sobre a aplicabilidade do art. 358º do CPP ou, em alternativa do seu art. 359º, em casos como o dos autos, por não ser essencial à decisão da questão que é objecto do recurso.
[6] Também no Ac RL de 26.09.2001 (relator Adelino Salvado, dgsi.pt). se decidiu: “ A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (dolo genérico) é susceptível de ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum. Assim, existindo tal deficiência na acusação, esta não pode ser considerada manifestamente infundada de modo a determinar a sua rejeição ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, alínea a) e 3 alíneas b) e d) do C.P.Penal.”
[7] Vd, sobre a questão, João Conde Correia, Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Studia Ivridica 44, Coimbra Editora 1999, pp. 129-131.Noutro passo do seu estudo refere aquele autor, com interesse para a questão que nos ocupa: - “ Com a aproximação da decisão final aumentam as expectativas comunitárias na realização da justiça e no restabelecimento da paz social e, em consequência, a necessidade de conservar a actividade processual desenvolvida. Para mais os custos suportados no decurso de um longo processo e, sobretudo, a impossibilidade de renovar muitos actos nulos, aconselham a restrição desta possibilidade, excepto quando estiver em causa a preservação dos direitos, liberdades e garantias mais elementares”- - Cfr nota 415 de p. 179.
[8] No sentido da conclusão decidiu-se igualmente no Ac RE de 26.02.2008 (acessível em www.dgsi.pt, relator Fernando Cardoso): «Proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode, depois, o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação do despacho de recebimento.

2 – Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento, o juiz não pode conhecer do mérito da acusação, mas tão-só de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - artigos 338.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1, ambos do CPP.

3 - O art. 338.º n.º1 do CPP apenas permite o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc) ou adjectiva (incompetência do tribunal, desistência de queixa, ilegitimidade, etc.), acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.»

Ainda no mesmo sentido, pode ver-se a decisão sumária proferida no processo nº.1503/03.0TACBR.E1 (relator Carlos Berguete) com apelo, sobretudo, ao conceito e efeitos do caso julgado formal, onde, para além de se entender que constitui um erro considerar que a apreciação do fundado da acusação se caracteriza como questão prévia, se entendeu que: “…se foi proferido despacho, segundo o qual a acusação foi recebida e, por isso, designada data para audiência, não sendo admissível recurso do mesmo (art.313º, nº.4, do CPP), fundamento inexistia para que a Exma. Juiz viesse depois alterar decisão relativamente à qual se formara caso julgado, sob pena, de preterição da certeza, da segurança, da estabilidade e da confiança inerentes ao exercício do poder jurisdicional, constitucionalmente reconhecidas.”
[9] No mesmo sentido: acórdão da Relação do Porto de 31-1-2001, proferido no processo 0140771 e acessível em www.dgsi.pt