Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
824/10.0TAABF-A.E1
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
PROCESSO PENAL
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO
Decisão: PREJUDICADO O CONHECIMENTO
Sumário: Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, que alterou o art. 79.º, n.º2, al. d) do DL 298/92, de 31 de Dezembro, deixou de se justificar a intervenção do Tribunal da Relação para efeitos de quebra/levantamento do segredo bancário, uma vez que os Bancos ficaram desobrigados do dever do segredo em relação aos elementos que lhe forem solicitados pelas autoridades judiciárias, no âmbito de um qualquer processo penal, seja qual for o crime que se investigue.
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. Nos autos de inquérito, com o NUIPC acima referido, a correr seus termos pela Secção de Processos dos Serviços do Ministério Público de Albufeira, em que é denunciante SR encontram-se em investigação factos susceptíveis de, em abstracto, integrarem a prática de um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º do Código Penal, de que foi vítima a denunciante.

O Ministério Público, com vista ao prosseguimento das investigações, solicitou ao Banco... informação respeitante à identificação completa do titular da conta com o NIB ----, tendo aquele Banco, por ofício de 11 de Março de 2011, declinado a satisfação da informação até à remessa por escrito do levantamento do sigilo bancário respeitante ao processo.

De novo o Ministério Público solicitou à referida instituição bancária a remessa da referida informação, nos termos do art. 79.º do DL 298/92, na redacção dada pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, vindo a mesma, por ofício de 13-04-2011, a declinar o pedido até que seja assegurado o levantamento do dever de segredo pelo tribunal superior, nos termos do art. 135.º do CPP.

Sob requerimento do Ministério Público, o Senhor Juiz com funções de Instrução veio a solicitar a intervenção deste Tribunal a fim de se decidir da quebra do sigilo bancário para obtenção dos referidos elementos de investigação, por considerar legitima a recusa do Banco... e justificada a quebra, muito embora reconheça que, face à nova redacção dada à al. d) do n.º2 do art. 79.º Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras pela lei n.º36/2010, de 2 de Setembro, “as autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal, podem obter directamente, junto das instituições bancárias, os elementos sujeitos a segredo bancário”, mas considera que tal alteração apenas se aplica aos processos iniciados após a entrada em vigor daquele diploma, ou seja, após 2 de Março de 2011, atento o disposto no art. 5.º, n.º2 do CPP, já que a aplicação imediata da lei nova conduziria a um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido.

Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora Geral Adjunta teve vista dos autos e promoveu o não conhecimento do pedido incidental, nos termos e com os fundamentos seguintes:

“Afigura-se-nos, desde logo, que, sendo a decisão sobre a quebra do segredo da competência do Tribunal da Relação, nos termos do n°3 do art. 135.º do CPP, para onde remete o n.º 2 do art. 182° do mesmo diploma (conforme acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008), não está vedado ao Tribunal superior conhecer da existência de um dos pressupostos de tal decisão, ou seja, a existência do segredo profissional.

Efectivamente, conforme se refere no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 25-01-2011, Proc. n.°206/09.7TBAVZ-A.C1, www.dgsi.pt,"A procedência deste incidente pressupõe, para além do mais, que o acesso à informação pretendida está, de facto, protegida por sigilo, pois só nesse caso é que se coloca a questão de saber se ele deve, ou não, ser levantado, a qual constitui o núcleo do incidente. Na verdade, se não existir sigilo a recusa não só não é legítima, como também não é necessário que, para a remover, se quebre um segredo, o que conduz à conclusão de que, nessas circunstâncias, falta um dos pressupostos do incidente.

Portanto, o tribunal da Relação, quando perante si for suscitado tal incidente, para o decidir não pode deixar de indagar se na situação que lhe é exposta há algum segredo, não estando, por isso, vinculado ao juízo formulado na l.ª instância de que há um sigilo e de que a recusa em informar é legítima por nele radicar. A não ser assim o tribunal da Relação podia ver-se obrigado a ter que levantar um sigilo que, contrariamente ao entendido na l.ª instância, considera não existir, o que seria verdadeiramente absurdo."

O Mmo. Juiz a quo entendeu que, face à nova redacção dada à alínea d) do n.º 2 do art. 79° do R.G.I.C.S.F. pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, já não há sigilo bancário, no âmbito de um processo penal, mas que a nova lei só se aplicava aos processos iniciados após a sua entrada em vigor.

Na verdade, se na vigência da anterior redacção do referido preceito legal, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podiam ser revelados "Nos termos previstos na lei penal e de processo penal", face à alteração introduzida pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, tais factos e elementos podem ser revelados "As autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal". E, conforme resulta do disposto no art. 1°, al. b), do CPP, "considera-se: «Autoridade judiciária» o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência".

Afigura-se-nos, assim, que, tal como considerou o Mmo. Juiz a quo, no âmbito de um processo penal, as autoridades judiciárias, mormente o Ministério Público, podem obter directamente, junto das instituições bancárias, os elementos sujeitos ao sigilo bancário, à semelhança do que já acontecia com a administração tributária, por força do disposto na alínea e) do n.º 2 do art. 79° do R.G.I.C.S.F., cedendo assim o dever de segredo ope legis.

Discordamos, no entanto, com a posição assumida pelo Mmo. Juiz a quo de que a alteração introduzida pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, à alínea d) do n.º 2 do art. 79° do R.G.I.C.S.F. só se aplica aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor, por força do disposto no art. 5°, n.º 2, al. a), do CPP. Na verdade, independentemente de se entrar na questão levantada pelo Mmo. Juiz a quo de que a aplicação da lei nova conduziria a um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, afigura-se-nos que, para efeitos da aplicação da lei processual no tempo, o que é relevante é a data em que o incidente em causa foi suscitado e não a data em que o processo se iniciou.

Efectivamente, só na data em que a instituição bancária se recusa a prestar ao Ministério Público os elementos que lhe foram solicitados, invocando o segredo bancário, é que se suscita a questão da legitimidade da recusa. Assim, a legitimidade de tal recusa deve ser aferida à luz da lei que vigorar em tal data.

Ora, compulsados os autos, constata-se que a recusa do BPN em fornecer ao Ministério Público os elementos solicitados ocorreu a 11 de Março de 2011 (cfr. fls. 34), portanto já na vigência da nova redacção da alínea d) do n.º 2 do art. 79° do R.G.I.C.S.F., operada pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, que entrou em vigor no dia l de Março de 2011 (art. 2° da citada Lei).

Pelo exposto, somos de parecer que, uma vez que os elementos bancários em causa não estavam, à data em que o BPN se recusou a fornecê-los ao Ministério Público, protegidos pelo segredo bancário, não se deve conhecer do presente incidente de quebra de sigilo bancário.”

2. Decidindo:

Dispõe o artigo 78.º n.º1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, (e alterado pelos Decretos-lei nº 246/95, de 14 de Setembro, n.º 232/96, de 5 de Dezembro, nº 222/99, de 22 de Junho, nº 250/2000, de 13 de Outubro, nº 285/2001, de 3 de Novembro, n.º 201/2002, de 26 de Setembro, n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, 252/2003, de 17 de Outubro, 145/2006 de 31 de Julho, 104/2007, de 3 de Abril, 357-A/2007, de 31 de Outubro, 1/2008, de 3 de Janeiro, 126/2008, de 21 de Julho, 211-A/2008, de 3 de Novembro, Lei n.º 28/2009, de 19 de Junho, Decreto-Lei n.º162/2009, de 20 de Julho, pela Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, 52/2010, de 26 de Maio, 71/2010, de 18 de Junho, e pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, "que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços", acrescentando o nº2 do mesmo preceito que "estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias".

A al. d) do n.º2 do art. 79.º do mesmo diploma legal, previa – entre outras excepções ao segredo bancário estabelecidas no mesmo n.º2 – que o segredo bancário a que se encontravam obrigadas as pessoas referidas no art. 78.º daquele mesmo diploma, podia ser revelado “Nos termos previstos na lei penal e de processo penal”. Desta disposição legal e do preceituado nos art. 135.º e 182.º do CPP resultava ser aplicável em processo penal o incidente de quebra de segredo bancário, objecto do presente incidente processual.

Acontece, porém, que no dia 2 do mês de Março do ano em curso entrou em vigor a Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, que alterou o art. 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedade Financeiras (que previa excepções ao dever de segredo bancário) e que veio a alterar a al. d) do n.º2, conferindo às autoridades judiciárias[1], no âmbito de um processo penal, a possibilidade de obtenção directa das instituições bancárias dos elementos sujeitos a segredo bancário.

Quer isto significar que o legislador, no que respeita ao segredo bancário, deu um golpe final no incidente, regulado no CPP, conferindo ao Ministério Público competência para, no âmbito do processo penal (na fase de inquérito) solicitar às instituições bancárias os elementos sujeitos a segredo bancário que considerar necessários à investigação de qualquer processo-crime dispensando-se, por conseguinte, qualquer juízo de ponderação sobre os interesses em causa, à semelhança do que já ocorria em disposições especiais que limitavam o dever de segredo, ao estabelecerem várias restrições à sua protecção.

Entre estas últimas contam-se, por exemplo, o art.13º.-A do DL n.º 454/91, de 28.12, com a redacção do DL n.º 316/97, de 19.11 (regime jurídico do cheque sem provisão), o art. 60.º do DL n.º 15/93, de 22.01 (tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas), os art. 1.º, 2.º e 3.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (criminalidade organizada e económico financeira – terrorismo, tráfico de armas, corrupção passiva e peculato, branqueamento de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores, contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda), na redacção da Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril, e art. 16.º da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho (branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo).

Nelas se estabelece o dever de as instituições bancárias prestarem as informações necessárias para a investigação das respectivas infracções.

Nestes casos, as instituições bancárias tinham o dever de prestar às autoridades de investigação criminal as informações que lhes fossem solicitadas. O segredo bancário cedia, nessas situações, por imposição legal (e independentemente de autorização do titular da conta), ao interesse público de investigação criminal. Não havia, pois, que ponderar em tais casos qual o interesse que devia prevalecer, porque o legislador, à partida, decidiu privilegiar o interesse público da investigação criminal e da descoberta da verdade. O juízo de prevalência foi feito pelo próprio legislador. Aqui a eventual recusa das instituições bancárias em prestar informações às autoridades de investigação era sempre ilegítima, prescindindo a lei da intervenção do Tribunal da Relação e mesmo do juiz de instrução.

A autoridade judiciária detinha competência para ordenar a prestação da informação pretendida à entidade obrigada pelo dever de segredo bancário, sem que esta lhe pudesse opor o dito segredo, não tendo lugar o juízo do tribunal superior sobre a justificação do pedido de escusa.

Quando em 6 de Abril de 2011 foram solicitados ao Banco..., através do ofício de fls.37, os elementos que o Ministério Público reputou necessários para a investigação em curso, tais elementos estavam abrangidos pelo segredo bancário, mas a instituição bancária estava obrigada a fornecê-los, porquanto a informação foi-lhe solicitada para processo penal em curso, por autoridade judicial competente e ao abrigo do disposto no citado preceito, na redacção que já se encontrava em vigor.

Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro, deixou de se justificar a intervenção do Tribunal da Relação, uma vez que os Bancos ficaram desobrigados do dever do segredo bancário em relação aos elementos que lhe forem solicitados pelas autoridades judiciárias, no âmbito de um qualquer processo penal, seja qual for o crime que se investigue, derrogando, assim, tacitamente, disposições de legislação avulsa que, em processo penal, façam depender o acesso a quaisquer informações abrangidas pelo segredo bancário de especiais pressupostos de ordem formal ou material. Trata-se de uma opção do legislador cuja bondade não interessa aqui discutir.

O legislador até já prescindiu de qualquer intervenção judicial ou do Ministério Público quando existam indícios da prática de crimes em matéria tributária (cf. art. 63.º -B da Lei Geral Tributária, na redacção da Lei n.º37/2010, de 2/9, que consagra o poder da administração tributária aceder a todas as informações ou documentos bancários sem dependência do consentimento do titular dos elementos protegidos).

Não cabe, por conseguinte, a este tribunal superior dispensar o Banco... do dever de segredo bancário, com vista ao fornecimento dos elementos que o Ministério Público lhe solicitou, pois ele está dispensado “ope legis”, não sendo mais aplicável ao segredo bancário, no âmbito do processo penal, o regime estabelecido nos art. 135.º e ss do CPP, ou seja, o incidente de quebra de segredo profissional.

Com o devido respeito, não se perfilha a interpretação que é feita pelo senhor juiz de instrução do art. 5.º, n.º2 do CPP. O termo de referência para aferir da sucessão de normas processuais deste tipo é o data em que a informação solicitada foi definitivamente recusada, já em plena vigência da alteração legislativa.

No caso, encontrando-se os autos em fase de inquérito, insere-se na competência do Ministério Público, enquanto autoridade judiciária e titular da direcção do inquérito, solicitar as informações bancárias que reputar necessárias à investigação do crime que lhe foi denunciado, não podendo o BPN recusar-se a prestá-las a pretexto de estarem a coberto de segredo bancário, sob pena de a sua recusa ser considerada ilegítima e de desobedecer a uma ordem dada pela autoridade judiciária e poder incorrer, desse modo, na prática do crime, p. e p. pelo art. 348.º, n.º1, al. b) do CP.

O legislador, ao dar nova redacção à al. d) do n.º2 do citado art. 79.º, quis agilizar procedimentos, reconhecendo que o interesse da investigação criminal e da descoberta da verdade deve prevalecer sobre o direito de reserva da vida privada do titular de uma conta bancária e, por isso, o dever de segredo quanto aos elementos dessa conta decai perante a solicitação da autoridade judiciária, no âmbito de um qualquer processo penal.

Reconhece-se que algumas entidades bancárias têm-se mostrado contumazes em relação ao novo regime instituído e a sustentar uma interpretação manifestamente “contra legem”, defendendo que não se alteraram os procedimentos e regras quanto à derrogação do dever de segredo, ou seja restabelecendo “o status quo ante”.

Tal não deve levar, quem de direito, a desaplicar o novo regime e a recorrer a expedientes que o legislador manifestamente não quis perpetuar.

Para tanto, basta que o Ministério Público reitere o seu pedido ao abrigo da al. d) do n.º2 do art. 79.º do citado RGICSF e use dos meios legais ao seu alcance para que a sua determinação seja cumprida.

3. Em face do exposto, fica, pois, prejudicado o objecto visado por este incidente de quebra de segredo bancário, pelo que se ordena o seu arquivamento.
Não são devidas custas.

Notifique-se.

(Processado por computador e lido e revisto pelo relator)

Évora, 2011-10-25

Fernando Ribeiro Cardoso (relator)
Martinho Cardoso (adjunto)
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[1] - São autoridades judiciárias o juiz, o juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência – cf. al. b) do art. 1.º do CPP.