Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3062/16.5T8STR-E.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O mecanismo legal da exoneração do passivo restante funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores, pelo que não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 3062/16.5T8STR-E.E1 – APELAÇÃO (SANTARÉM)


Acordam os juízes nesta Relação:

Os Insolventes/Apelantes (…) e (…), residentes na Rua Major (…), lote nº (…), em Rio Maior, vêm, nestes autos de insolvência, que lhes foram instaurados e a correrem termos no Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da comarca de Santarém, pelo Requerente Banco (…) Português, SA, com sede na Praça (…), n.º (…), no Porto, interpor recurso da douta sentença que foi proferida em 04 de Outubro de 2017 (agora a fls. 121 a 127), a qual, apesar de lhes ter deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que haviam formulado, lhes fixou no equivalente a dois salários mínimos nacionais por mês, o montante que, dos seus rendimentos, se destinaria à manutenção de uma vida condigna do casal e do seu agregado familiar – com o fundamento aí aduzido de que considerando a composição do agregado familiar dos devedores (composto exclusivamente pelos insolventes), entende-se ser o necessário para satisfação das necessidades do mesmo o montante mensal correspondente a 2 SMN atenta a inexistência de qualquer despesa extraordinária atendível –, intentando a sua revogação e que seja esse valor fixado em um salário mínimo nacional mais 1/3 para cada um dos devedores (€ 742,66 a cada), invocando razões que terminam pela formulação das seguintes Conclusões:

1) Ao decidir, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.os 1 e 2, do CIRE, que durante os cinco anos de período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir, superior ao montante correspondente a um salário da retribuição mínima mensal garantida (R.M.M.G.), valor esse necessário para o sustento minimamente digno de cada devedor, considerando-se cedido ao Fiduciário, o excedente entre este salário mínimo e o valor efectivamente auferido pelos insolventes, o Tribunal interpretou, erroneamente, o preceituado no art.º 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE: o rendimento disponível, nos termos do disposto no artº 239.º, nº 3, CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.
2) Pois a exclusão do rendimento da cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada atendendo às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam aos devedores insolventes e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, a um salário mínimo nacional.
3) Provou-se que os devedores e o seu agregado familiar (de mais duas pessoas) têm, presentemente e de forma previsível, como despesas mensais, as despesas correntes de renda de habitação, água, electricidade e gás, no montante mensal de € 665,80, bem assim que as despesas de alimentação jamais podem ser inferiores a € 400,00, sempre terão despesas de transporte, além dos gastos normais de vestuário e calçado (variáveis), num total claramente de valor superior a € 1.065,80 (sem contabilização de vestuário, calçado e outros) e sem contabilizar todos os outros gastos necessários à vivência humana ou despesa extraordinária e necessária.
4) As despesas que apresentaram são perfeitamente enquadráveis no padrão de vida normal e necessário a uma vida com um mínimo de dignidade, com contenção de custos.
5) Face aos seus rendimentos e às despesas que comprovadamente alegam, e que não se mostram descabidas ou desproporcionais a uma vivência condigna, é manifesto que aos Recorrentes não pode ser imposta uma cessão do rendimento disponível em que apenas seja salvaguardado o valor mensal de um SMN.
6) O valor estabelecido no despacho recorrido como rendimento indisponível é, pois, insuficiente para assegurar uma sobrevivência condigna aos insolventes.
7) O limite mínimo para aferição do montante a excluir do rendimento disponível, em termos de mínimo de sobrevivência, terá de ser encontrado pelo Tribunal face aos singulares contornos de cada caso, sendo, pois, perante a aplicação do critério da dignidade da pessoa humana, e decorrente sustentabilidade e razoabilidade (salvaguarda de um padrão de vida condigna), às circunstâncias do caso concreto, que se poderá determinar, a final, o quantum a reservar para o sustento do devedor e agregado.
8) A exclusão do rendimento da cessão, consignada na subalínea i), deve ser apreciada atendendo às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar, tendo de ficar de fora do rendimento disponível a ceder aos credores a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência e que não equivale, necessária e forçosamente, a um salário mínimo nacional.
9) Na fixação do montante a excluir do rendimento disponível, para razoavelmente garantir o sustento minimamente digno do devedor, deverá atender-se às suas condições e despesas – situação em concreto – ponderando, designadamente, a fase da sua vida e a composição do seu agregado familiar, tudo no quadro da necessária conciliação entre o interesse do devedor, tal como prosseguido no instituto da exoneração do passivo, e o interesse dos credores em verem satisfeitos os seus créditos.
10) Impõe-se que seja excluído do rendimento disponível a ceder ao fiduciário um valor nunca inferior a uma retribuição mínima mensal, acrescida de 1/3, para cada devedor atendendo às despesas que têm de suportar e imprescindíveis à economia doméstica e outros, bem assim, ao facto de que, ainda, terão de garantir por tempo indeterminado o sustento da filha que coabita com os mesmos, pelo que deverá ser excluído da cessão o valor de € 742,66.
11) Pois com o montante de 2 SMN os Recorrentes não poderiam providenciar o pagamento de uma habitação condigna e fazer face às mais elementares despesas do seu agregado: não havendo quaisquer outras despesas, não contabilizando vestuário, calçado, deslocações, despesas de saúde, o valor restante (deduzidas a renda, água, luz e gás) não possibilitaria ou nem proporcionaria uma alimentação meramente digna.
12) Pelas razões aduzidas, deverá concluir-se pela exclusão dos proventos auferidos pelos Recorrentes – após o início do prazo de concessão de exoneração do passivo restante –, do rendimento indisponível de € 742,66, correspondente a um salário mínimo nacional acrescido de 1/3, em razão das despesas invocadas e comprovadas e que não foram tidas em conta pelo tribunal recorrido, apenas devendo ser cedido ao fiduciário, o que exceda esse rendimento.
13) E, em consequência, pedem que se revogue o despacho recorrido e, nessa medida, substituindo-o por outro que, impondo a cessão do rendimento disponível dos Recorrentes, exclua desse montante o valor de € 742,66, para cada um, de forma a permitir-lhe uma vida minimamente digna.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a deliberação recorrida, que deve ser substituída por outra que determine que o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não poderá ser fixado em quantia inferior a um salário mínimo nacional, acrescido de 1/3, por cada insolvente, nos termos do disposto no artigo 239º, nº 3, alínea b, subalínea iii), do CIRE.

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações de recurso.
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Factualidade assente:
[“Assim, considerando a prova documental junta aos autos pelos insolventes e, sobretudo, o teor do relatório do Sr. Administrador da Insolvência que não mereceu qualquer oposição dos mesmos, o Tribunal dá como provados os seguintes factos”]:
a) Em 25 de Novembro de 2016 o “Banco (…) Português, S.A.” requereu a insolvência de (…) e de (…), casados entre si.
b) Os Requeridos desistiram da oposição que deduziram nos autos, tendo assim confessado a sua situação de insolvência.
c) Em 20 de Janeiro de 2017 foi decretada a insolvência do casal, por douta sentença pacificamente transitada em julgado.
d) O insolvente marido encontra-se reformado, auferindo, a título de pensão, a quantia líquida de € 1.274,26 (mil e duzentos e setenta e quatro euros e vinte e seis cêntimos), mensais.
e) A insolvente mulher trabalha por conta da sociedade “(…) Alimentação, Lda.”, tendo a categoria de Encarregada de Salsicharia, auferindo um vencimento base de € 1.155,16, acrescido de diuturnidades no montante de € 70,83 e subsídio de alimentação de € 4,50 diários.
f) O casal ainda tem a viver consigo uma filha de 22 anos que apenas tem trabalho temporário.
g) Têm ainda despesas médicas e medicamentosas que se cifram em valor não inferior a € 100,00 mensais, em virtude dos problemas de cardiologia do insolvente marido.
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Vejamos, então, a questão que demanda a apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem, e que passa por saber se o Tribunal a quo fixou bem o valor equivalente a um salário mínimo nacional, para entregar a cada insolvente para fazer face às suas despesas, e poder manter uma vida digna, ou se tal valor deve ainda ser aumentado para o equivalente a um salário mínimo nacional e 1/3, como é pretendido, rectius se a decisão da 1ª instância foi bem ou mal feita, de acordo ou ao arrepio dos factos e normas legais que a deviam ter informado. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado e supra já transcritas para comodidade de análise.
E, assim, do teor do mesmo, se verifica que os Apelantes querem passar a reter para si, mensalmente, o montante de € 742,66, cada um – correspondentes a um salário mínimo, mais um terço, em 2017 – em vez dos € 557,00 que foram fixados na douta sentença recorrida, para cada um – num valor correspondente a um salário mínimo nacional (agora, já de € 580,00).
[O valor do salário mínimo nacional é, a partir de 01 de Janeiro de 2016, de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), mensais, nos termos fixados no artigo 2º do Decreto-lei n.º 254-A/2015, de 31 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2017, de € 557,00 (quinhentos e cinquenta e sete euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 86-B/2016, de 29 de Dezembro e a partir de 01 de Janeiro de 2018, de € 580,00 (quinhentos e oitenta euros), mensais, nos termos fixados no artigo 2.º do Decreto-lei n.º 156/2017, de 28 de Dezembro.]

Mas passemos ao enquadramento legal da situação apresentada.
Nos termos que vêm previstos no artigo 239.º, n.º 3, alínea b, subalínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante C.I.R.E.), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado já pelo Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também pela Lei 16/2012, de 20 de Abril – “Integram o rendimento disponível [a ser cedido naturalmente para a satisfação dos débitos] todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.

E a intenção do legislador, ao criar este instituto jurídico da exoneração do passivo restante (afinal, tão inovador no nosso sistema), só poderá ter sido a de que, verificado ter o devedor feito um significativo esforço durante um certo tempo para pagar o que deve – e pague mesmo –, permitir que volte a ‘levantar a cabeça’ e possa regressar à actividade económica, também a bem do País, sem o referido ‘passivo restante’ a entorpecer-lhe decisivamente tal recomeço (o que não aproveitaria a ninguém).
Daí que se trate realmente de um perdão, mas de um ‘passivo restante’, do que resta, não de todas as dívidas de quem não se apresenta a fazer esforço algum para as pagar ou atenuar. Doutra maneira, quase que se daria aqui, então, cobertura a uma fraude, pois se não poderá esquecer que este mecanismo legal funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores (e não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas).
Por isso que a lei se rodeou de especiais cautelas na sua aplicação, que o intérprete não pode deixar de conferir nos casos concretos que se lhe coloquem.
E conferi-lo rigorosamente.

Destarte, volvendo ao caso sub judicio, temos que os insolventes aduzem uma série de situações a apoiar a sua pretensão – desde logo, que têm despesas correntes mensais de € 665,80 e gastam € 400,00 em alimentação, entre outras – daí concluindo que os dois salários mínimos que podem reter em face da douta sentença não seriam suficientes para lhes garantir uma vida condigna.
A 1ª instância veio a considerar, para além de despesas tidas por normais, ainda que o casal tem a viver consigo uma filha de 22 anos que tem trabalhos temporários e que têm despesas médicas e medicamentosas que se cifram num valor não inferior a € 100,00 mensais, em virtude dos problemas de cardiologia do insolvente marido.

Nessas circunstâncias, a douta sentença veio a fixar a retenção num valor de € 557,00 mensais (um salário mínimo nacional), para cada um dos membros do casal insolvente (€ 1.114,00, portanto) – agora já € 580,00 (€ 1.160,00, pois).
E fê-lo bem, no enquadramento fáctico que tinha por demonstrado.
Pois que os visados até poderiam ter apresentado e justificado despesas de igual ou superior montante, que não era por isso que se iriam eximir, logo de forma automática, às suas responsabilidades, nada pagando agora aos credores (ou entregando-lhes quantias diminutas, como intentam e, assim, retendo para si o principal dos seus rendimentos).

O ponto fulcral é sempre o mesmo: em tese, terá necessariamente que haver aqui um custo na sua qualidade e teor de vida, e um custo que se veja (ao ponto a que deixaram degradar a sua situação económica e financeira, os agora insolventes alguma coisa de substancial terão que pagar aos credores, baixando, correlativamente, o seu teor/qualidade de vida).

E foi assim enquadrada, que decidiu a 1ª instância, acabando por fixar um valor global de retenção (agora de € 580,00 x 2 = € 1.160,00) que tem em conta todas as circunstâncias envolventes – como o faz, agora, esta 2ª instância.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que assim veio a decidir, e improcedendo o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.

Custas pela massa insolvente (artigo 304º do CIRE).

Registe e notifique.

Évora, 26 de Abril de 2018

Mário João Canelas Brás

Jaime de Castro Pestana

Paulo de Brito Amaral