Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1080/13.4TBALR
Relator: FELISBERTO PROENÇA DA COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
RECLAMAÇÃO
PRODUTO DEFEITUOSO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Comete uma contra-ordenação, p. e p. pelos arts. 3.º, n.º 1, al.ª b) e 4 e 9.º, n.º 1, al.ª a) e 3, do Dec. Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, alterado pelo Dec. Lei n.º 371/2007, de 6 de Novembro, a Câmara Municipal que recusa o acesso ao livro de reclamações a utente com o fundamento de que o defeito num produto (“sandes de ovo”) de uma máquina de produtos alimentares (máquina de vending) que se encontraria estragado, pertencia a terceiro.
Não é inconstitucional a norma extraída do n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 156/2005, quando interpretada no sentido de que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente.
Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 1080/13.4TBALR.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Em Processo de Contra-Ordenação, por Decisão proferida em 30 de Outubro de 2013, pela Autoridade de Segurança Alimentar (ASAE), foi à arguida Câmara Municipal de A, aplicada a Coima de 7500,00€, pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelos arts. 3.º, n.º 1, al.ª b) e 4 e 9.º, n.º 1, al.ª a) e 3, do Dec. Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, alterado pelo Dec. Lei n.º 371/2007, de 6 de Novembro.

Discordando dessa Decisão Administrativa, veio a arguida impugná-la Judicialmente.

Por Decisão da M.ma. Juiz do Tribunal Judicial de AL, datada de 24 de Fevereiro de 2014, veio negar-se provimento ao recurso e, em consequência, a manter a decisão recorrida nos seus exactos termos.

Inconformada com o assim decidido, traz a arguida Câmara Municipal de A, o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
A) Foi a arguida Câmara Municipal de A condenada por douta sentença pela prática da infracção consistente na recusa em facultar o Livro de Reclamações, agravada pela ocorrência da circunstância de ter sida requerida, pelo “utente”, a presença da autoridade policial para remover essa recusa, infracção prevista no artº 3º, nº1, al. b) e nº4 do Decreto-Lei nº156/2005 de 15-09, na redacção do DL nº371/2007 de 06-11, punível pelo artº 9º, nº1, al. a) e nº3 do mesmo diploma, no pagamento de uma coima no montante de 7.500,00€, acrescido de custas;
B) Contudo, não pode a arguida concordar nem se conformar com tal decisão que confirmou a decisão administrativa condenatória;
C) Da sentença se retira que a reclamação do utente prendia-se com um defeito num produto (“sandes de ovo”) de uma máquina de produtos alimentares (máquina de vending) que se encontraria estragado, pretendendo o reclamante “reaver o dinheiro que havia colocado na máquina”;
D) Mais se retira que o funcionário da arguida informou que o dinheiro não lhe podia ser devolvido e que a máquina em questão não era responsabilidade das piscinas, concluindo, não obstante, que a arguida tinha o dever de lhe facultar o livro de reclamações assim que lhe fosse solicitado”;
E) A referida máquina de venda de produtos alimentares pertence a um terceiro, o Sr. VM, que no mesmo momento se deslocou às piscinas e devolveu o dinheiro da sandes;
F) O diploma supostamente violado criou a obrigatoriedade de existência do Livro de Reclamações com vista a reforçar os procedimentos de defesa dos direitos dos consumidores e utentes no âmbito do fornecimento de bens e prestação de serviços e tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos (artº 1º e prólogo do DL nº156/2005);
G) A obrigação de “Facultar imediata e gratuitamente ao utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado” recai sobre o fornecedor do bem alimentar, pois foi sobre a falta de condições do mesmo que recaiu a Reclamação, e o fornecedor desse bem não é as Piscinas nem a autarquia mas sim o proprietário de referida máquina de vendas automáticas, que dispõe de livro de reclamações próprio;
H) Se atendermos ao objecto e fim da obrigatoriedade de existência de livro de reclamações (reforçar os procedimentos de defesa dos direitos dos consumidores e utentes e tornar mais célere a resolução de conflitos), vemos que, no caso concreto, esses objectivos só seriam prosseguidos se as Piscinas tivessem a responsabilidade pelo fornecimento de um bem estragado e a legitimidade para dar resposta à reclamação e dar satisfação ao direito “ferido” do utente, ou através da reclamação no livro de reclamações do proprietário da máquina de vending;
I) O disposto no artº 3º, nº1, al. b) do DL nº156/2005, só pode ser interpretado no sentido de fazer impender aquela obrigação sobre o fornecedor de bens ou prestador de serviços que contratou com o utente e, no âmbito desse contrato, o lesou de alguma forma;
J) Não impendendo o dever de facultar imediata e gratuitamente o livro de reclamações para o utente reclamar sobre a prestação de um serviço ou sobre o fornecimento de um bem que não é fornecido ou prestado pelo detentor do livro de reclamações, como nos parece óbvio que não deve nem pode impender, inexiste igualmente violação da norma em causa e a respectiva contra-ordenação;
K) Razão pela qual andou mal a douta sentença recorrida, que desconsiderou por completo este circunstancialismo, cometendo erro na aplicação do direito, devendo o recurso apresentado ter sido considerado procedente e absolvida a arguida, não sendo aplicada qualquer coima;
L) Por outro lado, a douta sentença, na parte em que pretensamente daria resposta à inconstitucionalidade suscitada pela recorrente no recurso judicial, dispende argumentação em defesa da constitucionalidade do diploma em geral, mas nunca tocando, sequer ao de leve na questão efectivamente suscitada e que se manifesta importante até para a aplicação futura de direito;
M) Com efeito, o nº3 do artº 9º do DL nº156/2005 parece-nos ultrapassar os limites da constitucionalidade por violação dos art.ºs 1º, 3º, 13º, 18º e 27º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, bem como do princípio ínsito ao do Estado de Direito de nula poena sine culpa, uma vez que faz decorrer o agravamento da moldura contra-ordenacional de um facto que não pode ser imputável, nem depende de qualquer acção ou omissão, ergo da culpa, do agente arguido, que é a decisão exclusiva do utente de chamar ou não a intervir a autoridade policial;
N) Para o artº 3º da CRP, que define a disciplina do Estado de Direito, é referência imprescindível o elemento da culpa ou do dolo como definidor de qualquer ilicitude penal ou contra-ordenacional, elemento sem o qual não pode sequer punir-se um arguido em função da sua culpa, como o exige a lei penal positivada e o exigem os princípios gerais de Direito (nula poena sine culpa);
O) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa;
P) Que o princípio da culpa tem assento constitucional, decorrente da dignidade da pessoa humana (artº 1º) e do direito à liberdade (nº 1 artº 27º), tem sido reconhecido na doutrina (inter alia Maria Fernanda Palma, «Constituição e Direito Penal – As questões inevitáveis», in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, ou Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993) e na jurisprudência constitucional (v.g., por todos, o acórdão do Tribunal Constitucional nº 202/2000, DR, II S., de 11 de Outubro);
Q) É exigível, assim, uma culpa concreta como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, bem como a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa;
R) No caso vertente, verifica-se que é imputado ao arguido a prática da infracção correspondente à violação da obrigação ínsita no artº 3º, nº1, alínea b), sancionada pelo artº 9º, nº1, alínea a), mas agravada pelo nº3 do mesmo artº 9º, todos do citado DL 156/2005, que dispõe: “Em caso de violação do disposto na alínea b) do nº1 do artigo 3º, acrescida da ocorrência da situação prevista no nº4 do mesmo artigo, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista”;
S) Apesar da ASAE ter entendido punir a arguida a título de negligência - o que levou: 1) à redução do tecto da moldura contra-ordenacional (de 30.000,00€) para metade (15.000,00€); 2) à fixação da coima no mínimo – foi determinada uma coima no valor de 7.500,00€ (metade do montante máximo), em obediência, supõe-se, ao citado nº3 do artº 9º;
T) Porém, essa norma faz depender o agravamento da coima (no caso presente de 3.500,00€, base da moldura contra-ordenacional nos termos do artº 9º, nº1, alínea a) para pessoas colectivas, para 7.500,00€, metade do máximo da moldura em casos de negligência) de um facto ao qual a arguida, como qualquer outro agente, é perfeitamente alheia: a decisão do utente de, face à recusa de facultar o livro de reclamações, requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o sector em causa;
U) Assim, de uma decisão que cabe apenas e em exclusivo ao utente, e para a qual em nada concorre o putativo agente, ou seja, que não depende em absoluto da sua vontade, acção, ou omissão, ou seja, que não é possível reconduzir à sua culpa, decorre um agravamento substancial da sanção;
V) Tal norma, para além de se apresentar desproporcional e violar o princípio da culpa com assento constitucional, por não reconduzir a fundamentação do quantum da coima à medida da culpa, viola ainda o princípio da igualdade, já que um outro agente, que cometa a mesmíssima infracção mas seguida à qual o utente decida não exigir a presença da autoridade policial, tem a possibilidade de ver a sua sanção ser reduzida face a um agente que cometa a infracção em relação a um utente que exija essa presença;
W) Não deve deixar, em nossa opinião, de ser considerada ilegal e inconstitucional a referida norma, quando interpretada no sentido de que a “ocorrência da situação prevista no nº4 do mesmo artigo, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista” independentemente do agente concorrer com culpa de forma determinante para esse evento;
X) Considerando a dita norma do nº3 do artº 9º do Decreto-Lei nº156/2005 de 15-09, na redacção do DL nº371/2007 de 06-11, inconstitucional, deve a mesma não ser aplicada ao caso concreto, alterando-se, no caso de se considerar, o que se admite por hipótese meramente académica e sem conceder, existente a infracção em causa, a condenação em causa, ajustando-se o montante da coima no seu mínimo legal, 1.750,00€ (3.500,00€ reduzido para metade (artº 18º, nº3 do RGCO);
Y) Assim, deverá o arguido ser absolvido, ou, quando assim não se entenda, ser-lhe aplicada uma simples admoestação, ou quando ainda assim não se entenda, ser o montante da coima reduzido para 1.750,00€.
Z) Esta questão foi ignorada pelo douto Tribunal a quo e não foi alvo de pronúncia na douta Sentença recorrida o que configura uma nulidade da Sentença uma vez que se deveria ter pronunciado obrigatoriamente sobre a mesma (artº 379º, nº1, al. c) do CPP;
AA) A douta Sentença a quo limitou-se a afirmar entender que as normas não são inconstitucionais, sem fundamentar minimamente o seu entendimento, o que viola o artº 374º, nº2 e constitui uma nulidade da Sentença nos termos do artº 379º, nº1, al. a) ambos do CPP.

Respondeu ao recurso a Magistrada do Ministério Público, entendendo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Nesta Instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados:

I. No dia 27 de Agosto de 2009, pelas 14 horas e 25 minutos, nas piscinas municipais, sitas em A, exploradas pela arguida, CRBCretirou uma sandes de ovo de uma máquina de produtos alimentares que ali se encontrava.
II. A sandes referida em 1) estava estragada.
III. CRBC dirigiu-se ao funcionário das piscinas – JMAAM - para informar do vertido em II) e reaver o dinheiro que havia colocado na máquina.
IV. O funcionário da Recorrente informou que o dinheiro não podia ser devolvido e que a máquina em questão não era responsabilidade das piscinas.
V. CRBC solicitou o livro de reclamações, o qual lhe foi recusado.
VI. CRBC solicitou a presença de autoridade policial.
VII. Na presença da patrulha da GNR, CRBC teve acesso ao livro de reclamações, tendo efectuado a reclamação pretendida.
VIII. A máquina referida em 1) pertence a VM, com o número de contribuinte 215.717.0687, com sede em Rua João SF2-3 dtº, 2090-091 A.
IX. O proprietário referido em 8) deslocou-se às instalações das piscinas de A e devolveu o dinheiro a CRBC.
X. A arguida tinha o dever de facultar o livro de reclamações assim que lhe fora solicitado.
XI. Não obstante, a arguida, ao não facultar o livro de reclamações, não agiu com o cuidado de que era capaz e estava obrigada, no exercício da actividade por si prosseguida uma vez que devia e podia saber, que não podia negar, como fez, a entrega do livro de reclamações ao utente.

Factos não provados:
Não existem.

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
O tribunal fundou a convicção com base na apreciação crítica da prova documental junta aos autos, designadamente o auto de contra-ordenação de fls. 3, o qual faz fé em juízo e cuja autenticidade e veracidade de conteúdo não foram postas em causa, conjugado com a circunstância de a Recorrente/arguida não impugnar a matéria de facto constante da decisão condenatória, aceitando a mesma como verdadeira apenas lhe conferindo diferente sentido jurídico.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
Analisando as conclusões formuladas pela aqui recorrente, vemos que várias são as questões por si colocadas a decisão deste Tribunal de recurso.
Desde logo, importa definir qual o âmbito de conhecimento deste Tribunal, devendo, para o efeito, chamar a terreiro o art.º 75.º, do R.G.C.O.
Normativo onde se diz que se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª Instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
O que quer significar que o Tribunal da Relação funciona como Tribunal de revista, só apreciando questões de direito.
Entrando no âmago do recurso trazido pela recorrente Câmara Municipal de A.
Como dos autos decorre a aqui impetrante foi condenada pela prática de uma infracção prevista no artº 3º, nº1, al. b) e nº4 do Decreto-Lei nº156/2005 de 15-09, na redacção do DL nº371/2007 de 06-11, e punível pelo artº 9º, nº1, al. a) e nº3 do mesmo diploma.
Diz-se no art.º 3.º, n.º 1, al.ª b), do Dec. Lei n.º 156/2005 de 15-09, que o fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
b) Facultar imediata e gratuitamente ao utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado.
E no n.º 4 que quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o sector em causa.
Dizendo-se no art.º 9.º, n.º 1, al.ª a) que constituem contra-ordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas:
a) De (euro) 250 a (euro) 3500 e de (euro) 3500 a (euro) 30 000, consoante o infractor seja pessoa singular ou pessoa colectiva, a violação do disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 3.º, nos n.os 1, 2 e 4 do artigo 5.º e no artigo 8.º.
E no seu n.º 3 que em caso de violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, acrescida da ocorrência da situação prevista no n.º 4 do mesmo artigo, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista.
Entende, porém, a aqui impetrante que o disposto no artº 3º, nº 1, al. b), do Dec. Lei nº 156/2005, só pode ser interpretado no sentido de fazer impender aquela obrigação sobre o fornecedor de bens ou prestador de serviços que contratou com o utente e, no âmbito desse contrato, o lesou de alguma forma; sua conclusão I).
E não impendendo o dever de facultar imediata e gratuitamente o livro de reclamações para o utente reclamar sobre a prestação de um serviço ou sobre o fornecimento de um bem que não é fornecido ou prestado pelo detentor do livro de reclamações, [no caso a aqui recorrente], como nos parece óbvio que não deve nem pode impender, inexiste igualmente violação da norma em causa e a respectiva contra-ordenação; sua conclusão J).
Propugnando, desta feita, pela sua absolvição.
Porém, sem razão tal afirma, entre o mais, e como bem o destaca o Senhor Procurador Geral-Adjunto, por parecer confundir a obrigação de apresentar o livro de reclamações a utente que não ficou satisfeito com a venda de bem nas suas instalações com o merecimento, ou não, da aludida reclamação.
Depois, importa ter em linha de conta a razão de ser da existência e obrigatoriedade do livro de reclamações.
Como consabido, o Dec. Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, veio estabelecer a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral.
E como decorre do preâmbulo do citado Dec. Lei, o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu.
Sendo que a criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores.
E a justificação da medida, inicialmente vocacionada para o sector do turismo e para os estabelecimentos hoteleiros, de restauração e bebidas em particular, prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.
Especificando-se os estabelecimentos onde é obrigatória a existência do livro de reclamações.
A 6 de Novembro de 2007 veio ser publicado o Dec. Lei n.º 371/2007, que procedeu à primeira alteração ao Dec. Lei n.º 156/2005, alterando o anexo i do referido decreto-lei, pela introdução de novos estabelecimentos, como veio criar uma obrigação geral, para todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que não se encontrassem identificados naquele anexo, de possuírem e disponibilizarem o livro de reclamações. Sendo pressupostos desta obrigação a existência de um estabelecimento físico, fixo ou permanente, o contacto directo com o público e o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço.
Tudo, para se concluir, sem necessidade de outras delongas ou considerandos, pela sem razão da pretensão aqui formulada pela recorrente.
Para além de se entender que o princípio base que sustenta a exigência do livro de reclamações, praticamente em todas as entidades públicas e privadas que prestam serviços ao consumidor, vai muito além da mera possibilidade de em concreto ser dado ao utente/cliente a possibilidade de ver o seu caso resolvido. De facto, está subjacente em toda a evolução legislativa a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral, nomeadamente na possibilidade de fiscalização efectiva do modo como se prestam os serviços, como se deu nota no Acórdão da Relação de Coimbra, de 10 de Março de 2010, no Processo n.º 918/09.5TBCR.C1.

Uma outra questão prende-se com a nulidade da Decisão revidenda, por a Sentença se limitar a afirmar [entender] que as normas não são inconstitucionais, sem fundamentar minimamente o seu entendimento, o que viola o art.º 374.º, n,º 2 e constitui uma nulidade da Sentença nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP; sua conclusão AA).
Como decorre do disposto no art.º 379.º, n.º 1, alª c), do Cód. Proc. Pen., é nula a sentença:
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Não deixou a Sentença revidenda, ao invés do afirmado pela aqui impetrante, de tratar da questão da inconstitucionalidade invocada.
Basta ler, com alguma atenção, a Sentença revidenda para se concluir pela sem razão do aqui alegado pela recorrente. De facto nessa peça processual, sob o ponto D.2.2.) Da inconstitucionalidade invocada veio o Tribunal recorrido discorrer sobre tal problemática, tendo concluído no sentido de a decisão revidenda não enferma [r] de qualquer inconstitucionalidade ao nivel dos princípios constitucionais que vêm invocados.

Por fim, a questão da constitucionalidade, ou não, da norma do n.º 3, do art.º 9.º, do Dec. Lei n.º 156/2005, de 15-09, na redacção do Dec. Lei nº371/2007, de 06-11.
Na óptica da aqui recorrente, o predito inciso normativo viola, entre o mais, o princípio ínsito ao do Estado de Direito de nula poena sine culpa, uma vez que faz decorrer o agravamento da moldura contra-ordenacional de um facto que não pode ser imputável, nem depende de qualquer acção ou omissão, ergo da culpa, do agente arguido, que é a decisão exclusiva do utente de chamar ou não a intervir a autoridade policial.
Como se vem entendendo, o princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana (art. 1º) e do direito à liberdade, cfr. arts. 1.º e 27.º, da C.R.P.
Significando tal princípio que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo.
Implicando tal principio que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa[1].
Importando mencionar que tal princípio - com a emanação jurídico-constitucional mencionada – não vale, como parâmetro, no domínio das contra-ordenações.
Sendo certo, porém, que dentro dos limites mínimo e máximo da moldura contra-ordenacional, o julgador dispõe de suficiente liberdade de apreciação para ponderar o grau de culpa com que o agente actuou. Actuando, desta feita, a culpa não só como pressuposto de aplicação da contra-ordenação, mas ainda como sua medida.
Prevendo-se no art.º 9.º n.º 1, al.ª a), um limite mínimo e máximo das coimas a aplicar e no n.º 2, do mesmo preceito a punição a título de negligência, com redução para metade do valor das coimas mencionadas no n.º 1.
E que apesar da agravação do montante da coima previsto no n.º 3, do citado preceito legal, sempre se permite ao julgador dosear a medida da coima, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.
Donde se não lobrigue a invocada inconstitucionalidade.
Como se não descortina como se mostre violado o princípio da igualdade, porquanto ao prever a Lei a aplicabilidade de penas variáveis, abre-se a possibilidade de o julgador vir aplicar e graduar a pena tendo em conta as circunstâncias do caso - grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias -, de modo a vir punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes. E, dessa via, proceder a tutela de forma diferenciada, tratando de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual.
Por fim, o Tribunal Constitucional tem afirmado a Constitucionalidade do inciso normativo em presença, por não violação do princípio da proporcionalidade, art.º 18.º, n.º 2, da C.R.P.
Entre outros, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 67/2011, de 2 de Fevereiro de 2011, no Processo n.º 275/10, 3ª Secção.
Onde se veio não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), 9º, n.º 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista, – cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente.
Argumentando-se, como segue:
Desde logo, verifica-se que o n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 156/2005 determina que a agravação do montante mínimo da coima aplicável depende da “ocorrência da situação prevista no n.º 4 do mesmo artigo [3º] ”. O referido preceito legal (supra transcrito) determina, pois, que a falta de apresentação do livro de reclamações permite ao utente requerer a presença de autoridade policial com vista a colocar termo à referida recusa de apresentação.
Note-se que o preceito é susceptível de se aplicar a duas situações distintas: i) por um lado, a pessoa colectiva pode persistir na recusa de facultar o livro de reclamações ao consumidor, mesmo que interpelado pela autoridade policial; ii) por outro lado, face à intervenção da autoridade policial, a pessoa colectiva pode conformar-se com o cumprimento da lei – como sucedeu no caso em concreto ora em apreço. Não obstante a diversidade de situações poder ser ponderada pelo tribunal competente para conhecer da impugnação da sanção contra-ordenacional, quer para efeitos de determinação da aplicabilidade daquela norma agravadora às situações em que a pessoa colectiva adequa a sua conduta ao Direito, cumprindo o dever legal de apresentação do livro de reclamações, quer para efeitos de determinação da medida concreta da pena, em função da culpa manifestada, a verdade é que, quer num caso quer noutro, o bem jurídico violado é exactamente o mesmo, ou seja, a protecção dos consumidores constitucionalmente consagrada.
Não cabendo ao Tribunal Constitucional – mas antes ao tribunal recorrido – definir qual a melhor interpretação daquele preceito legal, tendo em conta todos os bens jurídicos e valores constitucionalmente protegidos em confronto, compete-lhe, no entanto, avaliar se a interpretação normativa desaplicada nos autos se afigura (ou não) como contrária ao princípio da proporcionalidade (artigo 2º da CRP).
Na linha da jurisprudência consolidada neste Tribunal, a propósito da fixação dos montantes das coimas a aplicar (a título de exemplo, ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/2000, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) 00000000000000000, o Tribunal Constitucional deve coibir-se de interferir directamente nesse espaço de livre conformação legislativa, apenas lhe cabendo – sempre que necessário – acautelar que tais opções legislativas não ferem, de modo flagrante e manifesto, o princípio da proporcionalidade. A este propósito, deve sempre ter-se presente que “Só um método interpretativo rigoroso e controlado limita a invasão pelos tribunais constitucionais da esfera legislativa e impede a actividade judicativa de se tornar um «contrapoder legislativo» ” (Fernanda Palma, O legislador negativo e o intérprete da Constituição, in «O Direito», 140º (2008), III, 523).
Ora, a agravação do montante mínimo da coima a suportar pelas pessoas colectivas, em 11.500 €, não pode considerar-se manifestamente desproporcionada, visto que tem por finalidade promover o cumprimento voluntário de um dever legalmente imposto que, por sua vez, visa acautelar os direitos dos consumidores constitucionalmente consagrados (artigo 60º, nº 1, da CRP. Conforme já supra notado, tal cumprimento voluntário apenas é promovido mediante a aplicação de sanções “efectivas” e “dissuasoras”.»
Não se desconhece que o Tribunal Constitucional veio entender diferentemente do acabado de expor, no Aresto com o n.º 313/2013, datado de 29 de Maio de 2013, no Processo n.º 780/12, 2ª Secção.
Porém, por Acórdão do Plenário daquele Tribunal, com o n.º 97/2014, datado de 6 de Fevereiro de 2014, no Processo n.º 780/12, veio-se afirmar a não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 156/2005, quando interpretada no sentido de que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente.

Sendo nestes vectores que a aqui recorrente funda a sua pretensão recursiva, importa concluir pela sua não procedência, confirmando-se a Sentença revidenda.

Custas pela recorrente, fixando-se em 4 Ucs, a taxa de justiça devida.

(texto elaborado e revisto pelo relator).


Évora, 7 de Abril de 2015
(José Proença da Costa)
(Gilberto Cunha)


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[1] Ver, José de Sousa e Brito, «A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., págs. 199-200.