Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1021/17.0T8OLH.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não se pretende que o instituto da exoneração do passivo restante se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 1021/17.0T8OLH.E1 – APELAÇÃO (OLHÃO)


Acordam os juízes nesta Relação:

A Insolvente/Apelante (…), residente na Rua Prof. (…), n.º 18-r/c., Esq., em Faro, vem, nestes autos de insolvência, por si instaurados e a correrem termos no Tribunal Judicial de Olhão, interpor recurso da douta sentença que foi proferida em 6 de Dezembro de 2017 (agora a fls. 171 a 181), a qual, apesar de lhe ter deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que havia formulado, lhe fixou no equivalente a um salário mínimo nacional, por mês, o montante que, do seu rendimento, se destinaria à manutenção de uma vida condigna – com o fundamento aduzido de que “No caso sub judice, a insolvente aufere o rendimento mensal de € 589,00, acrescido de trabalho nocturno, vivendo em casa da mãe, contribuindo para as despesas domésticas com € 200,00 por mês e não são invocadas especiais necessidades de consumo, pelo que serão apenas atendíveis as exigências em montante indispensável a uma vida condigna, pelo que o rendimento disponível da insolvente, que será aquele que ultrapassar o valor igual a um salário mínimo nacional, fica cedido ao Sr. Administrador da Insolvência destes autos (na qualidade de fiduciário)” – intentando a sua revogação e que seja esse valor fixado em, pelo menos, uma vez e meia o salário mínimo nacional, invocando as suas razões que terminam pela formulação das seguintes Conclusões:

1ª – Vem o presente recurso da douta decisão judicial que decidiu, entre outros que: “b) declarar que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente será aquele que ultrapassar o valor que venha a auferir e que exceda o valor de um salário mínimo nacional (com as sucessivas actualizações), a entregar ao fiduciário, nomeando para o cargo o Sr. Administrador de Insolvência”.
2ª – Não se conforma a Recorrente com tal decisão no que a esta parte respeita.
3ª – Não sendo bem explícito o despacho nessa parte, subentende a recorrente que ficou decidido no mesmo que o seu rendimento disponível durante estes cinco anos será o correspondente ao salário mínimo nacional (com as sucessivas actualizações).
4ª – A Recorrente alegou e provou que o seu rendimento para poder sobrevier terá que ser superior a tal montante.
5ª – É consensual na jurisprudência que uma pessoa com uma vida dita normal, com as despesas inerentes ao seu quotidiano, como sendo habitação, alimentação, vestuário, deslocações para o emprego, medicação e cuidados de saúde, necessita de um rendimento disponível superior ao Salário Mínimo Nacional.
6ª – Há que se ter em conta os problemas de saúde e as despesas comprovadas nos autos e há que se ter em conta que o custo de vida está elevado para os padrões de um Salário Mínimo Nacional.
7ª – As decisões têm sido maioritariamente favoráveis e consentâneas (vide, p. ex., a decisão proferida nos autos que correram seus termos sob o n.º 871/17.1T8OLH, no Juiz 2 do mesmo Tribunal de Comércio ora recorrido, onde se aferiu e decidiu que, tendo em conta os padrões de custo de vida, deverá ser fixado como rendimento disponível o valor correspondente a 1,5 (uma vez e meia) o SMN e (note-se) acrescido do correspondente a um eventual pagamento de subsidio de ferias e de Natal), a quantia necessária para o sustento minimamente digno do devedor, que assim ficará excluída da cessão de rendimentos, acautelando-se as despesas fixas mensais, mas também despesas anormais.
8ª – Entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter decidido desta forma, deixando, pelo menos disponível para a Recorrente o valor correspondente a uma vez e meia o Salário Mínimo Nacional.
Nestes termos, deve ser a douta decisão revogada, nesta parte, e substituída por outra que atribua, como rendimento disponível à insolvente devedora, o valor de uma vez e meia o Salário Mínimo Nacional, com as devidas actualizações.

Não foram apresentadas contra-alegações.
*

Factualidade assente:

Os factos que a douta sentença considerou – um pouco escassos, é certo, mas, ainda assim, suficientes para uma decisão criteriosa – são os referidos no relatório supra, e que ficaram firmados na formulação além utilizada, de que “… a insolvente aufere o rendimento mensal de € 589,00 acrescido de trabalho nocturno, vivendo em casa da mãe, contribuindo para as despesas domésticas com € 200,00 por mês e não são invocadas especiais necessidades de consumo, pelo que serão apenas atendíveis as exigências em montante indispensável a uma vida condigna, …”.

Ainda que:

A insolvente se apresentou à insolvência a 25 de Agosto de 2017 (vide a data aposta a fls. 26 dos autos).
Nasceu a 28 de Agosto de 1973 (vide a respectiva certidão de nascimento de fls. 17 a 18 dos autos).
Casou em 10 de Agosto de 2013 (idem).
Encontra-se separada do marido desde finais de 2016 (vide o Relatório do Sr. Administrador Judicial, a fls. 146 verso dos autos).
Reside com a mãe desde essa data (idem).
Não tem filhos (idem).
Relativo ao mês de Outubro de 2016, a Requerente auferiu um montante de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), de vencimento líquido, como Ajudante de Acção Directa de 2ª, no Centro Social Paroquial de (…), em Tavira (vide o recibo de vencimento de fls. 19 dos autos).
Está aí desde 2013 (vide Relatório a fls. 147).
No ano de 2014 declarou o rendimento próprio de € 9.923,32 (nove mil e novecentos e vinte e três euros, trinta e dois cêntimos) – (idem, a fls. 147 verso).
No ano de 2015 declarou o rendimento próprio de € 9.883,47 (nove mil e oitocentos e oitenta e três euros e quarenta e sete cêntimos) – (idem).
No ano de 2016 declarou um rendimento próprio de € 9.478,48 (nove mil e quatrocentos e setenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) – (idem).
[Já a Segurança Social considerou, para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário, um valor de € 7.708,00 (sete mil, setecentos e oito euros), “como rendimento líquido do agregado familiar do requerente”, em 31 de Maio de 2017 (vide o documento respectivo a fls. 23 a 25 dos autos).]
A Requerente indicou passivo no valor global aproximado de € 36.508,17 (trinta seis mil, quinhentos e oito euros e dezassete cêntimos), conforme ao teor da sua douta petição inicial de insolvência, a fls. 4 dos autos.
*

Vejamos, então, as questões que demandam a apreciação e decisão deste Tribunal ad quem, que passam por saber se o Tribunal a quo fixou bem o valor equivalente a um salário mínimo nacional, para ser entregue à insolvente para fazer face às suas despesas, e poder manter uma vida digna, ou se tal valor deve ainda ser aumentado para o equivalente a um salário mínimo nacional e meio, como é pretendido no incidente de exoneração do passivo, rectius se a decisão da 1ª instância foi bem ou mal feita, de acordo ou ao arrepio dos factos e das normas legais que a deveriam ter informado. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado e supra já transcritas para comodidade de análise.
E, assim, do teor do mesmo, a Apelante quer passar a reter mensalmente o montante de € 835,50 – valor correspondente a um salário mínimo e meio em 2017 –, em vez dos € 557,00 que foram fixados na douta decisão recorrida – no valor correspondente a um salário mínimo nacional (agora, já de € 580,00).
Mas nem deixando de cair-se aqui, em qualquer dos casos, numa situação praticamente teórica, pois que a insolvente auferirá pouco mais de € 500,00.

[O valor do salário mínimo nacional é, a partir de 01 de Janeiro de 2016, de € 530,00 (quinhentos e trinta euros), mensais, nos termos fixados no artigo 2º do Decreto-lei n.º 254-A/2015, de 31 de Dezembro; a partir de 01 de Janeiro de 2017, de € 557,00 (quinhentos e cinquenta e sete euros), mensais, nos termos do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 86-B/2016, de 29 de Dezembro e a partir de 01 de Janeiro de 2018, de € 580,00 (quinhentos e oitenta euros), mensais, nos termos fixados no artigo 2.º do Decreto-lei n.º 156/2017, de 28 de Dezembro.]

Mas passemos ao enquadramento legal da situação apresentada.
Nos termos que vêm previstos no artigo 239.º, n.º 3, alínea b, subalínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante C.I.R.E.), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado já pelo Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também pela Lei 16/2012, de 20 de Abril – “Integram o rendimento disponível [a ser cedido naturalmente para a satisfação dos débitos] todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
E a intenção do legislador, ao criar este instituto jurídico da exoneração do passivo restante (afinal, tão inovador no nosso sistema), só poderá ter sido a de que, verificado ter o devedor feito um significativo esforço durante um certo tempo para pagar o que deve – e pague mesmo –, permitir que volte a ‘levantar a cabeça’ e possa regressar à actividade económica, também a bem do País, sem o referido ‘passivo restante’ a entorpecer-lhe decisivamente tal recomeço (o que não aproveitaria a ninguém).

Daí que se trate realmente de um perdão, mas de um ‘passivo restante’, do que resta, não de todas as dívidas de quem não se apresenta a fazer esforço algum para as pagar ou atenuar. Doutra maneira, quase que se daria aqui, então, cobertura a uma fraude, pois se não poderá esquecer que este mecanismo legal funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores (e não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas).

Por isso que a lei se rodeou de especiais cautelas na sua aplicação, que o intérprete não pode deixar de conferir nos casos concretos que se lhe coloquem.
E conferi-lo rigorosamente.

Destarte, volvendo ao caso sub judicio, temos que a insolvente aduz uma série de situações a apoiar a sua pretensão – desde logo, que é doente (melhor, nunca alega que é doente, apenas que gasta € 80,00 mensais em medicamentos) – mas de que poderia (deveria) apresentar alguma prova das despesas inerentes a tal situação (a existirem, seriam facilmente obtidas, pois são só documentais).
Antes, o que se apurou (até por confissão sua) é que reside com a mãe, e tendo apresentado as despesas consideradas normais para uma cidadã como ela.

Nessas circunstâncias, a douta sentença veio a fixar a retenção num valor de € 557,00 mensais (um salário mínimo nacional) – agora já € 580,00 mensais.
E fê-lo bem, no enquadramento fáctico que tinha por demonstrado.
Pois que a recorrente até poderia ter apresentado e justificado despesas de igual ou superior montante, que não era por isso que se iria eximir, logo de uma forma automática, às suas responsabilidades, nada pagando agora aos credores (ou entregando-lhes uma quantia irrisória, como intenta e, assim, retendo para si o principal dos seus rendimentos).

O ponto fulcral é sempre o mesmo: em tese, terá necessariamente que haver aqui um custo na sua qualidade e teor de vida, e um custo que se veja (ao ponto a que deixou degradar a sua situação económica e financeira, a insolvente alguma coisa de substancial agora terá que pagar aos seus credores, baixando, correlativamente, o seu teor/qualidade de vida).

E foi assim enquadrada, que decidiu a 1ª instância, acabando por fixar um valor global de retenção que tem em conta todas as circunstâncias envolventes – como o faz, agora, esta 2ª instância.
Ora, sendo essa a questão jurídica a que o Tribunal tinha que dar resposta – a do valor pecuniário a reter –, e tendo-o feito, não há ali nenhuma dificuldade de interpretação, como se aduz no recurso, porquanto, ao fixar aquele valor de 1 salário mínimo, o Tribunal já indica que não aceita fixar mais nada, quer a título de subsídios de férias e de Natal, quer doutros valores eventualmente recebidos no exercício da respectiva actividade.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que assim veio a decidir, e improcedendo o presente recurso de Apelação.
*

Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela massa insolvente (artigo 304º do CIRE).
Registe e notifique.
Évora, 08 de Março de 2018
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral