Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8/12.3TAFAL.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: BURLA TRIBUTÁRIA
OMISSÃO
DOLO
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A omissão da arguida, não comunicando à Segurança Social, como estava obrigada, uma alteração da sua situação (que o seu “companheiro” começara a trabalhar), relativa às condições para continuar a receber o RSI, preenche o elemento objetivo do tipo legal de crime de burla tributária (previsto no artigo 87º, nº 1, do RGIT), ou seja, constitui um uso de meio enganoso/falsas declarações (por omissão), determinante de um enriquecimento ilegítimo à custa do correspondente empobrecimento da Segurança Social.
II - Não constando da acusação, nem da matéria de facto dada como provada na sentença, que a arguida omitiu o aludido dever de comunicação à Segurança Social com o propósito/intenção/vontade de enganar a Segurança Social, ou seja, que a sua conduta omissiva foi deliberada/querida, com vista a continuar a receber quantias a que não tinha direito, não se encontra preenchido o elemento volitivo do dolo (a vontade de realizar o tipo objetivo de ilícito em questão), pelo que tem a arguida de ser absolvida.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


1. No Tribunal da Comarca de Beja (Ferreira do Alentejo, Instância Local, Secção de Competência Genérica, J1) correu termos o Processo Comum Singular n.º 8/12.3TAFAL, no qual foi julgada a arguida ADF, (…..), pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de burla tributária, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 87 n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, por referência aos artigos 30 n.º 2 e 79, ambos do Código Penal.
A final veio a decidir-se:

1) Condenar a arguida (ADF), pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de burla tributária, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 87 n.º 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, por referência aos artigos 30 n.º 2 e 79, ambos do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6 (seis) euros;

2) Condenar a demandada ADF a pagar ao demandante -Instituto de Segurança Social, IP - a importância de € 775, 22 (setecentos e setenta e cinco euros e vinte e dois cêntimos), acrescida dos juros legais.
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2. Inconformada com tal sentença, recorreu a arguida da mesma, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - Foi a arguida acusada e condenada pelo crime p. e p. pelo art.º 87 n.º 1 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, por referência aos art.ºs 30 n.º 2 e 79, ambos do Cód. Penal, por - no entender do douto tribunal - a arguida ter praticado um crime de burla tributária.
2 - A arguida ora recorrente discorda da douta decisão condenatória por entender que a sua acção ou, melhor dizendo, neste caso em concreto, a sua omissão, a configurar um ilícito, este seria contra-ordenacional e não penal, impondo-se, por conseguinte, a sua absolvição.
3 - A douta sentença de que ora se recorre dá como provado, em suma, e para o que ao presente recurso importa, os pontos 2 a 17 da matéria dada como provada na douta sentença condenatória.
4 - No presente processo o que está em causa é se a conduta omissiva da arguida, o facto de não ter comunicado à Segurança Social que o seu companheiro iniciou uma atividade comercial, integra o crime de burla tributária. Não está sequer aqui em causa se, tal como a arguida disse nas suas declarações, corroboradas pelas declarações prestadas pelo companheiro, que não recebeu qualquer montante daquela alegada atividade, está sim em causa se esta omissão consubstancia ou não um crime de burla tributária. Tal como supra se referiu, entende a recorrente que não.
5 – Ora, em nosso entender, e salvo melhor e douta opinião, a falta de comunicação pela arguida de circunstâncias suscetíveis de fazer cessar ou suspender a atribuição de uma prestação social não consubstancia, no caso, a prática de qualquer crime, designadamente, o previsto no art.º 87 do Regime Geral das Infrações Tributárias – RGIT - aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06.
6 – Porquanto, entendemos que o crime de burla tributária é um crime de execução vinculada e só pode ser cometido por um dos três modos nele previstos - falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos – pelo que, delineado para condutas ativas, a mera omissão não preenche qualquer das suas condutas típicas. Ora, o silêncio da arguida não é um “meio fraudulento”.
7 - Não é “meio”, porque para ser um meio teria de ser uma conduta ativa, e não é “fraudulento”, porque para ser fraudulento teria de ser minimamente elaborado e, como se verifica no caso concreto não sucedeu, existe apenas uma omissão de comunicação. A burla tributária configura uma das situações em que, nos termos do artigo 10 n.º 1, parte final, do Código Penal, a lei teve intenção de não equiparar a omissão à ação, pelo que esta norma não é aqui aplicável.
8 - Afigura-se-nos que só a utilização de meios fraudulentos determinantes de ilegalidade relativa à atribuição pode configurar o ilícito penal previsto no art.º 87 n.º 1 do RGIT. Parece-nos necessário, para verificação do crime de burla tributária, que o estado de erro ou engano do sujeito passivo tenha sido provocado astuciosamente pelo agente da infração, isto é, usando de um meio enganoso ou fraudulento para enganar ou induzir um erro.
9 - Não configura o crime de burla tributária a situação dos presentes autos, pois a omissão da arguida não determinou qualquer ato de atribuição patrimonial por parte da administração da Segurança Social. A administração já tinha atribuído a prestação. A conduta omitida pela arguida não era idónea à atribuição patrimonial, mas tão-somente à continuação do pagamento da prestação do RSI.
10 - Não tendo sido referido na acusação qualquer facto que revele a utilização de meios fraudulentos na atribuição do RSI, nunca deveria, em nosso entender, o presente processo ter chegado sequer à fase de julgamento.
11 - No entanto, mesmo que se entendesse que a conduta imputada à recorrente preencheria o crime de fraude à Segurança Social previsto no art.º 106 do RGIT, que refere – sem as concretizar, como o faz o n.º 1 do art.º 103 relativamente à fraude fiscal – as condutas que podem configurar aquele delito.
2 - Sempre se dirá que as condutas dos beneficiários da Segurança Social que visem o recebimento indevido, total ou parcial, de prestações ou benefícios, só relevarão criminalmente se a vantagem patrimonial ilegítima obtida ou que se pretendia obter for de valor superior a €7.500, 00 (sete mil e quinhentos euros).
13 - E conforme decorre da douta acusação e da douta sentença condenatória a quantia obtida pela arguida, com a omissão do dever de comunicação do início do exercício da atividade profissional do seu companheiro, teria sido de € 1.288,72 (mil, duzentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos).
14 - Por conseguinte, entendemos que a conduta imputada à arguida apenas é passível de configurar a prática, por esta, de uma contra-ordenação. Assim, face ao exposto e ao existente nos autos, não estamos perante uma infração criminal.
15 - De facto, como bem refere a nossa doutrina, em estudos recentes, “o simples silêncio do arguido não configura, em nosso entender, um meio fraudulento, e a burla, como já referimos, é um crime de execução vinculada. Por outro lado, este crime pressupõe uma conduta ativa por parte do agente, que dirige a sua atuação no sentido de enganar a administração estadual. [E não meras condutas omissivas do agente, aspeto que obsta à tese defendida pelo Ministério Público da equiparação da omissão à ação, nos termos do art.º 10 do Código Penal, o que encontra fundamento na parte final do n.º 1 do citado preceito, “salvo se outra for a intenção da lei”]”.
16 - Acresce ainda que a lei refere expressamente que a conduta do agente "determina" a atribuição da prestação. Ora, querendo abranger as condutas em que o agente omite circunstâncias modificativas supervenientes, o legislador teria de admitir que a conduta do agente era apta a "manter" a prestação já atribuída, o que não é o caso.
17 - Na burla tributária o legislador concretizou a "matriz" dos meios fraudulentos e fê-lo com referência, unicamente, a condutas ativas, declarar falsamente, falsificar, adulterar. Não comunicando estes factos novos, o agente aproveita-se do engano em que administração se encontra, não tendo, contudo, sido ele o autor desse logro.
18 - E para sancionar o incumprimento por parte do beneficiário do dever legal de comunicação, aqui em causa, o legislador instituiu sanções contra-ordenacionais.
19 - Ressalvado, pois, o devido respeito por diferente opinião, cremos que a situação configurada nos autos não integra o crime de burla tributária pelo qual a arguida foi condenada (sendo que, dado o valor da quantia em causa, se encontra, desde logo, afastada a eventualidade da prática do crime p. e p. pelo artigo 106 do RGIT), pelo que tal conduta omissiva imputada à arguida apenas a poderá fazer incorrer na prática de uma mera contra-ordenação, impondo-se, por conseguinte, a sua absolvição.
20 - Conforme já se referiu, a omissão da arguida não determinou qualquer “atribuição patrimonial” por parte da Segurança Social, a qual havia sido feita, anteriormente, no momento do deferimento da prestação social de RSI e de forma válida. A conduta da arguida não preenche os elementos objetivos do crime de burla tributária, ou qualquer outro, pelo que, na decisão recorrida, a Mm.ª Juiz fez uma errada aplicação do art.º 87 do RGIT, impondo-se a correção de tal interpretação.
21 - Dispõe-se no art.º 87 n.º 1 do RGIT: “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
22 - São elementos constitutivos do crime de burla tributária, p. e p. pelo art.º 87 n.º 1 do RGIT, o uso de erro ou engano sobre factos, provocado por meios fraudulentos como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante; que sejam aptos a determinar a administração tributária ou a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
23 - Trata-se de um crime de resultado e de execução vinculada, com processo típico descrito de forma particularmente detalhada. Exige-se, como se referiu, a prática de falsas declarações, de falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos de idêntico teor. A utilização de meio fraudulento pressupõe, cremos, uma conduta ativa do agente, o «uso de um meio fraudulento “ativo”», ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que diretamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente.
24 - O silêncio da arguida não é um “meio fraudulento”. Não é “meio”, porque, para isso, tinha que ser uma conduta ativa, e não é “fraudulento”, porque, para isso, teria que ser minimamente elaborado, o que não sucede.
25 - Na realidade, como já decidiu este Tribunal da Relação de Évora (ac. de 13/1/2009, CJ ano XXXIV, t. I., 277 e segs.), “não são idênticas, no que diz respeito ao processo típico de execução, «as normas contidas nos art.ºs 217 do C. Penal e 87 n.º 1 do RGIT, sendo certo que dúvidas parecem não subsistir de que ambos constituem crimes de resultado e de execução vinculada. Contudo, o legislador tributário, diferentemente do legislador do C. Penal, concretizou a “matriz” dos meios fraudulentos tendentes a induzir o erro ou engano, e, ao fazê-lo, fê-lo com referência a condutas astuciosas comissivas ativas e não já a meras condutas omissivas do agente, aspeto que obsta à tese defendida pelos recorrentes da equiparação da omissão à ação, nos termos do art.º 10 do C. Penal, o que encontra fundamento no último (trecho) do n.º 1 do citado preceito “salvo se outra for a intenção da lei”».
26 - Tal como já se referiu, a conduta omissiva apurada nos autos seria suscetível de integrar a prática, pela arguida, de um crime p. e p. pelo art.º 106 n.º 1 do RGIT, onde se estatui que “constituem fraude contra a Segurança Social as condutas das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes e dos beneficiários que visem (…) o recebimento indevido, total ou parcial, de prestações de Segurança Social com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial ilegítima de valor superior a € 7500”. Contudo, in casu, a vantagem patrimonial ilegítima ficou-se pelos € 1.288,72, inferior, portanto, ao patamar fixado naquele dispositivo legal.
27 - A conduta da arguida, omitindo a comunicação à Segurança Social do início de atividade profissional do seu companheiro, não obstante saber da obrigatoriedade de o fazer, é ilícita, seguramente. Como é moralmente censurável, no que todos estaremos de acordo. Porém, nem todo o comportamento ilícito é necessariamente criminoso. Na verdade, “importa reservar a incriminação para aqueles atos em que seja insuficiente a intervenção dos outros ramos do direito”. E o certo é que a omissão da comunicação do início de uma atividade profissional é, no caso, sancionada como contra-ordenação.
28 - Em conclusão, a conduta da arguida é suscetível de integrar a prática de uma contra-ordenação, não, porém, a prática do crime de burla tributária, p. e p. pelo art.º 87 n.º 1 do RGIT, impondo-se, por conseguinte, a sua absolvição.
29 - Esta é a posição da jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores, conforme infra, e só a título de mero exemplo, indicaremos:
Tribunal da Relação de Évora:
- Proc. n.º 312/11.8TAABF.E1, ac. de 07-12-2012): “I – O crime de burla tributária, p. e p. pelo art.º 87 do RGIT, exige, para o seu preenchimento, um comportamento ativo do agente, não se bastando com conduta omissiva do mesmo.
II – Ao agente que, depois de lhe ter sido legitimamente concedido o subsídio de desemprego pelos serviços da Segurança Social e passando a recebê-lo, não comunicou posteriormente a alteração das condições que estiveram na base da concessão desse subsídio, apenas pode ser imputada contra-ordenação, por preterição da obrigação legal dessa comunicação, nos termos dos art.ºs 42 e 64 do Dec. Lei n.º 220/2006, de 03.11”;
- Proc. n.º 16/12.4TDEVR.E1, ac. 28-01-2014: “I - A não comunicação à Segurança Social de facto suscetível de determinar a suspensão do subsídio social de desemprego, nomeadamente, o início de nova atividade profissional, por banda de beneficiário daquele subsídio, é suscetível de integrar a prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelos art.ºs 64 e 65 do DL 220/2006, de 3/11; não, porém, a prática do crime de burla tributária, p. e p. pelo art.º 87 n.º 1 do RGIT”.
Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. 370/06.7TACBR.C1, ac. 26-01-2011: “1. O crime de burla tributária está estruturado como um crime de resultado, aparecendo como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (e não livre), mas, simultaneamente, estabelece elementos integradores mais formais.
São elementos constitutivos deste crime de burla tributária - uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;
Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
Na configuração do tipo exige-se o uso de um meio fraudulento “ativo”, ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que diretamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente”.
30 - Face a todo o exposto, e sem prescindir, deve o presente recurso merecer provimento e a arguida absolvida, uma vez que a sua conduta não integra um ilícito penal, mas sim um ilícito contra-ordenacional.
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3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - O crime previsto no artigo 87 n.º 1 do RGIT, enquanto crime de resultado, pode ser consumado por comportamento omissivo, desde que preenchidos os requisitos legais ínsitos no artigo 10 n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
2 – In casu, provou-se que a arguida incumpriu o dever de garante que sobre si impendia – i.e., o dever de, enquanto beneficiária do RSI, comunicar, no prazo de 10 dias, à Segurança Social, quaisquer alterações suscetíveis de influir na modificação ou extinção daquele direito – determinando assim aquela entidade a efetuar atribuições patrimoniais indevidas, das quais resultou o enriquecimento ilegítimo da recorrente.
3 – Pelo que estava, assim, pelo menos em tese, preenchido o ilícito penal previsto no artigo 87 n.º 1 do RGIT, sob a forma da comissão por omissão.
4 – Porém, e mesmo sufragando tal posição, existe um facto que impede a punição da recorrente e impõe a sua absolvição: a falta do dolo de omissão na factualidade dada como provada na sentença recorrida.
5 – Com efeito, nos factos provados atinentes ao elemento subjetivo do crime de burla tributária não consta que a recorrente conhecesse o dever de garante que impendia sobre si e que, pelo menos, se tenha conformado com a consequência daquela omissão ou que quisesse violar diretamente aquele dever.
6 – De modo diverso, o dolo que se mostra provado é o dolo da comissão por ação.
7 – Faltando o dolo omissivo na factualidade dada como provada na sentença recorrida, então esses factos provados não são suficientes para integrar o tipo subjetivo do crime de burla tributária, cometido por omissão.
8 – E sem se provar o específico tipo subjetivo da comissão por omissão não está consumado o ilícito, pelo que deve, assim, a recorrente ser absolvida, por violação das disposições conjugadas dos artigos 87 n.º 1 do RGIT e 10 n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
9 – Deve, assim, conceder-se procedência ao recurso e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que absolva a recorrente.
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4. Nesta instância o Ministério público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso (fol.ªs 342).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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6. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. A arguida ADF está inscrita na Segurança Social com o n.º de beneficiária (…..).
2. A arguida requereu a prestação de Rendimento Social de Inserção (RSI) em 03.10.2009, ao abrigo das normas constantes da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 45/2005, de 29 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 42/2006, de 23 de fevereiro, a qual lhe foi deferida em 27.11.2009, com efeitos reportados à data do requerimento, no montante mensal de € 86,53 (oitenta e seis euros e cinquenta e três cêntimos).
3. Aquando da entrevista inicial foram-lhe explicados os direitos e deveres da arguida, enquanto beneficiária do RSI, assim como lhe foi explicado o dever de declarar com verdade todos os factos relativos à composição e rendimentos dos elementos do seu agregado familiar.
4. Foi ainda explicado à arguida o dever de comunicar, no prazo de 10 dias, qualquer alteração verificada, quer no seu agregado familiar, quer nos respetivos rendimentos.
5. À data do requerimento o agregado familiar da beneficiária era composto por si, pelo seu companheiro, VMP (o qual, a partir de 09.11.2009, passou a auferir € 35,00 diários) e pela mãe deste, a qual auferia de rendimentos de trabalho € 504,21 mensais, sendo que todos estes elementos foram tidos em conta no cálculo da prestação mencionado em 2 (€ 86,53).
6. Em março de 2010 a mãe do companheiro da arguida deixa de integrar o seu agregado familiar e VMP deixa de trabalhar, pelo que o montante da prestação do RSI é recalculado e passa para € 379,04 (trezentos e setenta e nove euros e quatro cêntimos).
7. Em agosto de 2010, em virtude da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, que determina um novo cálculo, o montante da prestação passa para € 322,18 (trezentos e vinte e dois euros e dezoito cêntimos).
8. Em 10.05.2011 a arguida é alvo de uma inspeção, no âmbito da qual se deteta que o seu companheiro VMP então explorava, desde janeiro de 2011, um café sito em Ferreira do Alentejo, auferindo o agregado familiar da arguida e beneficiária os rendimentos provenientes dessa exploração do estabelecimento comercial.
9. Tal facto (a exploração do café pelo seu companheiro) nunca foi comunicado pela arguida à Segurança Social, a qual apenas teve conhecimento do mesmo em virtude da referida inspeção, levada a cabo em 10 de maio de 2011.
10. Por força da omissão de um dever legal, a Segurança Social continuou a pagar à arguida a prestação de RSI, quando a mesma não reunia as condições necessárias para a sua atribuição, prestações aquelas que se traduziram num enriquecimento ilegítimo da arguida.
11. A arguida não comunicou dentro do prazo legal as alterações verificadas nos rendimentos do seu agregado familiar, sendo que, por tal facto, recebeu indevidamente a prestação de RSI no montante total de € 1.288,72 (mil duzentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), tendo-lhe sido emitida e notificada a correspondente nota de reposição.
12. Nessa altura, a arguida solicitou essa devolução em 36 prestações mensais, no valor de € 51,50 cada, com início em outubro de 2011 e final previsto em outubro de 2013, sendo que a arguida veio a incumprir esse acordo, ficando por liquidar o montante de € 775,22, sendo que o último pagamento ocorreu em março de 2012.
13. Ao agir da forma acima descrita, apropriou-se a arguida do montante total de € 1.288,72 (mil duzentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), embora soubesse que não tinha direito ao mesmo, sendo que desse valor restituiu € 513,50.
14. Sabia a arguida que aquela quantia pertencia à Segurança Social e que não tinha, por isso, direito a recebê-la.
15. Não obstante, quis a arguida utilizar tal quantia, obtendo com essa conduta fraudulenta uma vantagem patrimonial ilegítima e causando um concomitante prejuízo patrimonial à Segurança Social.
16. Durante o mencionado período, agiu sempre a arguida de forma homogénea, aproveitando-se de, imediatamente após o facto de o seu companheiro iniciar a exploração do café, não ter sido alvo de qualquer fiscalização ou penalização, persistindo, por isso, a possibilidade de repetir a sua atividade delituosa.
17. A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que estava a enganar a Segurança Social, de forma a aceder a uma prestação a que por lei não tinha direito.
18. A arguida encontra-se desempregada, não auferindo qualquer rendimento fixo e sobrevivendo com a ajuda de familiares. Em épocas sazonais aufere cerca de 30/35 euros por mês.
19. Paga mensalmente renda, no valor de € 400 euros, senda esta custeada por familiares.
20. Tem o 12.º ano de escolaridade e não tem antecedentes criminais.
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7. O tribunal formou a sua convicção – escreve-se na fundamentação – “nas declarações da arguida, que confessou parcialmente os factos que lhe eram imputados, referentes às circunstâncias de tempo e lugar da comissão dos factos, mas também ao circunstancialismo subjacente e envolvente da prática dos mesmos.
No entanto, a arguida não admite como verdadeiro o facto do seu companheiro ter explorado de facto o estabelecimento comercial (café) em causa e que só nominalmente o café se encontrava em nome do seu companheiro, a pedido de um tio, sendo este o verdadeiro responsável de facto pelo mesmo café e aquele que auferia os rendimentos dele provenientes.
A circunstanciar os factos, no que respeita à inspecção efetuada ao domicílio do agregado familiar da arguida, depuseram as testemunhas FXC, inspector da Segurança Social aposentado, e MCM, também inspectora da Segurança Social, esta última relatando a existência junto aos autos de documento de início de atividade do estabelecimento (café) em janeiro do ano correspondente, em nome do companheiro da arguida.
Também LIMG e MIPM, ambas assistentes sociais, afirmaram no seu depoimento que efetuavam visitas domiciliárias à arguida e que a arguida foi informada para fazer todas as comunicações à Segurança Social, caso o estado do seu agregado familiar se alterasse, tendo ainda confirmado todos os montantes pagos pela arguida e os que faltam pagar, em reembolso.
A testemunha VMP é o atual companheiro da arguida, tendo confirmado na íntegra a visita inspetiva à residência do agregado familiar e a sua presença. Apesar de negar o recebimento de um ordenado a título de remuneração pela exploração do café, ainda que confirmasse que estava em seu nome, a pedido de um tio, admitiu receber algum rendimento em cerca de € 20 euros por “cada ajuda”(sic).
No entanto, este depoimento mostrou-se inverosímil com a junção aos autos por parte do Instituto de Segurança Social da aplicação CDF (cruzamento de dados com o Ministério das Finanças), em que consta que à data dos factos o companheira da arguida declarou ao Serviço de Finanças a perceção da importância de € 161,70 relativa ao ano de 2010 e € 14.695,32 euros relativa ao ano de 2011, a título de rendimentos recebidos.
As testemunhas depuseram assim de forma coerente, quer intrínseca, quer extrinsecamente entre si, com adaptação da linguagem verbal e não verbal, de forma clara e sem hesitações, de forma a sustentar a sua credibilidade no descobrir da veracidade dos factos por este tribunal. Exceção seja feita, na parcela das declarações da arguida que esta não confessou e de seu companheiro, VMP, que não convenceram este tribunal nas suas declarações e depoimento, ao referirem a não perceção de rendimentos deste último como tendo origem no estabelecimento comercial (café), aliás, que em parte e em diminuto valor é admitido pela própria testemunha.
Para prova da factualidade o tribunal valorou ainda os documentos constantes do inquérito da Segurança Social, designadamente, folhas de cálculo dos rendimentos e da prestação de RSI, consultas e respetivos print.
Perante isto, fixou-se correspondentemente a matéria de facto dada como provada e como não provada…”.
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8. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no que respeita à matéria de facto, seja no que respeita à matéria de direito – elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, pois que são estas que delimitam o âmbito do recurso (art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do CPP, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Atentas as conclusões do recurso da arguida, assim consideradas, uma única questão vem colocada à apreciação deste tribunal: é a de saber se a conduta da arguida, tal como resulta provada, preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime pelo qual foi condenada
(um crime de burla tributária, p. e p. pelo art.º 87 n.º 1 do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5.06).
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Consta da matéria de facto dada como provada, em síntese:
1) que “a arguida ADF está inscrita na Segurança Social com o n.º de beneficiária (…..) …. requereu a prestação de Rendimento Social de Inserção (RSI) em 03.10.2009, ao abrigo das normas constantes da Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 45/2005, de 29 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 42/2006, de 23 de fevereiro, a qual lhe foi deferida em 27.11.2009, com efeitos reportados à data do requerimento…”;
2) que, “aquando da entrevista inicial foi-lhe explicado os direitos e deveres da arguida, enquanto beneficiária do RSI, assim como lhe foi explicado o dever de declarar com verdade todos os factos relativos à composição e rendimentos dos elementos do seu agregado familiar… ainda explicado à arguida o dever de comunicar, no prazo de 10 dias, qualquer alteração verificada, quer no seu agregado familiar, quer nos respetivos rendimentos…”;
3) que “em 10.05.2011 a arguida é alvo de uma inspeção, no âmbito da qual se deteta que o seu companheiro VMP então explorava, desde janeiro de 2011, um café sito em Ferreira do Alentejo, auferindo o agregado familiar da arguida e beneficiária os rendimentos provenientes dessa exploração do estabelecimento comercial… facto (a exploração do café pelo seu companheiro) nunca… comunicado pela arguida à Segurança Social, a qual apenas teve conhecimento do mesmo em virtude da referida inspeção, levada a cabo em 10 de maio de 2011”;
4) e que, “por força da omissão de um dever legal, a Segurança Social continuou a pagar à arguida a prestação de RSI, quando a mesma não reunia as condições necessárias para a sua atribuição, prestações aquelas que se traduziram num enriquecimento ilegítimo da arguida… a arguida não comunicou dentro do prazo legal as alterações verificadas nos rendimentos do seu agregado familiar, sendo que, por tal facto, recebeu indevidamente a prestação de RSI no montante total de € 1.288,72 (mil duzentos e oitenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), tendo-lhe sido emitida e notificada a correspondente nota de reposição”.
Ou seja, a arguida omitiu o dever que sobre si recaía, de comunicar à Segurança Social, no prazo de 10 dias, os rendimentos que o seu agregado familiar passou a auferir – a partir de janeiro de 2011 (por o seu companheiro passar a explorar um café sito em Ferrerira do Alentejo) - e, consequentemente, continuou a receber o RSI que, caso contrário, não receberia.
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E dispõe o art.º 87 n.º 1 do RGIT: “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
A questão que se coloca é, pois, se esta omissão da arguida – a não comunicação de tal facto à Segurança Social (a que estava obrigada) – preenche o elemento objetivo do crime de burla tributária previsto no art.º 87 n.º 1 do RGIT, ou seja, constitui um uso de meio enganoso/falsas declarações (por omissão) determinante de um enriquecimento ilegítimo à custa do correspondente empobrecimento da Segurança Social.
E não tem sido pacífica esta questão, inclusive, neste tribunal.
A favor podem ver-se:
O acórdão de 1.02.2006, Col. Jur. 2006, Tomo I, pág. 258, onde se decidiu que “… a ocultação dum facto que legalmente devia ter revelado à administração tributária, aqui SS (a comunicação do início de uma atividade remunerada), ocultação que determinou a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais (processamento de subsídio social de desemprego que não aconteceria caso o arguido tivesse cumprido o seu dever jurídico de informação) das quais resultou um enriquecimento do agente…” constitui um meio fraudulento.
E o acórdão de 8.01.2013, Proc. 1298/11.4TAABF.E1, in www.dgsi.pt, em cujo sumário consta: “I – A conduta omissiva do agente pode enquadrar a prática de crime de burla tributária nos casos abrangidos pelo art.º 10 n.º 2 do Código Penal. II – O pagamento de subsídio social de desemprego configura «atribuição patrimonial», cujo efeito como tal se mantém mesmo que a conduta omissiva do agente se reporte a momento posterior à sua concessão, traduzida em que não comunicou à administração da Segurança Social a alteração das condições que estiveram na base dessa concessão, assim violando o dever de garante imposto pelo art.º 42 n.º 2 do DL 220/06, de 03.11”.
Em sentido contrário podem ver-se, v. g., os acórdãos (deste tribunal) de 8.11.2005, 31.01.2006, 13.01.2009, 28.01.2014 e 30.10.2014 (este último com voto de vencido), todos in www.dgsi.pt.
Essencialmente, argumenta-se nesta posição:
1) que o crime em causa exige atos positivos do agente, ou seja, uma conduta fraudulenta ativa, astuciosa, que induza em erro ou engano, não uma conduta meramente omissiva do agente;
2) que a conduta omissiva do agente – ao ocultar um facto que, a ser conhecido da SS, determinaria a cessação da atribuição das prestações que lhe foram atribuídas – não configura qualquer encenação/meio fraudulento que determine a atribuição da prestação, mas tão somente a continuação/manutenção.
Não nos revemos nesta jurisprudência.
Dispõe o art.º 10 do CP:
1 – Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da ação adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 – A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”.
Sobre a arguida recaía o dever de comunicar à Segurança Social, no prazo de dez dias – ex vi art.º 21 n.º 5 da Lei 13/2003, de 21.05 - que o seu companheiro explorava, desde janeiro de 2011, um café sito em Ferreira do Alentejo, auferindo o agregado familiar da arguida e beneficiária os rendimentos provenientes dessa exploração do estabelecimento comercial, o que não fez, circunstância que determinou que a Segurança Social continuasse a pagar à arguida a prestação de RSI, quando a mesma deixara de reunir – a partir de tal facto - as condições necessárias para a sua atribuição (art.º 10 n.º 2 do Código Penal).
Como escreve A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 308-309, “… o facto de se tratar de um delito de execução vinculada não constitui um impedimento absoluto da equiparação da omissão à acção… o modus operandi da burla representa, apenas, uma das modalidades que pode assumir a ofensa a interesses de natureza patrimonial, não lhe atribuindo o direito positivo português um qualquer desvalor adicional em relação às que subjazem, por exemplo, aos crimes de furto e dano. À semelhança do que se passa no tocante aos últimos, não se detetam, pois, razões de fundo que obstem à punição da burla a título de comissão por omissão, desde que preenchidos os requisitos gerais do art.º 10 do CP”.
Por sua vez escreve Germano Marques da Silva, in Direito Penal português, Parte Geral, II, 46-46: “… a omissão é causa de um evento previsto na descrição típica do crime cometido, não porque seja o ato omissivo que provoca o evento, mas porque o agente não pratica o ato que deve praticar para evitar esse evento. A omissão é, pois, de certa forma, apenas causa hipotética do evento”.
Em suma, é a conduta omissiva da arguida – que tinha a obrigação legal de levar a cabo – que determina que, a partir de janeiro de 2011 – altura em que deixou de reunir as condições para receber o RSI – determina que a Segurança Social pague as quantias que pagou e que não lhe eram devidas, com o consequente enriquecimento ilegítimo da arguida.
Por outro lado, e como assinala o Ministério Público na resposta à motivação do recurso, a ressalva constante na parte final do n.º 1 do art.º 10 do CP - “salvo se outra for a intenção da lei” – não opera automaticamente, antes pressupõe uma valoração autónoma, antes pressupõe uma valoração autónoma, “de caráter ético-social, através da qual ele determine se, segundo as concretas circunstâncias do caso, o desvalor da omissão corresponde ou é equiparável ao desvalor da ação” (Figueiredo Dias, citado por M. Miguez Garcia e J. M. Castelo Rio, in Código Penal - Parte Geral e Especial – Com Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág. 81); e essa valoração autónoma, atentas, por um lado, as especiais necessidades de solidariedade social que se visam com a atribuição do RSI, por outro, a preocupação da transparência da situação dos contribuintes que dele beneficiam – quanto aos pressupostos legais de que depende a sua atribuição, mas também quanto à sua alteração – permite concluir que o desvalor da omissão do agente - que, sabendo que deixou de reunir as condições para receber tal subsídio não dá conhecimento à Segurança Social de tal facto, não obstante saber que o deve fazer - é equiparável ao desvalor da comissão por ação.
Diga-se ainda:
Por um lado, não se percebe – e a recorrente não concretiza os fundamentos em que baseia tal afirmação – porque razão haveria a conduta da arguida integrar o crime de fraude fiscal, sendo que ao recorrente que divirja da decisão recorrida incumbe alegar e demonstrar os fundamentos ou razões em que baseia a sua pretensão, no caso, que se verificam os elementos objetivos e subjetivos daquele crime;
Por outro lado, porque razão a conduta da arguida integra a prática de uma contra-ordenação, já que não se descortina – e a arguida também não a concretiza - que norma prevê e sanciona tal conduta como contra-ordenação;
Por outro lado, ainda, tal alegação é irrelevante, pois que – pelas razões que abaixo se exporão – havendo razões para absolver a arguida da prática do crime pelo qual foi acusada, o conhecimento daquelas questões não teria qualquer efeito útil, concreto, para a arguida.
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O Ministério Público veio a alegar - na resposta que apresentou – que a matéria de facto dada como provada não preenche um dos elementos do tipo – o elemento volitivo do dolo – e que, por isso, não pode a arguida ser condenada pela prática do crime que lhe vinha imputado, sendo que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” (art.º 13 do CPP); e a lei não prevê, no caso, a punição da conduta negligente.
De facto, consta da matéria de facto dada como provada:
- que foi explicado à arguida “o dever de comunicar, no prazo de dez dias, qualquer alteração verificada, quer no seu agregado familiar, quer nos respetivos rendimentos”;
- que a arguida não comunicou à Segurança Social que o seu companheiro explorava, “desde janeiro de 2011, um café sito em Ferreira do Alentejo…”;
- que a arguida sabia que não tinha direito a receber as quantias que recebeu indevidamente (por não ter comunicado à segurança social tal facto), “… aproveitando-se de… não ter sido alvo de qualquer fiscalização…”;
- que a arguida “agiu livre e conscientemente, bem sabendo que estava a enganar a Segurança Social, de forma a aceder a uma prestação a que não tinha direito”.
Ou seja – em síntese – por um lado, a arguida sabia que sobre si impendia a obrigação de comunicar à Segurança Social que o seu companheiro começara a trabalhar (facto que não comunicou), por outro, que - por não comunicar tal facto - continuou a receber, indevidamente, quantias que sabia não lhe serem devidas.
Ora, desta factualidade – e esta era a que constava da acusação – não se pode concluir, sem ir além da matéria alegada, que a arguida omitiu tal dever com o propósito/intenção/vontade de enganar a Segurança Social, ou seja, que a sua conduta omissiva foi deliberada/querida, com vista a continuar a receber tais quantias.
E não constando tal facto da matéria de facto dada como provada, não se encontra demonstrado o elemento volitivo do dolo – a vontade de realizar o tipo de ilícito pelo qual foi condenada – elemento essencial para se poder afirmar que a arguida praticou o crime pelo qual foi condenada, que não se confunde com o elemento intelectual, ou seja, com o facto de a arguida saber que tinha a obrigação de comunicar tal alteração factual e que, não a comunicando, continuava a receber quantias que sabia não lhe serem devidas e, portanto, tinha conhecimento/consciência que a sua conduta era ilícita; uma coisa é saber/ter consciência que a conduta que leva a cabo é ilícita, e outra - que com esta não se confunde - é querer/ter vontade de levar a cabo tal conduta (que sabe ser ilícita), de realizar os factos objetivos que integram o tipo.
E essa atuação voluntária/querida não se encontra demonstrada na sentença recorrida (nem constava, aliás, da acusação), pelo que não se encontra demonstrado um dos elementos essenciais do tipo de crime pelo qual a arguida foi condenada.
Procede, por isso, o recurso.
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A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão (art.º 403 n.º 3 do CPP).
A procedência do recurso relativamente à matéria crime poderia levar a pensar que, não havendo crime, deveria a arguida ser absolvida do pedido cível que tinha aquele como fundamento.
Mas não é assim.
A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado (art.º 377 n.º 1 do CPP), ou seja, desde que – ainda assim – subsistam os pressupostos da responsabilidade civil: um facto voluntário do agente (não necessariamente querido, mas dominável ou controlável pela vontade), ilícito (violador de um direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios) e culposo (por o agente, podendo e devendo agir de outro modo, ter omitido o dever de diligência que sobre si recaía), e a existência de um prejuízo – para o demandante – resultante, como consequência necessária, da conduta do agente (art.º 483 do Código Civil).
Ora, não se provando que a arguida tenha omitido, dolosamente, o dever que sobre si recaía – em consequência do qual resultaram os danos dados como provados para a Segurança Social – estamos, ainda assim, perante uma conduta ilícita – porque contrária ao dever jurídico que sobre si recaía - e culposa, porque a arguida, podendo e devendo agir de outro modo, como sabia, omitiu tal dever, obtendo uma vantagem patrimonial à custa da demandante que sabia não lhe ser devida.
O pedido do demandante mostra-se, assim, fundado, ainda que a arguida não possa ser responsabilizada criminalmente.
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9. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida e, consequentemente, decidem:
- revogar a sentença recorrida, no que à matéria crime respeita, e absolver a arguida do crime pelo qual foi condenada;
- manter a sentença recorrida no que respeita à matéria cível.
Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 03-11-2015

Alberto João Borges

Maria Fernanda Pereira Palma