Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7867/11.5TBSTB-B.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
ACEITAÇÃO TÁCITA
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - A venda por negociação particular de imóvel penhorado pode ser validamente efectuada por valor inferior ao valor base do bem fixado para a venda por propostas em carta fechada, que se frustrou, desde que: i) haja acordo de todos os interessados; ou ii) caso tal não ocorra, exista um despacho judicial que pondere as circunstâncias pelas quais apenas foi obtido pelo encarregado da venda um valor inferior ao inicialmente fixado, e decida se, em face das mesmas, é de autorizar a venda pelo valor proposto, assim assegurando a defesa de todos os interesses em presença.
II - Tendo as notificações à credora reclamante sido efectuadas pelo AE para o mandatário indicado por aquela nos autos, o qual cessou funções, por se ter aposentado, não configura justo impedimento a situação em que, só decorridos mais de 10 meses sobre a aquele facto, totalmente desconhecido nos autos, aquela viesse juntar procuração a novo mandatário e, apenas posteriormente à notificação da decisão de venda, viesse manifestar a sua discordância quanto ao valor da mesma.
III - Por isso, quando a credora reclamante apresentou o indicado requerimento, há muito havia, com o respectivo silêncio, dado a sua aceitação tácita aos termos da alienação proposta pelo AE.
IV - Ora, no figurino do actual processo executivo, havendo acordo por parte dos interessados sobre o preço da alienação, ainda que tácito, a venda do bem penhorado por valor inferior ao inicialmente fixado não carece de autorização do juiz.
V - Assim, não se verifica a existência de omissão de formalidade que influa na decisão da causa, subsumível ao disposto no artigo 195.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e, consequentemente, não se mostra preenchido o fundamento para anulação da venda executiva a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 839.º da referida codificação.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 7867/11.5TBSTB-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal[1]
*****
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - Relatório
1. AA, Agente de Execução nomeado nos identificados autos de execução, tendo sido notificado do despacho que determinou a anulação da venda efectuada em 16.11.2015 e todos os actos subsequentes, condenando-o pelo incidente, interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«a) O Despacho de 21/04/2017 é ilegal, fazendo errada apreciação dos factos e de vários normativos legais, identificando-se, entre outros, como violadas as seguintes normas:
i. art.ºs 149.º, 195.º, 199.º, 527.º, 723.º, 812.º, n.º 1, 832.º, 833.º, 839.º, n.º 1, alínea c), todos do CPC; ii. art.ºs 9.º, n.º 3 e 217.º e 218.º do Código Civil; iii. art.ºs 119.º, 121.º, 124.º, 162.º, 179.º e 182.º da Lei n.º 154/2015, conhecido como o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução; iv. art.ºs 2.º, 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa.
b) Sobre o regime do recurso, remete-se para o que se invoca em sede de requerimento de interposição, quanto à admissibilidade, legitimidade e regime aplicável.
c) A decisão recorrida não relevou devidamente o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (Lei n.º 154/2015) e a definição do Agente de Execução, como auxiliar da Justiça (art.º 162.º, n.º 1 do Estatuto), o qual prossegue o interesse público, com poderes de autoridade pública. É assim uma espécie de longa manus do Poder Judiciário.
d) O Agente de Execução não é parte, nem mandatário de parte processual (art.º 162.º, n.º 3 do referido Estatuto), pelo que não pode ser responsabilizado por custas, não cabendo no conceito do art.º 527.º do CPC. É, portanto, ilegal a sua condenação no pagamento de três unidades de conta.
e) Daí que a interpretação do art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no sentido de o Agente de Execução poder ser condenado em custas, seja inconstitucional, por tal se revelar violador do princípio da independência dos Tribunais e do Estado de Direito Democrático, questão que aqui se suscita, para efeitos de expressa pronúncia por este Tribunal a quibus, nos termos e para os efeitos do art.º 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82.
f) Os princípios da justiça, da segurança e certezas jurídicas, enquanto corolários do Estado de Direito Democrático (art.º 2.º da CRP) são também infringidos, razão pela qual se justifica a censura ao presente Despacho.
g) Tendo presente os factos e atos acima elencados, no item n.º 23.º do corpo da motivação deste recurso, nenhuma enfermidade legal afeta todo o processado, no que tange à venda judicial em apreço, não tendo sido omitido a prática de qualquer ato prescrito pela lei.
h) Tendo sido expedidas notificações para todos os sujeitos processuais (inclusive para o Ilustre Mandatário da Credora Reclamante BB), na data de 24/09/2015 da proposta de aquisição, por negociação particular, de € 25.600,00 (vinte e cinco mil euros e seiscentos euros) e ninguém tendo manifestado a sua oposição (nem a BB ou o Tribunal), o Agente de Execução estava em condições de aceitar a proposta como fez.
i) A Credora Reclamante BB não pode, em momento largamente posterior, opor-se à aceitação da proposta, quando, no tempo processual adequado não o fez. Esta inação no tempo devido é legalmente cominada com a preclusão do direito, pela sua caducidade (art.º 298.º, n.º 2 do CC), sendo inclusive o conhecimento deste ponto de conhecimento oficioso (art.º 333.º, n.º 1 do CC), o que a esse título também se requer.
j) Ao mesmo tempo, importa notar que existiu autorização judicial tácita, sobre os termos da alienação, na medida em que o Tribunal foi informado dos termos da proposta e nada disse acerca da mesma, seguindo-se neste particular a Jurisprudência plasmada no Douto Decisório do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05/03/2015, Proc. N.º 225910.6T2SNT.L16, acima citado.
k) Daí que não se possa afirmar que ocorreu nulidade que influi no exame ou decisão da causa, já que o desfecho seria sempre igual, dado que as partes não se opuseram à aceitação da proposta, na oportunidade processual devida (entendimento, de resto, em linha com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/06/2014, Proc. N.º 20713/10.8 T2SNT.L16, supra transcrito).
l) A notificação sobre os termos da proposta aos vários sujeitos processuais e ao Tribunal data de 24/09/2015; a reclamação da Credora Reclamante BB data de 14/12/2015, quase três meses depois, o que atenta notoriamente com os princípios da segurança e certeza jurídicas.
m) Assim, nos termos do artº. 217.º do CC existiu aceitação tácita, já que a não pronúncia é entendida tacitamente como aceitação, face à cominação presente na notificação. Em todo o caso, sempre o silêncio aqui valeria como aceitação, já que por força dos usos em matéria de notificações judiciais, tal significação do silêncio como concordância, é usual (art.º 217.º do CC).
n) Por todo o exposto, o Despacho aqui objecto de recurso deve ser revogado e, por essa via, considerado legal o procedimento de venda judicial em causa, bem como absolvido o AE do pagamento de quaisquer custas.
o) Em tese subsidiária, sempre se nota que o presente Despacho deverá, de igual modo, ser revogado, mesmo que se entenda que no caso em concreto era necessário o ato judicial de autorização e o mesmo não foi, em concreto, obtido, face aos factos carreados para os autos relativos ao estado do imóvel e ao estado da venda, pois este Tribunal de recurso está em condições de emitir tal autorização.
p) Daí que, por caber no âmago dos poderes deste Tribunal, (665.º, n.º 2 do CPC), o mesmo possa conceder a autorização judicial relativa à venda judicial realizada e respetivos termos, tendo presente a notória conjuntura nacional no mercado imobiliário (facto notório para efeitos processuais – art.º 412.º, n.º 1 do CPC), bem como as características do imóvel mencionadas no corpo da motivação do recurso e a justeza, neste contexto, do preço em causa (em linha com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/12/2015, Proc. N.º 2650/08.8TBCLD-B.C1 e Relator o Juiz Desembargador Arlindo Oliveira).
q) Ainda em tese subsidiária, mesmo que este Tribunal a quibus entenda manter a anulação da venda judicial, deverá, conforme argumentação supra expendida, sobre o estatuto do AE, enquanto auxiliar da justiça e em obediência à independência do seu Estatuto (e reflexamente dos Tribunais e poder judicial), absolver o Agente de Execução do pagamento de custas, pelo incidente».

2. Igualmente inconformada com o referido despacho, a adquirente do imóvel penhorado, CC, interpôs o presente recurso, terminando com as seguintes conclusões[3]:
«3. O Tribunal, para proferir a decisão de que se recorre, elencou um rol de factos que constam dos autos. Sucede que de tal rol devia igualmente constar que:
i. a proposta de aquisição da aqui Recorrente foi a mais elevada dentre as propostas, potenciais ou concretas que estes autos de processo executivo documentam (vide folhas dos autos);
ii. nenhum dos sujeitos processuais manifestou a sua oposição à aceitação da proposta, nos dez dias após a notificação da mesma, pelo Agente de Execução, em 24/09/2015 (conforme se vê, nos autos, nenhum requerimento surge em resposta a tal notificação);
iii. a aqui Recorrente adquiriu o imóvel de boa fé, desconhecendo a existência de qualquer óbice à aquisição da mesma (a Requerente só tomou conhecimento do requerimento da BB após a notificação expedida em 13/04/2016);
iv. a aqui Recorrente pagou o preço do imóvel em 25/11/2015, pelas 10h44 (documento junto com o Requerimento da Recorrente datado de 19/04/2016);
v. a aqui Recorrente pagou o preço do registo do imóvel em 25/11/2015, pelas 10h45 (documento junto com o Requerimento da Recorrente datado de 19/04/2016); e
vi. na Conservatória do Registo Comercial, o direito de propriedade do imóvel em causa está registado a favor da Recorrente, pelo averbamento de 18/12/2015, 09h43 (comunicação do Senhor Agente de Execução aos autos em 09/06/2016).
4. O processo de venda judicial decorreu sem que nenhum ato prescrito na lei fosse omitido. O Despacho refere, erroneamente, que foi omitido o ato de autorização pelo Tribunal, identificando os art.ºs 195.º, n.º 1, 723.º, n.º 1, alínea d) e 839.º, n.º 1, alínea c), todos do CPC.
5. Sucede que quando a proposta de aquisição da aqui Recorrente foi apresentada, o Agente de Execução, em 24/09/2015, informou todas as partes da mesma, solicitando ainda a pronúncia destas. Mais referiu que, na ausência de oposição, a proposta seria aceite.
6. Nenhuma das partes manifestou a sua oposição. Nessa sequência, em 16/11/2015, o Agente de Execução informou todos os sujeitos da aceitação da proposta da aqui Recorrente.
7. O Tribunal foi sempre informado e notificado da evolução deste processo, sendo-lhe remetidas informações quer sobre a apresentação da proposta, quer posteriormente da aceitação da mesma, face à não oposição das partes.
8. Daí que, à imagem de outras decisões de Tribunais Superiores (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05/03/2015, Proc. N.º 225910.6T2SNT.L16), tenha havido uma autorização tácita do Tribunal, não sendo legítimo, ao mesmo Tribunal, vir agora dar sem efeito um ato do qual teve conhecimento e não se opôs.
9. Mais, tendo todos os interessados sido notificados e não tendo nenhum manifestado oposição, não ocorre qualquer nulidade que possa influir no exame ou decisão da causa, pois mesmo que o Tribunal viesse a “avocar” a decisão de venda para si, tal não poderia conferir às partes nova oportunidade processual para se oporem à venda.
10. Além disso, quando notificada da decisão de venda, a Credora Reclamante não apresentou reclamação do ato do Agente de Execução, nos termos do art.º 723.º, n.º 1, alínea c) ou mesmo alínea d) do CPC. Ao não o fazer, também aqui precludiu tal direito. Não pode a parte usar do mecanismo da comunicação para o Agente de Execução e, após este indeferir a pretensão aí suscitada, fazer reviver novamente o direito de reclamar para o Juiz de ato já “consolidado” pelo Agente de Execução e assim ter nova oportunidade para ver decidida tal questão.
11. A inércia reiterada da Credora Reclamante BB não pode encontrar suporte legal no Despacho objeto de recurso, já que tal só à primeira se deve, pela não manifestação da sua oposição à proposta. A recorrida deixou caducar o direito de pronúncia sobre a proposta (após ter sido informada da mesma), bem como deixou caducar o direito de reclamar de ato do Agente de Execução, pois quando foi notificada da decisão de venda, não suscitou a intervenção do Tribunal no prazo supletivo legal.
12. Acresce que da lei não resulta a obrigatoriedade de obtenção de autorização judicial, pois que a venda executiva está entregue ao respetivo encarregado e será este que, ouvidos os interessados, decidirá da mesma, ressalvando-se os casos de reclamação ou solicitação de intervenção do Tribunal – feitas tempestivamente – para o Juiz.
13. Ademais, tendo presente o pagamento do preço de aquisição do imóvel, a Recorrente beneficia da proteção decorrente dos princípios da confiança, da justiça e da certeza e seguranças jurídicas (elementares concretizações do Estado de Direito Democrático, consagrado no art.º 2.º da CRP). A aquisição da Recorrente foi legítima, justificada e de boa fé, pois desconhecia quaisquer questões substanciais ou procedimentais que pudessem afetar a aquisição do direito de propriedade. A Recorrente inclusivamente, após a aquisição, realizou obras no imóvel.
14. Daí que a interpretação conjunta dos art.ºs 839.º, n.º 1, alínea c) e 195.º, ambos do CPC, no sentido de determinarem a anulação de venda judicial já concretizada, quando o Adquirente desconhece qualquer vício, substantivo ou procedimental, relativo a tal venda, seja inconstitucional por violação do art.º 2.º – Estado de Direito Democrático –, incluindo-se aqui os subprincípios da confiança, justiça e certeza e seguranças jurídicas, questão que aqui se suscita, para efeitos de expressa pronúncia por este Tribunal a quibus, nos termos e para os efeitos do art.º 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82.
15. Esta proteção adensa-se ainda com o regime decorrente do art.º 291.º do CC. De facto, a Recorrente é uma terceira de boa fé, não lhe podendo ser oposta a anulação da venda (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/07/2010, Proc. N.º 800/03.0TBSRT.C1).
16. Deve por isso ser revogado o Despacho de 21/04/2017 e substituído por Decisão deste Venerando Tribunal que considere intempestiva e improcedente a reclamação da BB, datada de 14/12/2015. Nessa sequência, deve também ser declarada a licitude processual e substantiva da venda judicial já operada.
17. Sem prescindir e apenas subsidiariamente, caso o Tribunal entenda improceder a argumentação acima operada, o Despacho em crise deverá ser revogado, mesmo que se sustente que no caso em concreto era necessário o ato judicial expresso de autorização e o mesmo não foi, em concreto, dado. Na verdade, entendendo-se necessário tal ato judicial expresso e, face aos factos carreados para os autos relativos ao estado do imóvel e ao estado da venda, tendo presente que a proposta da Adquirente foi a mais elevada, dentre todas as que foram apresentadas, este Tribunal de recurso está em condições de emitir tal autorização, ao abrigo do art.º 665.º, n.º 2 do CPC, o que se requer».

3. O despacho recorrido foi proferido em 21.04.2017 e tem o seguinte teor:
«Em requerimento de 14.12.2015 (2ª feira), a credora reclamante BB, SA, requereu que seja dada sem efeito a decisão da venda constante da notificação de 16.11.2015, ordenando-se a restituição do preço à proponente.
Sobre a questão apenas o AE e a proponente se pronunciaram, pugnando pela manutenção da venda.
Da consulta dos autos resulta o seguinte:
1. Foi determinada a venda do imóvel penhorado por abertura de propostas em carta fechada, tendo sido fixado o valor base de € 101.142,86, correspondente a um valor a anunciar de € 70.800,00.
2. Por não terem sido apresentadas propostas, foi determinada a venda por negociação particular, em diligência que teve lugar no dia 12.11.2013.
3. No dia 24.09.2015, o AE enviou notificação ao I. mandatário da BB (Dr. …) da apresentação de uma proposta no valor de € 25.600,00, concedendo um prazo de 10 dias para pronúncia, com a cominação de que, se nada fosse dito, se consideraria prestado o acordo à venda pelo valor proposto.
4. No dia 06.10.2015, a BB, através do Dr. …, comunicou ao AE a junção de procuração passada a favor daquele I. causídico, requerendo que daquela data em diante todas as notificações fossem dirigidas ao novo advogado constituído.
5. No dia 16.11.2015, o AE enviou notificação da sua decisão de aceitação da proposta apresentada, com o fundamento de que não foi deduzida qualquer oposição à realização da venda.
6. No dia 25.11.2015, a BB requereu ao AE que desse sem efeito a decisão de aceitação da proposta de 25.600 €, e que os autos ficassem a aguardar, pelo prazo de 30 dias, a apresentação de uma proposta de valor superior, a apresentar pela própria BB, explicando o motivo pelo qual a BB não se tinha pronunciado aquando da notificação de 24.09.2015:
“3 – É certo que a BB havia sido notificada em 24/09/2015, na pessoa do seu anterior mandatário, Dr. …, para se pronunciar sobre esta última proposta.
4 – Todavia, como nessa data o Sr. Dr. … já havia passado à situação de aposentado, a notificação não chegou a ser extraída da plataforma Citius, tendo sido essa a razão pela qual não se tomou conhecimento do seu teor nem se tomou posição sobre a proposta em apreço.
5 – Na verdade, só agora, após ser notificada da aceitação desta proposta de 25.600,00 €, é que o signatário se apercebeu de que algo de anormal se passava e procedeu à consulta do processo no Citius, onde constatou a existência da referida notificação.
6 – Salienta-se que o signatário só juntou procuração aos autos em 06/10/2015, pelo que só a partir daí passou a estar associado ao processo e a ter acesso à sua consulta informática.”.
7. No dia 27.11.2015, o AE emitiu título de transmissão a favor da proponente.
8. No dia 30.11.2015, o AE notificou a BB da decisão de indeferimento do requerimento a que se alude em 6. (notificação que se deve considerar efetuada em 03.12.2015).
9. A aquisição do bem penhorado está inscrita no registo predial a favor da proponente.
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A BB requereu que seja dada sem efeito a decisão da venda de 16.11.2016, ou seja, a anulação do ato consubstanciado na decisão da venda do AE. Dessa anulação, tempestivamente arguida, resultará necessariamente a anulação da própria venda, entretanto concretizada, nos termos dos arts. 149º, n.º 1, 195º, nº.s 1 e 2, 199º, n.º 1, e 839º, n.º 1, c) do NCPC.
Resulta dos autos que o AE, depois de notificadas as partes e a credora reclamante do conteúdo da proposta, deu conhecimento à BB da decisão de proceder à venda através de notificação de 16.11.2015, e que a BB, dentro do prazo de 10 dias subsequentes à notificação de tal decisão, requereu ao AE que desse sem efeito a decisão de aceitação da proposta de 25.600 €, bem como que os autos ficassem a aguardar, pelo prazo de 30 dias, a apresentação pela própria BB de uma proposta de valor superior, explicando o motivo pelo qual não se tinha pronunciado aquando da notificação de 24.09.2015.
Decorre também dos autos que, não obstante este requerimento apresentado pela BB, o AE emitiu o título de transmissão ainda antes de concluído o prazo de 10 dias subsequente à notificação da decisão de venda, procedendo posteriormente à notificação da decisão de indeferimento de tal requerimento.
Ponderando sobre o circunstancialismo descrito, cremos bem que o AE, ao proceder como procedeu, além de impedir que o tribunal apreciasse a questão suscitada no requerimento da BB, tomou uma decisão para a qual não tinha competência, nomeadamente ao decidir realizar uma venda sem requerer previamente a autorização do tribunal, em conformidade com o disposto na alínea d) do n.º 1 do art. 723º do NCPC, uma vez que a proposta em causa era de montante (muito) inferior ao valor anunciado e, como tal, carecia de autorização judicial – neste sentido, veja-se o ac. da RE, de 15.01.2015, proc. 4970/09.5TBSTB-B.E1, de que nos permitimos citar o sumário (elaborado pela relatora, a Exma. Sr.ª Desembargadora Alexandra Moura Santos): “Frustrando-se a venda por propostas em carta fechada por ausência de propostas, a venda por negociação particular pode ser efectuada por valor inferior a 85% a que se refere o artº 816º nº 2 do CPC, mediante autorização judicial com vista a garantir a defesa dos interesses de todos os interessados, designadamente dos executados e demais credores.”.
Prescreve o art. 195º, n.º 1 do referido diploma legal que a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa. O n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente.
No caso dos autos, foi omitida a prática de um ato que a lei prescreve (a obtenção de autorização do tribunal para a realização da venda, a conceder ao abrigo do preceituado na alínea d) do n.º 1 do art. 723º), e em consequência disso praticado um ato que a lei não admite, sendo que a irregularidade cometida teve a virtualidade de influir no exame ou decisão da causa.
Assim, a coberto dos nºs. 1 e 2 do art. 195º, conjugados com a alínea c) do n.º 1 do art. 839º do NCPC, deve ser anulado o ato de decisão da venda, bem como todos os atos subsequentes, incluindo a própria venda, o que implicará a devolução à proponente do montante pago para aquisição do imóvel, bem como o cancelamento do registo do bem a favor da proponente (cf. arts. 8º e 13º do Cód. do Registo Predial).
O AE será condenado pelas custas do incidente anómalo a que deu causa, nos termos do art. 7º, n.º 4 do RCP.
Por tudo quanto vem de ser exposto, decide-se anular o ato de decisão da venda, de 16.11.2015, bem como todos os atos subsequentes, incluindo a própria venda.
Determina-se que o AE proceda ao cancelamento do registo do bem a favor da proponente, bem como à devolução do montante por esta pago para aquisição do imóvel.
Custas do incidente pelo AE, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UC».

4. Para uma melhor compreensão da tramitação processual relevante para a decisão dos presentes recursos, a ora Relatora determinou fosse solicitado o seguimento electrónico do processo principal.

5. Por não se alcançar do processo eletrónico, e ser eventualmente relevante, foi ainda determinada a notificação:
1. da credora reclamante BB para juntar aos presentes autos de recurso em separado documento comprovativo da data em que o Ilustre Advogado Dr. … se aposentou;
2. do Senhor Agente de Execução para informar nos autos qual a posição assumida pelos notificados relativamente à proposta de aquisição do imóvel pelo valor de 26.000,00€, apresentada em 11.09.2014.

6. Em resposta:
1. A credora reclamante informou que o Dr. … passou à situação de aposentado em 1 de Janeiro de 2015;
2. O Senhor Agente de Execução informou que:
«a) devido à posição assumida pelo credor reclamante, de não aceitar a presente proposta, e não se tendo pronunciado a exequente, o aqui signatário decidiu não aceitar a proposta apresentada por terceiro em 11.09.2014, face à oposição expressa do credor reclamante, ficando os autos a aguardar por outras propostas;
b) sucede que decorrido mais de um ano, só em 24.09.2015 vem a ser apresentada nova proposta, ainda que de valor ligeiramente mais baixo, no montante de 25.600,00 euros;
c) o que face ao tempo decorrido, à depreciação natural do imóvel e do seu estado e ainda do estado da economia no país onde era por demais evidente a depreciação imobiliária na altura, o aqui signatário voltou a considerar esta nova proposta e a submetê-la às partes e à consideração do credor reclamante;
d) desta feita não tendo obtido resposta, nem nada dizendo;
e) razão pela qual se aceitou e foi considerada tendo sido emitido o respectivo título de transmissão a 27.11.2015».

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

8. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, salvo as que fiquem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, vistos os autos, cumpre apreciar, pela sua ordem lógica: i) da (in)existência de omissão por parte do Senhor Agente de Execução[5] de um acto prescrito por lei; ii) da (in)admissibilidade da condenação do AE em custas.
*****
III – Fundamentos
III.1. – De facto:
A tramitação processual relevante é a que decorre do relatório supra, mormente a já considerada na decisão recorrida, extraindo-se ainda do processo executivo[6] que:
A. A acção executiva teve início com o requerimento apresentado em 13.12.2011, pelo exequente DD, S.A., contra os executados EE e FF, constando do auto de penhora da fracção autónoma cuja venda se encontra em causa, datado de 22.02.2012, que foi designado AE AA, sendo a dívida exequenda de 8.260,51€ e as despesas prováveis de 1.568,13€, no total de 9.828,64€.
B. A BB apresentou-se a reclamar o respectivo crédito garantido por hipoteca, tendo sido proferida sentença de graduação de créditos em 09.11.2012, na qual este crédito foi graduado em 1.º lugar, sendo o capital de 62.140,23€, e os juros devidos com o limite imposto pelo artigo 693.º, n.º 2, do CC; e em segundo lugar foi graduado o crédito exequendo.
C. No auto de abertura de propostas em carta fechada, o Senhor Juiz proferiu o seguinte despacho: «Verificando-se a inexistência de propostas apresentadas, determino a venda do imóvel por negociação particular, nos termos dos artigos 822.º n.º 2 alínea e) e 832.º alínea d), ambos do CPC. Face ao disposto no artigo 833.º do CPC notifique as partes para em 10 dias virem aos autos informar se estão de acordo ou se se opõem à realização da venda pelo solicitador de execução AA, com a advertência que nada dizendo, ficará aquele encarregue da realização da mesma».
D. Nesse mesmo dia 12.11.2013 o AE procedeu à notificação de exequente, executados e credora reclamante, informando que designaria firma especializada para a realização da venda, nada tendo sido oposto nem à nomeação nem à designação de firma.
E. Em 28.11.2013, o AE procedeu à notificação, para o que ora importa, do Ilustre mandatário da credora reclamante, juntando relatório circunstanciado sobre o estado da venda do imóvel penhorado nos autos, por negociação particular, onde para além do mais se refere que «o valor de venda está desfasado do valor de mercado».
F. Em 05.06.2014 o AE informou os autos que «o encarregado de venda tem diligenciado na obtenção de propostas, tem existido contactos telefónicos por parte dos interessados. Houve uma visita ao imóvel e o proponente não demonstrou interesse em apresentar propostas».
G. Em 22.08.2014 o AE notificou, para além dos demais, a credora reclamante, que «nos termos da prossecução pela venda por negociação particular (artº 832 e seguintes do CPC) foi recebida a proposta que se junta para seu conhecimento. Nos termos da Lei decorrente da venda, fica V.Exa notificado por este meio do conteúdo da mesma, pelo que dispõe do prazo de 10 dias, para, querendo, se pronunciar, com a cominação de nada dizendo considera-se o seu acordo por prestado».
H. O valor da oferta foi de 23.500,00€, justificada designadamente por estar inserida num bairro social; a traseira ser ao nível de um r/c alto, de fácil acesso; as infraestruturas precisarem de renovação completa; todo o apartamento estar em muito mau estado e precisar de ser completamente renovado.
I. Em 26.08.2014 a credora reclamante pronunciou-se referindo «que considera baixo o valor da proposta de € 23 500,00 recebida pela encarregada da venda, pelo que irá estudar a apresentação de uma proposta superior para ultrapassar o impasse da venda».
J. Em 11.09.2014, com disponibilização no Citius em 23.01.2015[7], o AE procedeu à notificação nos termos referidos em G. de uma nova proposta, desta feita de 26.000,00€, nada tendo sido respondido. Não obstante, pelas razões referidas no ponto 6. do Relatório, decidiu não aceitar tal proposta, essencialmente em face da posição anteriormente assumida pela credora reclamante.
K. Em 25.09.2015 foi disponibilizada no Citius a notificação referida pelo Senhor Juiz no ponto 3. da decisão recorrida, igualmente remetida para Exequente e Executados, apenas tendo respondido o exequente, por e-mail datado de 12.10.2015, informando «nada ter a opor à proposta apresentada por terceiro».
L. Em 17.11.2015 foi disponibilizada no Citius a comunicação ao Tribunal da Decisão do AE, com o seguinte teor: «AA, agente de execução no processo supra referenciado, vem informar que tendo prosseguido a venda do imóvel por negociação particular e um terceiro ter apresentado a melhor oferta no valor de € 25.600,00, (vinte e cinco mil e seiscentos euros), que decide o seguinte:
Uma vez ouvidas as partes processuais sobre a proposta vertente sem que à mesma tenham aposto qualquer reserva, nem tendo indicado comprador para o bem por valor superior ao indicado na proposta, nada obsta à venda, sob pena de paralisação da execução.
Em face do exposto, em face do silêncio dos executados, (notificados com a cominação de, nada dizendo, se ter por aceite a proposta) e na medida que a exequente DD, SA nada tem a opor ao valor da proposta, o ora signatário decide aceitar a proposta apresentada, no valor de € 25.600,00, (vinte e cinco mil e seiscentos euros), para aquisição do imóvel prédio urbano sito em (…),
com valor patrimonial € 43.950,00 (quarenta e três mil novecentos e cinquenta euros e trinta e seis cêntimos) determinado no ano de 2012, pelo que vai proceder à sua transmissão».
M. A proponente pagou o valor do indicado preço para aquisição do imóvel e ainda 250,00€ correspondente ao valor do registo na CRP a seu favor, em 25.11.2015, na sequência da guia que para o efeito lhe foi remetida em 16.11.2015 pelo AE, acompanhando a notificação da adjudicação do imóvel a seu favor.
N. Na reclamação apresentada em 14.12.2015 para o Senhor Juiz, a credora reclamante aduziu que «sendo certo que o seu anterior mandatário foi notificado da apresentação da proposta de 25.600,00€ e que nada foi dito em contrário dentro do prazo de 10 dias, a verdade é que a reclamante, ao ser notificada em 16.11.2015, da “Decisão do Agente de Execução”, veio declarar em 25.11.2015, antes desta decisão se tornar definitiva, que não aceitava este valor e que estava disposta a suplantá-lo substancialmente», afirmando mais adiante estar «disposta a pagar, próximo dos 35.000,00€», nenhum outro vício assacando à decisão do AE, designadamente o de a venda por valor inferior não ter sido precedida de autorização judicial para o efeito ou a de não ter sido previamente fixado outro valor para a venda por negociação particular.
*****
III.2. - O mérito do recurso
Insurgem-se ambos os Recorrentes contra o facto de o Senhor Juiz ter considerado que o Senhor Agente de Execução carecia de autorização do tribunal para realizar a venda do imóvel penhorado por um valor substancialmente mais baixo do que aquele que tinha sido anunciado, entendendo, no fundo, que a compra e venda do imóvel efectuada por negociação particular, pelo AE à interessada, por valor inferior ao mínimo estabelecido aquando da venda por propostas em carta fechada, é válida, por não carecer de autorização do tribunal e não ter havido oposição dos interessados, no prazo assinalado na notificação, para se pronunciarem sobre a mesma.
Apreciemos.
Conforme decorre da tramitação processual acima descrita, sendo o bem penhorado um imóvel, as diligências tendentes à respectiva venda tiveram início na modalidade de venda por propostas em carta fechada, de harmonia com o então disposto no artigo 889.º, n.º 1, do CPC, tendo sido designado dia para a abertura de propostas para a venda do imóvel penhorado, pelo valor base de 101.142,86€, correspondente a um valor mínimo a anunciar de 70.800,00€ (70%), ex vi do então preceituado no artigo 889.º, n.º 2, do CPC, a publicitar pelo agente de execução com a antecedência de 10 dias (artigo 890.º, n.º 1, do CPC).
AMÂNCIO FERREIRA[8], lembra que «[p]or meio da publicidade pretende-se que a venda seja o mais rendosa possível, mediante a maior concorrência praticável na apresentação de propostas, em vista à adjudicação dos bens pelo preço mais elevado que se possa obter».
A venda do imóvel penhorado frustrou-se na indicada modalidade, por ausência de proponentes, e consequentemente o Senhor Juiz determinou a venda por negociação particular, nomeando para o efeito o Senhor AE, conforme espelha o auto de abertura de propostas que registou a diligência que teve lugar no dia 12.11.2013.
As diligências para a venda foram deferidas a empresa especializada, através da qual foram apresentadas 3 propostas: em 05.06.2014, no valor de 23.500,00€; em 11.09.2014, no valor de 26.000,00€; e em 24.09.2015, no valor de 25.600,00€.
Todas as propostas foram oportunamente notificadas pelo AE aos interessados, apenas a credora reclamante se tendo oposto à primeira proposta apresentada, cujo valor considerou baixo, e referindo que «irá estudar a apresentação de uma proposta superior para ultrapassar o impasse da venda».
A credora reclamante não apresentou qualquer proposta e não se pronunciou quanto às posteriormente apresentadas, no prazo assinalado na notificação.
Apesar do seu silêncio, o AE decidiu não aceitar a proposta de valor mais elevado das 3 recebidas, em face da posição que a credora reclamante manifestara quanto à primeira proposta apresentada. Porém, volvido cerca de um ano, decidiu aceitar a última proposta apresentada de valor inferior à segunda, com o fundamento de que «ouvidas as partes processuais sobre a proposta vertente sem que à mesma tenham aposto qualquer reserva, nem tendo sido indicado comprador para o bem por valor superior ao indicado na proposta, nada obsta à venda, sob pena de paralisação da execução».
A primeira questão que se coloca é a de saber se a venda por negociação particular de imóvel relativamente ao qual se frustrou a tentativa de venda pela forma mais solene, pode vir a ser efectuada por valor inferior ao valor base do bem objecto de publicidade na venda por propostas em carta fechada ou se está limitada àquele valor mínimo então estabelecido em 70% e que o legislador de 2013 aumentou para 85%?
A resposta a esta questão tem sido, segundo cremos, pacífica, no sentido de se considerar que gorada a tentativa de venda do imóvel penhorado por propostas em carta fechada, por ausência de propostas para o efeito, e determinando-se nessa sequência a venda por negociação particular, já não é aplicável a observância do indicado valor mínimo[9].
Porém, persiste a obrigação de ser fixado um valor base para a venda, salvo se houver acordo de todos os interessados.
Conforme refere DELGADO CARVALHO[10], não podemos olvidar que «A fixação do valor base dos bens a vender é, em princípio, obrigatória em qualquer modalidade da venda em processo de execução. (…) Com efeito, o art. 812.º do nCPC, que regula a determinação da modalidade de venda e do valor base dos bens, insere-se nas disposições gerais sobre a venda forçada, aplicando-se, por isso, a todas as modalidades de venda, excetuada a venda direta (cf. art. 831.º do nCPC), em virtude da posição jurídica substantiva do sujeito a quem os bens são vendidos.
Da regra sobre a obrigatoriedade de fixação do valor base dos bens também se excetuam os casos de acordo unânime entre o executado e os credores previstos no art. 832.º, al. a) e b), do nCPC, respeitante à venda por negociação particular. (…)
Isto significa que a falta de fixação do valor base dos bens a vender tem como consequência uma nulidade processual, pois a omissão da decisão com esse objetivo tem influência decisiva no preço da proposta aceite, com vista a satisfazer simultaneamente os interesses do exequente e do executado. Esta nulidade processual fica sujeita ao regime das nulidades secundárias, de acordo com o regime previsto nos art. 195.º, 196.º, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3, 201.º e 202.º do nCPC. Regra geral, quando julgada procedente, essa nulidade implica a anulação de todos os atos do processo de execução posteriores à omissão da decisão com a finalidade de fixar o valor base dos bens, mesmo que a nulidade seja invocada depois da venda, da adjudicação ou da remição. No entanto, o tribunal não pode conhecer desta nulidade oficiosamente, mas apenas mediante reclamação das partes, sendo o prazo da arguição o prazo geral previsto no art. 149.º, n.º 1, do nCPC».
Revertendo estas considerações para o caso em apreço, podemos concluir que, não podendo ser oficiosamente conhecida a questão da omissão de despacho a fixar o valor base do bem imóvel, e não tendo a mesma sido invocada pela credora reclamante, ainda que se considere existir esta omissão, ela não pode fundamentar a anulação da venda.
Prosseguindo, importa agora analisar se a venda por valor inferior ao preço base inicialmente estabelecido carece necessariamente da autorização do tribunal.
A este respeito refere ainda o citado Autor que «[u]ma outra consequência jurídico-processual da decisão sobre a determinação do valor base dos bens é a de que, uma vez fixado, este valor só pode ser reduzido quando a lei o permita ou mediante decisão judicial.
Por outras palavras, assim que o agente de execução determina qual o valor base dos bens a vender, sobre este valor aquele agente perde a faculdade de o reduzir, mesmo que o executado, quanto a isso, não se oponha. Disto decorre que, se o agente de execução realizar a venda por um preço inferior ao valor base, fora dos casos em que a lei o permitir e sem intervenção do juiz de execução, a decisão judicial que recair sobre a impugnação daquele ato do agente de execução é suscetível de recurso»[11].
Afigura-se-nos ter sido este entendimento que esteve subjacente à decisão recorrida, e tem sido sufragado por alguns arestos dos tribunais superiores, desde logo, aquele citado na decisão recorrida, e os dois primeiros por nós referidos na nota 9.
Ora, para se concluir sobre se a venda naquelas condições carece ou não de prévia autorização judicial, mister é olharmos para as competências funcionais que se encontram legalmente atribuídas ao juiz e ao agente de execução, cabendo lembrar que com a reforma da codificação processual civil em 2013 o legislador procedeu a uma redistribuição das competências entre o juiz, o agente de execução e a secretaria, nos termos indicados nos artigos 719.º a 723.º do CPC, aquele primeiro precisamente com a epígrafe repartição de competências.
Vejamos, então, em que termos se encontram repartidas tais competências.
A respeito da tipicidade e carácter residual das competências do juiz no âmbito do processo executivo, ensina RUI PINTO[12], que «[m]esmo após a Reforma de 2013 em matéria de procedimento executivo o juiz da causa terá competência de modo tipificado: sempre mediante “intervenções que a lei especificamente lhe atribui”, lê-se no art. 723.º.
Em concreto, tal como até agora, é restrito e típico o âmbito dos actos executivos propriu senso reservados ao juiz da causa. Por ex.: proferir despacho liminar (cf. art. 723.º, n.º 1 al. a)); autorizar o uso da força pública (cf. art. 757.º, n.º 4 CPC/2013); presidir à sessão de abertura das propostas de compra em carta fechada (cf. art. 820.º, n.º 1 CPC/2013); entre outros.
Trata-se de uma competência residual no procedimento executivo.
Portanto, com LOPES DO REGO, deve afirmar-se que “não pertencem ao juiz ¯ mas, em regra, ao agente executivo ¯ quaisquer competências que lhe não estejam expressa ou especificadamente reservadas”(12)[13]. A actuação do tribunal é, assim, excepcional.
Na verdade, fica reservado ao juiz de execução o exercício da função jurisdicional, decidindo as questões em que exista um litígio de pretensões e mediante um pedido expresso de intervenção.
Em suma: o actual juiz de execução é um juiz de garantias de direitos(13)[14]».
Assim, não sofre dúvidas que, à semelhança do que ocorria anteriormente, «a título principal ou provocado o juiz deve julgar os requerimentos de reclamação dos actos executivos e decisórios do agente de execução (cf. art. 809.º, n.º 1, al. c) de antes de 2013), apreciando, precisamente, a legalidade desses actos», conforme actualmente dispõe o artigo 723.º, n.º 1, alínea c), do CPC reformado, devendo igualmente decidir, de harmonia com o preceituado na alínea d) deste indicado preceito, outras questões levantadas pelas partes, terceiros intervenientes ou pelo agente de execução.
Na referida repartição de competências, adverte o mesmo autor que, relativamente ao agente de execução, «com a Reforma de 2013 muitos dos atos decisórios revertem novamente para a esfera de competência judicial ou da secretaria», designadamente «o agente de execução perde competências para o juiz. O ponto comum é cumprir a garantia constitucional de reserva de jurisdição (cf. art. 202.º, n.º 2 CRP) com o consequente reforço das garantias do executado e do procedimento, em geral», referindo que assim sucedeu designadamente quanto à autorização de venda antecipada de bens (cf. art. 814.º, n.º 1, do CPC).
Volvendo à situação em apreço, e tendo presente este enquadramento verificamos que, ressalvada a situação de autorização quanto à venda antecipada de bens, a venda por negociação particular enquadra-se de pleno nas competências do AE e apenas carece de prévia autorização pelo tribunal se não houver acordo de todos os interessados para que a mesma tenha lugar por preço inferior ao anunciado.
Nas palavras de DELGADO CARVALHO «os casos em que a lei permite a venda por preço inferior ao valor base são a venda mediante propostas em carta fechada (cf. art. 816.º, n.º 2, do nCPC) e a adjudicação ao exequente ou a qualquer credor reclamante que tenha garantia real sobre os bens penhorados (cf. art. 799.º, n.º 3, do nCPC). Também se excetua o caso do acordo entre o executado e os credores previsto no art. 832.º, al. a) e b), do nCPC, respeitante à venda por negociação particular.
Isto significa que, nas demais situações da venda por negociação particular, bem como na venda efetuada segundo as outras modalidades, os bens penhorados só podem ser vendidos por preço igual ou superior ao valor base fixado na decisão sobre a venda (art. 812.º do nCPC), exceto se existir acordo de todos os interessados ou quando a redução do preço for autorizada por decisão judicial.
Dito de outra forma: inexistindo esse acordo entre todos os interessados, só é possível vender o bem por preço inferior ao valor base mediante autorização judicial».
Esta alternativa - quanto à necessidade de existência de acordo entre todos os interessados ou autorização judicial para a venda dos bens penhorados por valor inferior -, foi igualmente sublinhada no já citado Acórdão do TRL de 05.03.2015, «por assim ser é que o aporte doutrinal carreado por estas decisões judiciais aponta, com acerto, a disjuntiva «ou» – Como refere LEBRE DE FREITAS, “se o valor base não for atingido, só por acordo de todos os interessados ou autorização judicial será possível a venda por preço inferior. Embora a lei nada diga, releva do poder jurisdicional a decisão de dispor do bem penhorado, pertença do executado e garantia dos credores, mediante a obtenção de um preço inferior àquele que, de acordo com o resultado das diligências efectuadas pelo agente da execução corresponde ao valor de mercado do bem; nem faria sentido que, quando o agente da execução é encarregado da venda (...) lhe coubesse baixar o valor-base dos bens, com fundamento na dificuldade em o atingir. O juiz conserva, pois, o poder (...) de autorizar a venda por preço inferior ao valor base”. - “Código de Processo Civil Anotado”, 3º pág. 602.
Havendo aquele acordo, a intervenção do juiz seria exclusivamente confirmativa e já não de vera autorização».
Concluindo, a venda por negociação particular dos bens penhorados pode ser validamente efectuada por valor inferior ao valor base do bem desde que: i) haja acordo de todos os interessados; ou ii) caso tal não ocorra, exista um despacho judicial que pondere as circunstâncias pelas quais apenas foi obtido um valor inferior ao inicialmente fixado, e decida se, em face das mesmas, é de autorizar a venda pelo valor proposto, assim assegurando a defesa de todos os interesses em presença.
Ora, no caso em apreço, pese embora não tenha existido qualquer requerimento do AE a solicitar a autorização do tribunal para efectuar a venda por um preço muito abaixo do valor base, o certo é que existiu uma comunicação dos termos da venda ao tribunal e, essencialmente, existiu um acordo tácito dos interessados quanto ao valor da proposta apresentada, sendo certo que tal acordo não tem que ser expresso nem simultâneo.
Aqui chegados, uma primeira nota se impõe relativamente à justificação apresentada pela credora reclamante nos pontos 3 a 5 do requerimento de 25.11.2015 - em que solicitou ao AE que desse sem efeito a decisão de aceitação da proposta de 25.600,00€ e que os autos ficassem a aguardar por 30 dias a apresentação pela BB de uma proposta de valor superior -, para só então se ter pronunciado, a qual seguramente não constitui, como parece ter ficado subentendido, uma espécie de “justo impedimento”.
Na verdade, desde logo por uma razão formal, porque tal alegação, a ser considerada como um justo impedimento, configuraria um incidente com tramitação própria, designadamente a referente à apresentação de prova do alegado, o que não foi efectuado e, só por isso, determinaria o seu indeferimento (artigo 140.º, n.º 2, do CPC).
Depois porque, substancialmente, a razão aduzida sempre seria imputável à credora reclamante e não teria a virtualidade de configurar justo impedimento. Na verdade, as notificações foram efectuadas pelo AE para o mandatário indicado por aquela nos autos, o qual cessou funções, por se ter aposentado, no dia 31 de Dezembro de 2014.
Porém, só em 06.10.2015, decorridos mais de 10 meses sobre a aposentação do seu mandatário, totalmente desconhecida nos autos, a credora reclamante veio juntar procuração a novo mandatário requerendo que a partir daquela data as notificações fossem dirigidas ao mesmo.
Ora, basta pensar que, se exequente fosse, e os autos dependessem apenas do seu impulso, teriam decorridos os 6 meses de inacção negligente que o legislador veio “sancionar” com a deserção da instância.
Tudo para dizer que, quando a credora reclamante apresentou o indicado requerimento, há muito havia com o respectivo silêncio dado a sua aceitação tácita aos termos da alienação proposta pelo AE. Como assim, não podia, vários meses volvidos, vir «reabrir» a questão do valor da venda, porque a isso se opõem os princípios da segurança jurídica e da preclusão, sob pena de inaceitável incerteza relativamente à posição da adquirente que, neste caso, manifestamente se apresenta como um terceiro de boa-fé.
Acresce que - e fazendo nossas as considerações tecidas no citado Acórdão do TRL de 05.03.2015 -, sendo certo que o AE comunicou ao Tribunal a decisão de venda pelo preço que indicou, «no caso em apreço, o Tribunal optou por nada dizer, em tempo útil, face à informação do conteúdo da dita «decisão» do Sr. Agente de Execução. Tem que se entender que, desta forma, sufragou a alienação. Assim, foi seguramente, entendido pelos sujeitos e colaboradores processuais. Tendo o Tribunal sido destinatário da informação relativa ao conteúdo e intenção de alienação por negociação particular, tendo-se o mesmo remetido ao silêncio, (…) não teria qualquer sentido, violaria as legítimas expectativas criadas e desprotegeria a confiança dos cidadãos no sistema de Justiça admitir-se como aceitável a prolação, com total descolagem temporal e em contra-ciclo face às aparências criadas, da decisão impugnada».
Concluindo, havendo aceitação tácita dos termos da alienação por parte dos interessados, a venda do bem penhorado por valor inferior ao inicialmente fixado não carece de autorização do juiz, pelo que, não se verifica a existência de omissão de formalidade que influa na decisão da causa, subsumível ao disposto no artigo 195.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e, consequentemente, não se mostra preenchido o fundamento para anulação da venda a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 839.º da referida codificação.
Nestes termos, não existindo qualquer vício que possa ser apontado à venda do imóvel em causa a mesma deve manter-se, e consequentemente, sem necessidade de maiores considerações, procedem ambas as apelações, revogando-se a decisão recorrida.
*****
III.3. Síntese conclusiva:
I - A venda por negociação particular de imóvel penhorado pode ser validamente efectuada por valor inferior ao valor base do bem fixado para a venda por propostas em carta fechada, que se frustrou, desde que: i) haja acordo de todos os interessados; ou ii) caso tal não ocorra, exista um despacho judicial que pondere as circunstâncias pelas quais apenas foi obtido pelo encarregado da venda um valor inferior ao inicialmente fixado, e decida se, em face das mesmas, é de autorizar a venda pelo valor proposto, assim assegurando a defesa de todos os interesses em presença.
II - Tendo as notificações à credora reclamante sido efectuadas pelo AE para o mandatário indicado por aquela nos autos, o qual cessou funções, por se ter aposentado, não configura justo impedimento a situação em que, só decorridos mais de 10 meses sobre a aquele facto, totalmente desconhecido nos autos, aquela viesse juntar procuração a novo mandatário e, apenas posteriormente à notificação da decisão de venda, viesse manifestar a sua discordância quanto ao valor da mesma.
III - Por isso, quando a credora reclamante apresentou o indicado requerimento, há muito havia, com o respectivo silêncio, dado a sua aceitação tácita aos termos da alienação proposta pelo AE.
IV - Ora, no figurino do actual processo executivo, havendo acordo por parte dos interessados sobre o preço da alienação, ainda que tácito, a venda do bem penhorado por valor inferior ao inicialmente fixado não carece de autorização do juiz.
V - Assim, não se verifica a existência de omissão de formalidade que influa na decisão da causa, subsumível ao disposto no artigo 195.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e, consequentemente, não se mostra preenchido o fundamento para anulação da venda executiva a que alude a alínea c) do n.º 1 do artigo 839.º da referida codificação.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedentes os recursos de apelação, revogando integralmente a decisão recorrida.
Custas pela credora reclamante que ao incidente deu causa - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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Évora, 8 de Março de 2018
Albertina Pedroso [15]
Tomé Ramião
Francisco Xavier

__________________________________________________
[1] Juízo de Execução de Setúbal - Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Iniciando-se na terceira para evitar repetição nessa parte com as conclusões supra transcritas.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC, de onde serão os preceitos referidos sem outra menção, os quais serão referidos na redacção vigente à data da prática do acto em questão, consoante seja aplicável ao caso a anterior ou a redacção e numeração dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, de harmonia com o disposto no artigo 6.º do regime transitório constante da referida lei, que estabelece, em regra, a aplicação imediata a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor, à excepção das disposições relativas aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória (n.º 3) e as respeitantes aos procedimentos e incidentes de natureza declarativa (n.º 4).
[5] Doravante AE.
[6] De harmonia com o preceituado no artigo 607.º, n.º 4, aplicável aos acórdãos por via do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do CPC.
[7] Data a considerar quanto à notificação – cfr. o recente Acórdão deste mesmo colectivo de 08.02.2018, proferido no processo n.º 2002/15.3T8LLE-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, onde se encontram igualmente os demais acórdãos doravante citados sem outra menção de fonte.
[8] In Curso de Processo de Execução, 13.ª edição, Almedina 2010, págs. 372 e 373, remetendo em nota para ALBERTO DOS REIS.
[9] Cfr. neste sentido, a título exemplificativo, os Acórdãos do TRL de 6.11.2013, proferido no processo n.º 30888/09.3T2SNT.L1-8; de 25.09.2014, proferido no processo n.º 512/09.0TCSNT-A.L1-8; e de 05.03.2015, proferido no processo n.º 2259-10.6T2SNT.L1-6, este subscrito pelo ora 1.º adjunto ali como 2.º Adjunto.
[10] In AS RELAÇÕES ENTRE A VENDA EM LEILÃO ELETRÓNICO E AS RESTANTES MODALIDADES DE VENDA, págs. 1 a 3.
[11] A esta situação não é aplicável a alínea c) do n.º 1 do art. 723.º do nCPC, mas antes a alínea d) do mesmo preceito legal. A razão é a seguinte: sempre que o agente de execução tome decisões ou pratique atos em domínios da legalidade, tem de ser possível o recurso para uma instância superior da decisão do juiz de execução, sob pena de violação do princípio constitucional de acesso ao direito (cf. art. 20.º, n.º 1, da Constituição).
[12] In NOTAS BREVES SOBRE A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL EM MATÉRIA EXECUTIVA, disponível em http://www.oa.pt/upl/%7Ba2f818e3-1ef3-4c39-86b7-2e6cbd6e83ac%7D.pdf, págs. 71 a 74.
[13] Papel e Estatuto dos intervenientes no Processo Executivo, 2003, 10.
[14] “Juiz dos incidentes”, vista a questão no plano procedimental (TEIXEIRA DE SOUSA, A reforma da acção executiva, 2004, 19).
[15] Texto elaborado e revisto pela Relatora.