Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1073/13.1GBSSB.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: CRIME DE USURPAÇÃO
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
LICENÇA
PAGAMENTO
Data do Acordão: 03/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. O crime de usurpação, prevenido no artigo 195.º n.º 1, do CDADC, determina a punição de quem, sem autorização do autor ou do artista, utilizar obra ou prestação por qualquer das formas previstas no mesmo diploma, por razão de protecção da obra, criação intelectual e o complexo de direitos, morais e patrimoniais, do autor;
II. A execução pública de música gravada, sem o pertinente licenciamento, configura crime de usurpação, nos termos daquele artigo 195.º n.º 1, com referência ao disposto no artigo 184.º n.º 2 ou ao disposto no artigo 68.º n.º 2 alínea d), todos do CDADC, consoante se omita a licença de produtores ou de autores, respectivamente;
III. A autorização a que alude o artigo 184.º do CDADC está condicionada ao prévio pagamento de uma quantia monetária, pelo que só esse pagamento valida a licença;
IV. Em conformidade com a proposição anterior, verifica-se o elemento objectivo do ilícito em causa se tendo o arguido pedido licenciamento para utilização de fonogramas em 08-11-2013, apenas na tarde do dia 11-12-2013 efectuou o pagamento da correspondente tarifa, mas anteriormente, pela 01.40h desse dia 11-12-2013, procedeu à reprodução de fonogramas.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1073/13.1GBSSB.E1

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I
1 – Nos autos em referência, o Ministério Público formulou acusação contra o arguido, B…, imputando-lhe a prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de usurpação, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 68.º n.os 1 e 2 alínea b), 195.º n.º 1 e 197.º n.º 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril.

2 – Precedendo instrução, levada a requerimento do arguido, a Mm.ª Juiz de instrução, por despacho de 18 de Maio de 2015, decidiu não pronunciar o arguido pelo crime de que vinha acusado.

3 – A assistente, AUDIOGEST – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos, interpôs recurso do despacho de não pronúncia.
Pretende ver o arguido pronunciado.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
(…)

4 – O recurso foi admitido, por despacho de 26 de Junho de 2015.

5 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso.
Defende a confirmação do julgado.
Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
(…)

6 – Nesta instância, o Ex-mo Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o recurso merece provimento.
Pondera, em abono, designadamente:
«Dos documentos juntos a fls. 13,14, 90, 195.º vº e 293 parece resultar provado:
- que o arguido solicitou a licença para o período compreendido entre 8 de Novembro e 31 de Dezembbro de 2013;
- que o arguido apenas comprovou o pagamento de tal licença às 14 horas, 14 minutos e 23 segundos do dis 11 de Novembro de 2013 e que tal pagamento foi efectuado depois de aquele ter sido fiscalizado;
- que a licença deve considerar-se emitida justamente no momento indicado no ponto anterior;
- que tal licença é válida desde 11 até 31 de Dezembro de 2013.
[…] Com efeito, um dos pilares fundamentais desta decisão (e da resposta do Ministério Público na 1.ª instância) assenta na, a nosso ver, errada análise do documento de fls. 195. Na verdade e ao contrário do que aí é defendido a propósito da validade da licença, na área superior direita do documento consta claramente o seguinte: “Validade 11/12/2013 até 31/12/2013”.
Ou seja e dito de outra forma, parece-me ter-se confundido o período de tempo indicado no pedido (8/11/2013 a 31/12/2013) com a validade da licença emitida (11 a 31/12/2013). […]
Ou seja e ao contrário do que foi entendido pelo Mm.º Juiz a quo, parece-nos evidente que, para emitir o fonograma referenciado (e como acontece em qualquer licenciamento), o arguido teria que ter previamente obtido uma licença com data de validade anterior à pretendida emissão, o que, aliás, é do senso comum e por isso seria igualmente do conhecimento do arguido…
Ora, da prova existente nos autos parece resultar demonstrado que o arguido apenas diligenciou pelo pagamento da referida licença depois de (às 01,40h do dia 11 de Dezembro de 2013) ter sido sujeito a fiscalização.
Por outro lado, também é do senso comum que o facto de alguém requerer uma licença não conduz automaticamente e só por si, que a mesma lhe seja concedida e que esta concessão só deve considerar-se obtida depois de realizado o respectivo pagamento…»

7 – O objecto do recurso reporta a saber se resultam dos autos suficientes indícios da prática, pelo arguido, do crime de usurpação de que vinha acusado, a justificar a correspondente pronúncia.
II
8 – O despacho recorrido é do seguinte teor:
«O arguido B… encontra-se acusado da prática de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de um crime de usurpação previsto e punido pela conjugação dos artigos 68º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 195º, n.º 1 e 197º n.º 1 todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, aprovado pelo Decreto-Lei 63/85, de 14.03, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 16/2008, de 1 de Abril.
Não se conformando com o despacho de acusação o arguido requereu a abertura de instrução a fls. 199 e 199 v. alegando em síntese que:
O arguido pediu o licenciamento na PassMúsica em 08/11/2013, tendo sido indicado como essa data;
No dia 11 de Dezembro o arguido já era detentor do comprovativo mas não lhe havia sido enviada a licença facto de que deu conhecimento à GNR;
Nesse mesmo dia foi levantar a licença constando da mesma como período da mesma o compreendido entre os dias 08/11/2013 e 31/12/2013;
Concluiu requerendo a não pronúncia do arguido.
Não foram requeridos quaisquer actos de instrução.
Não se afigurando necessária a realização de outras diligências complementares em sede de instrução, realizou-se o debate instrutório, com observância do formalismo legal.
O Tribunal é competente não existem quaisquer nulidades ou questões prévias que cumprem conhecer e que não obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Factos suficientemente indiciados (com relevo para os autos):
1 - No dia 11 de Dezembro de 2013, pelas 1 hora e 40 minutos, elementos da Guarda Nacional Republicana da Quinta do Conde procederam a uma acção de fiscalização no interior do estabelecimento denominado “…”, sito na Rua … Quinta do Conde, à data explorado pelo arguido B….
2 - Nessa data, hora e local, o arguido procedia à reprodução pública, para seis clientes que se encontravam no interior do aludido estabelecimento, da faixa denominada “Destino” do CD da compilação “Besto of JÓIAS D´´AFRICA Kizomba”, através de uma aparelhagem de áudio composta por numa mesa de mistura da marca “Alecto”, modelo “pro-147”, um módulo de leitura para dois CD’s da marca “HQ POWER”, modelo “procd2000”, e duas colunas da marca “TALMUS”.
3 - O aludido CD da compilação “JÓIAS D´´AFRICA Kizomba”, que foi apreendido no local, continha fixadas as seguintes obras musicais:
(…)
4 - As obras musicais acima descritas encontravam-se protegidas nos termos do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.
5 - O arguido conhecia as características do aludido CD, que lhe pertencia e tinha-o no estabelecimento acima referido para exibição pública das obras aí gravadas através da aparelhagem sonora que possuía no estabelecimento.
6- O arguido em 08/11/2013 pediu o licenciamento na PassMúsica tendo indicado que o dia de abertura seria o esse mesmo dia.
7- A entidade referida em 6. é que emite as autorizações/licenças em representação de Produtores e artistas Musicais para Execução Publica de Fonogramas e/ou Vídeos Musicais.
8- No dia 11 de Dezembro foi emitida pela PassMúsica a autorização/Licença, junta a fls. 195 v., para o estabelecimento referido em 1., sendo a tarifa para o período de 08/11/201 a 31/12/2013.
9- Pelo que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1 arguido já era detentor do comprovativo mas não lhe tinha sido ainda enviada a licença, facto de que deu conhecimento à GNR.
10- Nesse mesmo dia o arguido dirigiu-se às instalações da entidade descrita em 7. e procedeu ao levantamento da referida licença.
Factos não suficientemente indicados (com relevo para os autos:
a)Naquela data, hora e local, o arguido não possuía qualquer licença ou autorização dos autores e produtores das referidas obras ou dos seus legítimos representantes, designadamente da “Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos”, que lhe permitisse proceder à execução pública dessas mesmas obras.
b) O arguido actuou bem sabendo que, sem ser titular de qualquer autorização dos autores, produtores e intérpretes das obras fixadas em tal CD, ou dos seus legais representantes, designadamente da “Audiogest – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos”, não podia, de forma lícita, executar publicamente tais obras no estabelecimento que explorava e, ainda assim, quis e logrou proceder à execução pública, para os clientes que se encontravam no seu estabelecimento, das obras acima referidas.
c) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

MOTIVAÇÃO:
O tribunal atendeu, em conjunto aos seguintes elementos probatórios existentes nos autos:
(…)

9 – O punto nodens da questão trazida no recurso respeita (em sede de suficiente indiciação), no plano da imputação objectiva, a saber se, no momento da reprodução pública do CD em referência, o arguido estava previamente licenciado para tal, e, ademais, agora no plano da imputação subjectiva, a saber se o arguido executou a reprodução do mesmo no seu estabelecimento comercial, querendo fazê-lo, sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
10 – Tais equações merecem resposta positiva.
11 – Como consta documentados nos autos e resulta da respectiva escritura de constituição, a PASSMÚSICA configura marca registada, em nome da assistente, AUDIOGEST – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos, em representação dos produtores, e da GDA – Cooperativa de Gestão dos Direitos dos Artistas, Intérpretes ou Executantes, em representação destes, para a gestão e cobrança dos direitos conexos, designadamente a cobrança dos direitos decorrentes da execução pública de música, bem como para promover e apoiar o combate à contrafacção e usurpação de fonogramas.
12 – A AUDIOGEST, como sucede com a sua congénere Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), representativa dos autores, persegue a defesa dos interesses patrimoniais e não patrimoniais dos produtores de fonogramas – cfr. fls. 38-56.
13 – O licenciamento, de par com a cobrança, relativos aos direitos dos produtores, artistas, intérpretes e executantes decorrem, maxime, do disposto no artigo 184.º n.os 2 e 3, do CDADC, epigrafado de «autorização do produtor», onde se determina:
«2 – Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.
3 – Quando um fonograma ou fonograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.»
14 – O licenciamento e cobrança dos direitos dos autores, junto e pela SPA, não dispensa, em caso de utilização, directa ou indirecta de fonogramas, vale dizer, música gravada, o licenciamento e a cobrança dos direitos conexos junto de produtores, artistas, intérpretes e executantes, nos termos prevenidos nos artigos 184.º n.os 2 e 3 e 177.º, do CDADC.
15 – A difusão pública, em legalidade, de música gravada carece de licenciamento prévio de autores (SPA), conforme disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 68.º, do CDADC, e, de par, do licenciamento prévio por parte dos produtores e artistas (PASSMÚSICA), nos termos prevenidos no citado artigo 184.º n.os 2 e 3, do mesmo Código.
16 – A licença PASSMÚSICA para estabelecimentos comerciais é requerida por via do preenchimento de formulário apresentado aos respectivos serviços, que emitem um aviso de pagamento e, liquidado este, emitem a consequente licença.
17 – O crime de usurpação, prevenido no artigo 195.º n.º 1, do CDADC, determina a punição de quem, sem autorização do autor ou do artista, utilizar obra ou prestação por qualquer das formas previstas no mesmo diploma, por razão de protecção da obra, criação intelectual e o complexo de direitos, morais e patrimoniais, do autor.
18 – A execução pública de música gravada, sem o pertinente licenciamento, configura crime de usurpação, nos termos daquele artigo 195.º n.º 1, com referência ao disposto no artigo 184.º n.º 2 ou ao disposto no artigo 68.º n.º 2 alínea d), todos do CDADC, consoante se omita a licença de produtores ou de autores, respectivamente.
19 – Como resulta, incontornavelmente, do teor dos documentos juntos aos autos (designadamente a fls. 3-16 e 195), (i) o arguido pediu o licenciamento para utilização de fonogramas, por requerimento apresentado à PASSMÚSICA a 8 de Novembro de 2013, (ii) que veio a conceder tal licenciamento com «validade de 11/12/2013 até 31/12/2013», (iii) tendo o arguido procedido ao pagamento da correspondente tarifa, para o período de 8 de Novembro a 31 de Dezembro de 2013, na tarde do 11 de Dezembro de 2013 (documentos de fls. 13-15), sendo que (iv) pelas 1:40 horas do mesmo dia 11 de Dezembro, no seu estabelecimento de bar, o arguido procedia à reprodução pública, para clientes, da faixa DESTINO do CD BEST OF JÓIAS D’ÁFRICA KIZOMBA, protegidas nos termos do CDADC.
20 – Ora, no caso, ainda que o arguido tenha requerido a licença antes da reprodução do fonograma, só posteriormente a este procedeu ao pagamento que supõe o licenciamento, por isso que o tipo objectivo do ilícito em referência não pode deixar de ter-se (no plano indiciário) como perfectibilizado.
21 – Como se ressalta no acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 03/19/2013 (Processo 200/11.8GBSTC.E1, disponível, como os mais citandos sem menção de origem, em www.dgsi.pt),
«[…] se aquela autorização, que é elemento expresso no tipo, está condicionada ao prévio pagamento de uma quantia monetária, remuneração que traduzirá o direito autoral patrimonial, a cobrança desse direito (gerida pela assistente), representa pura contrapartida da autorização para utilização da obra intelectual.
Dizendo de outro modo, o pagamento valida a licença, a licença incorpora a autorização, o pagamento equivale à autorização, o pagamento (para o efeito que interessa aqui) é a autorização.
Do que se trata é de garantir a remuneração do autor. […]»
22 – E assim também, o tipo subjectivo do ilícito, decorrente de uma conduta dolosa, pelo menos, negligente, e punível enquanto tal, nos termos prevenidos no artigo 197.º n.os 1 e 2, do CDADC, pois que, indiciariamente, se não verifica qualquer circunstância excludente da ilicitude ou da culpa.
23 – Vejam-se ainda, a respeito e com particular interesse, Alberto de Sá e Mello, «Manual de Direito de Autor», Almedina, 2014, pp. 227 e segs., José Branco, em anotação ao artigo 195.º, do CDADC, no «Comentário das Leis Penais Extravagantes», Volume 2, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 247 e segs., bem como os acórdãos, do Tribunal Constitucional n.º 577/2011, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/10/2015 (processo 35/12), de 02/19/2014 (processo 366/10) e de 03/30/2011 (processo 1788/04), do Tribunal da Relação do Porto, de 09/19/2012 (processo 131/11), e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/22/2011 (processo 147/04).
24 – Nestes termos, o recurso interposto pela assistente deve proceder e, em decorrência, sem desdouro para a sensibilidade traduzida seja no douto despacho recorrido seja na douta resposta ao recurso, o arguido não pode deixar de ser pronunciado, nos termos formulados na acusação pública.
25 – Não cabe tributação – artigo 92.º, do RGCO, e artigos 513.º e segs., do CPP.
III
26 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pela assistente, AUDIOGEST – Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos, revogando-se o despacho de não pronúncia, recorrido, que deverá ser substituído por outro, que pronuncie o arguido nos termos da acusação de fls. 177-180 dos autos.

Évora, 29 de Março de 2016
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)