Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
248/15.3T8FAR.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
PROPRIEDADE PRIVADA
ZONA URBANA CONSOLIDADA
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A Lei das Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei 54/2005 de 15/11) no seu artigo 15º que versa sobre o reconhecimento de direito adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos, contempla os casos excecionais em que terrenos já pertencentes à propriedade dos particulares antes de 31 de Dezembro de 1864, ou se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de1868, podem ser reconhecidos como propriedade privada, através da sujeição ao regime de prova específico.
2 - No entanto, sem sujeição às regras probatórias específicas poderá a propriedade privada ser reconhecida, designadamente sobre terrenos estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
3 - O que releva para a subsunção ao conceito de zona urbana consolidada são as características urbanísticas, física e materialmente existentes no local e não uma classificação dos solos constante do PDM.
4 - O regime excecional de reconhecimento da propriedade privada é aplicável aos prédios situados em zonas urbanas consolidadas e não apenas às partes dos prédios onde se encontra assente a edificação anterior a 1951.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

AA-Imobiliária, SA, intentou ação com processo comum, que corre termos no Tribunal Judicial de Faro (Faro - Instância Central - 1ª Secção Cível - J2), contra o Estado Português, alegando factos que, em seu entender, são tendentes a peticionar, ao abrigo do artº 15º da Lei 04/2005 de 15/11, o reconhecimento do direito de propriedade sobre três prédios urbanos que enumera e que são objeto da presente ação.

O réu contestou, pondo em causa o direito da autora e após produção de prova, veio a ser proferida sentença cujo dispositivo reza:
Em face do exposto, julga-se procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, decide-se reconhecer a Autora AA-Imobiliária, SA como titular do direito de propriedade privada sobre as parcelas de margens de águas navegáveis ou flutuáveis dos prédios sitos em ..., Vila da Fuzeta, fazendo parte atualmente da União de Freguesias de Moncarapacho e Fuzeta, descritos na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob os números .../20121030 - lote 1-, .../20121030¬ lote 2 - e .../20121030 - lote 3, inscritos na matriz respetivamente sob os artigos ..., ... e ..., desde o limite sul da construção (que corresponde à parede da cave que se vê no lado direito da foto 4 de fls. 292), até à zona atingida pela água na maré alta, nos termos constantes do levantamento topográfico de fls. 260, nos termos e para os efeitos do disposto artigo 15º, n.º 6, al. c) da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, na redação introduzida pela Lei 34/2014, de 19 de Junho.”
*
Inconformado, veio o réu interpor o presente recurso de apelação, apresentando as respetivas alegações e terminando por formular as seguintes conclusões, que se passam a transcrever:
a) o disposto na alínea c) do n.º5 do art. 15º da Lei 54/2005, introduzido pela Lei 34/2014, constitui uma alteração profunda e inovadora ás anteriores exigências de prova para reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos;
b) essa alteração, tendo em consideração a existência de povoações antigas situadas junto ao mar, rios e lagos, visou facilitar a dita prova nos casos em que havia edificações antigas em zonas urbanas já estabelecidas e reconhecidas;
c) o preceito supra citado não pode permitir, face ao progressivo crescimento das zonas urbanas para áreas que antes não tinham essa natureza, que indefinidamente se considerem integradas em zona urbana as construções anteriores a 1951 e como tal se justifique a aplicação do regime (facilitado) de prova que prevê;
d) a determinação dos terrenos que se encontrem em “zona urbana consolidada” tem que ser feita através do que resulta do PDM da área em causa;
e) na situação em apreço resulta do PDM de Olhão que os prédios/terrenos em causa não estão integrados em “zona urbana consolidada”;
f) considerando que não é do PDM que resulta que os prédios/terrenos em causa estão ou não integrados em “zona urbana consolidada”, entendendo que estão efetivamente integrados em zona com essa natureza e decidindo em conformidade, a sentença interpretou erradamente e violou a norma citada;
g) por outro lado, a mesma norma só permite que seja reconhecida a propriedade privada dos “terrenos ocupados por construção” anterior a 1951, estando aquele reconhecimento quanto aos restantes terrenos – não ocupados pela construção – sujeito às exigências de prova do nº: 2 (3 e 4) do mesmo art.º 15º;
h) entendendo que, ao abrigo da citada alínea c) do n.º 5 do art. 15º, todos os terrenos dos lotes/prédios em causa podem ser reconhecidos como propriedade privada – para além do terreno que concretamente tinha sido ocupado pela construção – e decidindo em conformidade, a sentença interpretou erradamente e violou aquela norma;
i) consequentemente, não tendo a A. feito a prova exigida pela alínea c) do n.º 5 do art.º 15º da Lei 54/2005 – nem outra exigida por esta norma – não pode ser procedente o seu pedido e a sentença deve ser alterada, absolvendo-se o réu do pedido.
*
A autora veio contra alegar, pugnando pela manutenção do julgado.
Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, resulta das conclusões que a questão nuclear em apreciação consiste em saber se na sentença impugnada se fez uma errada interpretação do disposto no art.º15º n.º 5 al. c) da Lei 54/2005, como defende o recorrente, ao considerar que os lotes em causa se situam em zona urbana consolidada e em reconhecer como propriedade privada terreno que não estava, no seu todo, ocupado com construção anterior a 1951.
*
Na sentença recorrida foi considerado como provado o seguinte quadro factual:
1) A Autora AA-Imobiliária, SA tem inscrita a seu favor a aquisição por compra de três prédios urbanos, compostos por terreno para construção, sitos em …, Vila da Fuzeta, fazendo parte actualmente da União de Freguesias de Moncarapacho e Fuzeta (anteriormente freguesia de Moncarapacho), descritos na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob os números .../20121030 - lote 1-, .../20121030¬ lote 2 - e .../20121030 - lote 3, inscritos na matriz respetivamente sob os artigos ..., ... e ..., tal como resulta de fls. 19 a 41 e 49 a 58, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 1º da petição inicial).
2) Os prédios urbanos referidos em 1) resultaram da operação de loteamento titulada pelo Alvará de Loteamento n.º 2/2012, emitido pela Câmara Municipal de Olhão em 4 de Outubro de 2012 a favor da Autora, tal como resulta de fls. 43 a 46 e 87 a 101, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 2º da petição inicial).
3) O alvará de loteamento referido em 2) teve por objeto o prédio misto descrito sob o n.º …/20070711- Moncarapacho, inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo … da Secção BN da freguesia de Moncarapacho e sob o artigo urbano … da mesma freguesia, tal como resulta de fls. 48 a 56, 58 e 60, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 3º da petição inicial).
4) O prédio misto que deu origem aos três prédios referidos em 1) encontrava-se descrito sob o n.º …/20070711¬Moncarapacho, sendo que a parte rústica do referido prédio, composto por terra de semear com alfarrobeiras e figueiras, encontrava-se inscrita na respetiva matriz rústica sob o art.º … da secção BN da freguesia de Moncarapacho, com a configuração constante da correspondente planta cadastral, tal como resulta de fls. 40 a 58 e 60, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 17º e 18º da petição inicial).
5) A parte urbana do prédio misto descrito sob o n.º …/2007071 estava inscrita na respetiva matriz sob o artigo …º da freguesia de Moncarapacho e era constituída por edifício construído anteriormente a 1951 que foi demolido com a devida autorização do Município de Olhão para dar lugar às novas construções que aí foram edificadas, tal como resulta de fls. 48 a 56, 170, 171 e 403 a 409, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 19º e 30º da petição inicial).
6) O prédio descrito sob o n.º …/20070711 foi inscrito no registo predial através da ap. 5 de 10 de Novembro de 1982, sendo seus titulares … e outros, que o adquiriram por sucessão hereditária a seu pai, J…, falecido em 16 de Abril de 1961 na Fuzeta, tal como resulta de fls. 55 e 165 a 168, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 20º da petição inicial).
7) A Autora adquiriu em 30 de Dezembro de 2010 o prédio descrito sob o n.º …/20070711 pelo preço de € 645.000,00, através de escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada no Cartório Notarial da Dr.ª …, em Faro, tal como resulta de fls. 68 a 85, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 4º da petição inicial).
8) À data da aquisição do prédio referido em 7), 30 de Dezembro de 2010, a operação de loteamento já se encontrava aprovada por deliberação camarária de 4 de Fevereiro de 2009 (artigo 5º da petição inicial).
9) Para financiamento da aquisição do prédio e da construção das infraestruturas e de todas as edificações previstas no alvará n.º 2/2012, a Autora contraiu junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, CRL, 3 empréstimos nos valores de € 490.000.00, € 1.400.000,00 e € 150,000,00 (artigo 6º da petição inicial).
10) A Autora prestou caução no valor de € 295.000,00 a favor da Câmara Municipal de Olhão, destinada a garantir a boa e regular execução das obras de urbanização do loteamento, mediante garantia bancária autónoma, à primeira solicitação, prestada pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, CRL, em 8 de Agosto de 2012, tal como resulta de fls. 87 e 88, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 7º da petição inicial).
11) Em data mão concretamente apurada a Autora iniciou as obras de construção das infraestruturas do loteamento (artigo 7º da petição inicial).
12) Posteriormente, a Autora apresentou as comunicações prévias para a construção das obras de edificação previstas para os lotes, as quais foram admitidas pela Câmara Municipal de Olhão em 24 de Abril de 2013 e liquidadas as taxas devidas, tal como resulta de fls. 90 a 101, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 9º da petição inicial).
13) A Autora iniciou em, em data não concretamente apurada, a construção dos edifícios previstos para os lotes 1 e 2, os quais se encontram em adiantado estado de construção (artigo 10º da petição inicial).
14) Em 8 de Abril de 2014 as obras foram embargadas por um Vigilante da Natureza em serviço na Agência Portuguesa do Ambiente, com fundamento em que as mesmas estavam a decorrer nas margens das águas do mar, em parcela do Domínio Público Marítimo (artigo 11º da petição inicial).
15) Em 29 de Abril de 2014 a Autora interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé providência cautelar de suspensão de eficácia do ato de embargo - processo n.º 261/14.8BELLE - a qual veio a ser deferida por sentença de 1 de Agosto de 2014, notificada à Autora por ofício de 25 de Agosto de 2014 e já transitada em julgado, tal como resulta de fls. 113 a 130, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 12º da petição inicial).
16) Em 28 de Maio de 2014 a Autora interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé a ação administrativa especial n.º 361/14.4BELLE contra a Agência Portuguesa do Ambiente, IP peticionando a declaração de nulidade ou anulação do ato de embargo, intentado pela ora Autora no âmbito do qual foi declarada a nulidade do ato de embargo da obra de construção que a Autora levava em curso nos prédios referidos em 1), por violação o direito de propriedade da Autora, acto esse praticado em 8 de Abril de 2014, decisão confirmada por Acórdão proferido em conferência, tal como resulta de fls. 137 a 163 e 324 a 368, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 13º da petição inicial).
17) O prédio descrito sob o n.º …/20070711, que deu origem aos prédios referidos em 1) e descritos sob os nos ..., ... e ..., situa-se junto a um braço da Ria Formosa banhado por água salgada, do mar, sendo a zona sujeita a enchentes e vazantes das marés, sendo navegável na maré alta e estando sob a jurisdição da Autoridade Marítima, sendo que, desde o limite sul da construção (que corresponde à parede da cave que se vê no lado direito da foto 4 de fls. 292), a distância à zona atingida pela água na maré alta é de 25,00 m (artigo 22º da petição inicial- parte e artigos 19º e 20º da contestação).
18) De acordo com a Planta de Ordenamento do PDM de Olhão - aprovado pela deliberação da Assembleia Municipal de 3 de Setembro de 1994, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/95, de 31 de Maio, alterado pela deliberação da Assembleia Municipal de Olhão de 28 de Fevereiro de 1997, ratificada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 143/97, de 29 de Agosto, e alterado por adaptação ao PROTAL por Regulamento publicado no D.R. n.º 15/2008, de 10 de Janeiro - os prédios da Autora situam-se dentro do perímetro urbano da Vila da Fuzeta, em solos classificados como "Espaço Urbano - Espaço Urbanizável de Expansão II (artigo 26º da petição inicial).
19) A zona onde se situam os prédios referidos em 1) caracteriza-se por possuir uma estrutura urbana definida, onde existem as infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade, fazendo parte integrante da malha urbana da Vila da Fuzeta (artigo 27º da petição inicial).
20) Os prédios referidos me 1), à semelhança dos que lhes são contíguos, todos eles também edificados, confrontam a Sul com via pública, Rua …, e a Norte com via-férrea, sendo a zona servida por infraestruturas de água, esgotos e eletricidade (artigo 28º da petição inicial).
21) Os prédios referidos em 1) não se situam em zona de risco de erosão ou de invasão de mar, bem como não se encontra classificada nem como área ameaçada pelo avanço do mar, nem como zona ameaçada pelas cheias (artigos 32º e 38º da petição inicial).
22) O Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, IP emitiu, em 6 de Janeiro de 2008, parecer favorável do relativo ao pedido da ora Autora de licenciamento do loteamento para construção de um conjunto habitacional referido em 2), tal como resulta de fls. 315 e 316, cujo teor se dá por integralmente por reproduzido.
23) A Câmara Municipal de Olhão emitiu, em 16 de Agosto de 2007, certidão da qual resulta que, para o prédio inscrito na matriz sob o artigo …º, sito em …, concelho de Olhão, não foi passada licença de habitabilidade por estar em causa prédio construído anteriormente a qual foi emitida na sequência de fotografias da construção e da informação do Fiscal Municipal no próprio requerimento em que é pedida a emissão da certidão comprovativa de que a construção é anterior a 1951, de que, “Verificado no local, constatou-se a existência de uma edificação bastante antiga da qual anexo fotos”, tal como resulta de fls. 403 a 409, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Resultou não provada a seguinte factualidade:
a) O braço da Ria Formosa que se situa junto aos prédios descritos em 1) dos factos provados não é nem navegável nem flutuável, estando a mais de 10 m da linha que delimita o leito.
b) O prédio descrito sob o n.º …/20070711 está na posse e propriedade privadas desde 1800, era vedado em toda a sua extensão e nele sempre se praticou a agricultura.

Conhecendo da questão
A Lei das Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei 54/2005 de 15/11) no seu artigo 15º que versa sobre o reconhecimento de direito adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos, contempla os casos excecionais em que terrenos já pertencentes à propriedade dos particulares antes de 31 de Dezembro de 1864, ou se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de1868, podem ser reconhecidos como propriedade privada, através da sujeição ao regime de prova específico contemplado nos n.ºs 2 a 4.
No entanto, sem sujeição às regras probatórias impostas nestes números, dispõe o número 5, decorrente da alteração ao artigo efetuada pela Lei 34/2014 de 19/06, que poderá a propriedade privada ser reconhecida sobre terrenos que:
a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;
b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias;
c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
Na sentença impugnada considerou-se que dos factos assentes resulta estarem preenchidos os requisitos previstos nesta última alínea, porquanto:
Nos autos apurou-se que a parte urbana do prédio misto descrito sob o n.º …/2007071 estava inscrita na respetiva matriz sob o artigo … da freguesia de Moncarapacho e era constituída por edifício construído anteriormente a 1951 que foi demolido com a devida autorização do Município de Olhão para dar lugar às novas construções que aí foram edificadas, bem como que tal prédio situa-se junto a um braço enchentes e vazantes das marés, sendo navegável na maré alta e estando sob a jurisdição da Autoridade Marítima, sendo que, desde o limite sul da construção (que corresponde à parede da cave que se vê no lado direito da foto 4 de fls. 292), a distância à zona atingida pela água na maré alta é de 25,00 m e que, de acordo com a Planta de Ordenamento do PDM de Olhão - aprovado pela deliberação da Assembleia Municipal de 3 de Setembro de 1994, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/95, de 31 de Maio, alterado pela deliberação da Assembleia Municipal de Olhão de 28 de Fevereiro de 1997, ratificada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 143/97, de 29 de Agosto, e alterado por adaptação ao PROTAL por Regulamento publicado no D.R. n.º 15/2008, de 10 de Janeiro - os prédios da Autora situam-se dentro do perímetro urbano da Vila da Fuzeta, em solos classificados como "Espaço Urbano - Espaço Urbanizável de Expansão II, sendo a zona caracterizada por possuir uma estrutura urbana definida, onde existem as infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade, fazendo parte integrante da malha urbana da Vila da Fuzeta, sendo os prédios da Autora, à semelhança dos que lhes são contíguos, todos eles também edificados, confrontam a Sul com via pública, Rua …, e a Norte com via-férrea, sendo a zona servida por infraestruturas de água, esgotos e eletricidade.
Assim sendo, necessariamente se conclui que estão verificados os pressupostos para que a Autora veja reconhecida a propriedade privada sobre as parcelas de margens de águas navegáveis ou flutuáveis, na medida que, desde logo, estão fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar.
Em segundo lugar, estão em causa terrenos que estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, na medida em que, atentas as suas características, estando dentro do perímetro urbano da Vila da Fuzeta, não há dúvida que se encontram numa zona urbana consolidada (só assim se justificando que a rua em causa tenha todas as infraestruturas supra descritas, ou seja, em data anterior à conclusão das edificações dos lotes da Autora),
Por fim, o prédio misto descrito sob o n.º …/2007071, que deu origem aos 3 lotes da Autora, estava ocupado por construção anterior a 1951, documentalmente comprovada atenta a certidão da Câmara Municipal de Olhão de 16 de Agosto de 2007, da qual resulta que, para o prédio inscrito na matriz sob o artigo …, sito em …, freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, não foi passada licença de habitabilidade por estar em causa prédio construído anteriormente a qual foi emitida na sequência de fotografias da construção e da informação do Fiscal Municipal no próprio requerimento em que é pedida a emissão da certidão comprovativa de que a construção é anterior a 1951, de que, “Verificado no local, constatou-se a existência de uma edificação bastante antiga da qual anexo fotos”, tal como resulta de fls. 403 a 409, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Não obstante a assumida discordância do recorrente é nosso entendimento que a sua posição não é de acolher.
A caraterização de área urbana consolidada deve ser aferida em face da regulamentação do urbanismo, designadamente do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (REGEU) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382 de 7 de Agosto de 1951 e o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) aprovado pelo Decreto Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, sendo que a referência ano de 1951, feita na alínea c) do n.º 5 do artº 15º da Lei 54/2005 decorre de no ano de 1951 ter sido publicado o REGEU, conforme é reconhecido pelo governo português no seu Guia de apoio sobre a titularidade dos Recursos Hídricos.[1]
A lei limita-se a exigir, para aferição do reconhecimento da propriedade que as parcelas de leitos ou margens “estejam integradas em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação”, não impondo nenhum momento ou limite temporal para a verificação desse requisito, nem o da data da entrada em vigor do PDM, nem qualquer outro.
O conceito de “zona urbana consolidada”[2] foi inovatoriamente introduzido no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, que introduziu alterações ao RJUE (diploma que é muito posterior à aprovação do plano diretor municipal de Olhão, aprovado pela Assembleia Municipal em 3 de Novembro de 1994, e posteriormente ratificado pelo Governo através da RCM n.º 50/95, de 13 de Abril, publicada no DR, I Série – B, de 31 de Maio de 1995), sendo um conceito do direito do urbanismo, e não um conceito inerente ao ordenamento do território consagrado nos diplomas que visam tal desiderato.
Nem o Dec. Lei n.º 69/90, de 2 de Março – que regulava a elaboração, aprovação e ratificação dos planos municipais de ordenamento do território à data da elaboração, aprovação, ratificação e publicação do PDM de Olhão - nem o Dec. Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, que lhe sucedeu, nem o Dec. Regulamentar n.º 9/2009, de 29 de Maio – que contém os conceitos técnicos de ordenamento de território e de urbanismo a utilizar pelos instrumentos de gestão territorial - nem tão pouco o Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de Maio - regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial atualmente vigente - fazem referência ao conceito de zona urbana consolidada.
Por isso, não sendo o conceito de zona urbana consolidada um conceito do ordenamento do território, o mesmo não é, nem nunca foi utilizado pelos instrumentos de gestão territorial, maxime pelos planos diretores municipais, aos quais cabe a tarefa da classificação e qualificação do solo, cfr. art.ºs 9.º e 10.º do Dec. Lei n.º 69/90, de 2 de Março, e 71.º, 72.º e 73.º do Dec. Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro e art.ºs 70.º, 71.º e 74.º do Dec. Lei 80/2015, de 14 de Maio, donde não resulta dos PDM que os municípios, designadamente o de Olhão, tenham procedido à classificação das áreas incluídas dentro dos perímetros urbanos, in casu do perímetro urbano da Vila da Fuseta, de acordo com um conceito que, à data, até era inexistente.
Assim, o que releva para a subsunção ao conceito de zona urbana consolidada são as características urbanísticas, física e materialmente existentes no local (no caso concreto referenciadas no acervo factual dado como provado, designadamente, o constante nos pontos 18 a 20) e não uma classificação dos solos constante do PDM que foi aprovado há muitos anos, quando até não havia definição legal para a realidade aludida na Lei 54/2015.
Devemos concluir, assim, que o terreno em causa nos autos está integrado em zona urbana consolidada.
Para além, deste requisito exige, também, a lei, que o terreno cujo reconhecimento da propriedade privada se pretende, esteja ocupado por construção anterior a 1951. Mas será que o reconhecimento da propriedade privada se restringe à parcela onde estava implantada a construção preexistente, excluindo desse reconhecimento a restante área do terreno que compõe o prédio, como defende o recorrente.
Este entendimento, que não foi perfilhado na decisão recorrida, não pode deixar de considerar-se desajustado em face da letra e do espírito da lei.
O reconhecimento da propriedade privada, não pode deixar de reportar-se ao prédio tal qual consta da respetiva descrição predial, sendo que a menção a terrenos que “se encontrem ocupados por construção anterior a 1951” não pode deixar de significar prédios em que exista edificação anterior a 1951, e não, apenas, a parte do prédio especificamente ocupada com a edificação, sob pena de se subverter o sentido da norma, pois de outro modo nem se compreenderia a exigência de que os próprios terrenos, ou seja, o prédio se situasse em zona urbana consolidada.
Aliás, existindo numa zona urbana consolidada, diversidade dos tipos de construção (andares, vivendas, armazéns, etc) nos quais nem sempre o espaço físico é ocupado totalmente pela construção, não faria sentido (se tomássemos a estipulação normativa à letra, como pretende o recorrente), reconhecer a propriedade privada de um terreno totalmente ocupado com a construção, deixando de poder reconhecer essa titularidade a outro terreno, na mesma localização, em que parte do terreno estivesse destinada a quintal ou a logradouro da construção.
Como bem salienta a recorrida, tal facto aponta decisivamente no sentido de que o legislador visou excluir do regime de prova previsto nos n.ºs 1 a 4 do art.º 15.º da Lei n.º 54/2015, de 15 de Novembro, os prédios com edificações anteriores a 1951 situados nas povoações ribeirinhas, por configurarem situações de posse e propriedade privadas exercidas continuada e publicamente, por um longo período de tempo e que nunca foram questionadas, mas antes assumidas pelas autoridades públicas, situação que justifica a dispensa da sua sujeição àquele regime de prova.
Assim, o regime excecional de reconhecimento da propriedade privada é aplicável aos prédios situados em zonas urbanas consolidadas e não apenas às partes dos prédios onde se encontra assente a edificação.
No caso, a edificação preexistente veio a ser substituída pela atualmente existente, foi objeto de parecer favorável da Administração Central do Estado (v. facto provado constante do ponto 22), sendo que embora, presentemente, se aluda a três lotes de terreno, o prédio que lhes deu origem é o único e o mesmo - o prédio misto n.º …, inscrito da matriz predial rústica sob o artº … da secção BN da freguesia de Moncarapacho e sob o artº urbano … da mesma freguesia (v. factos provados n.ºs 1 a 5 e 23).
De tal, decorre a irrelevância das conclusões do recorrente, sendo de julgar improcedente o recurso e de confirmar a sentença impugnada
*
DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, atenta a isenção de que goza o recorrente.
Évora, 28 de junho de 2017
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo
_______________________________________
[1]- v.https://www.apambiente.pt/_zdata/Divulgacao/Publicacoes/Guias%20e%20Manuais/Guia_RH_setembro2014.pdf
[2] - Definição do artº 2º al. O) do RJUE “a zona caracterizada por uma densidade de ocupação que permite identificar uma malha ou estrutura urbana já definida, onde existem as infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade”.