Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
421/09.3TBBJA.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
OPERAÇÃO DE CONTROLO METROLÓGICO
TACÓGRAFO
DOCUMENTO DE VERIFICAÇÃO PERIÓDICA DO TACÓGRAFO
Data do Acordão: 04/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1 – Provando-se apenas que a arguida utilizava para o seu serviço um veículo pesado sem que fizesse acompanhar o aparelho tacógrafo do respectivo documento de verificação periódica, a arguida não pode ser punida ao abrigo do DL 291/90 de 20/9, pois a conduta praticada por ela não se encontra tipificada em tal diploma legal – o qual exige a inobservância do estatuído nesse diploma em matéria de operações de controlo metrológico.
2 - Com efeito, a conduta alegadamente infractora da arguida consistiu unicamente em não exibir no momento da operação de fiscalização do seu veículo pela GNR o documento comprovativo do controle periódico do tacógrafo, e esta conduta desrespeita exclusivamente o disposto no n.º 20 da Portaria n.º 962/90 de 9/10, a qual é omissa no que respeita à punição por tal infracção.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A)

No presente processo de contra-ordenação foi proferida, pela entidade administrativa competente, decisão condenatória que aplicou à arguida “Transportes (…), Lda.” com sede em Fátima, a coima de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida das custas processuais de € 300 (trezentos euros) pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos do art. 20º do Capítulo VII do Regulamento Geral do Controlo Metrológico aprovado pela Portaria n.º 962/90 de 9 de Outubro, conjugado com os arts. 1º n.º 3, 4º e 13º, ambos do Dec. Lei n.º 291/90, de 20 de Setembro.

Na sequência da sua notificação, a arguida impugnou judicialmente a referida decisão, recorrendo para o Tribunal Judicial da Comarca de Beja, onde, por despacho de 31 de Julho de 2009, veio a ser julgado procedente o recurso e absolvida a recorrente, por se entender que a matéria de facto apurada não integra a contra-ordenação pela qual havia sido condenada.

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso para esta Relação, pedindo, conforme consta das suas conclusões, a final, que o despacho recorrido seja revogado, e substituído por outro que condene a arguida " Transportes Unipessoal, Lda" pela prática da contra-ordenação p. e p. nos arts. 20° do Capítulo VII do Regulamento Geral do Controlo Metrológico aprovado pela Portaria n.º 962/90, de 09.10, e 1º, n° 3, 4° e 13°, estes do Dec-Lei n° 291/90, de 20.09, que lhe vinha imputada.

Na primeira instância, a recorrida não deu qualquer resposta a esse recurso.

Nesta Relação, o Ilustre Sr. Procurador-Geral Adjunto que teve vista dos autos acompanhou as conclusões do recurso, defendendo a sua procedência.

Respondeu então a arguida e recorrida, sustentando que não deve ser dado provimento ao recurso do MP, devendo antes manter-se na íntegra o despacho impugnado.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

B)

Considerando os elementos relevantes para o efeito, decorrentes do processo, cumpre apreciar e decidir.

Recorde-se que o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação - arts. 403º, n.° 1, e 412°, n.º 1, do Código de Processo Penal.

E lembre-se por outro lado que em matéria de contra-ordenações o recurso para a Relação visa apenas matéria de Direito, como estatui o art. 75º, nº 1, do DL. n.º 433/82 de 27/10, em consonância com o art.º 66º do mesmo diploma.

Daqui decorre que a sindicância da sentença quanto à decisão de facto apenas se possa fazer no estrito domínio dos vícios enunciados no art.º 410º, n.ºs 2 e 3, do CPP (vícios estes, aliás, de conhecimento oficioso, e que não encontramos in casu). Como regra, temos que funciona a Relação em sede de recurso apenas como tribunal de revista, pelo que os factos a considerar são os que foram dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância.

Diga-se, ainda, que em relação à fixação da matéria de facto não vem colocada qualquer dúvida por parte do recorrente, que vem colocar exclusivamente uma questão de Direito.

Recordemos então as conclusões do recurso interposto, que delimitam o objecto deste:

1º - Vem o recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Beja no âmbito do Recurso de Contra-Ordenação n.º 421/09.3TBBJA, a correr termos no 1º Juízo, que o considerou procedente, absolvendo a arguida/recorrente "TRANSPORTES (…), Lda" da prática da contra-ordenação p. e p. nos arts. 20º do Capítulo VII do Regulamento Geral do Controlo Metrológico aprovado pela Portaria n.º 962/90, de 09.10, e lº, n.º 3, 4° e 13°, estes do Dec-Lei n° 291/90, de 20.09 que lhe vinha imputada, decisão com a qual não se concorda;

2º - Discordamos da douta sentença recorrida, na medida em que exclui do âmbito de protecção da norma contra-ordenacional uma realidade que, manifestamente, está no cerne da sua intencionalidade problemática: a manutenção/falta dos documentos comprovativos do controlo metrológico junto do aparelho de medição - vulgo tacógrafo;

3º - O raciocínio acima expendido repousa em uma consideração de cariz prático-normativo, na medida em que não se vislumbra como é que as autoridades policiais poderiam levar a cabo uma fiscalização do controlo periódico do tacógrafo se, justamente, quem de direito não lograsse trazer, aquando da circulação rodoviária, junto do referido aparelho, os competentes documentos comprovativos de que a verificação periódica ou outras foram, efectivamente, realizadas;

4º - Ademais, na esteira da douta sentença, facilmente se introduziria um elemento perturbador e pernicioso para a operacionalidade prática do sobredito tipo de ilícito contra¬ordenacional: bastaria que o utente incumpridor da sua obrigação de verificação periódica do tacógrafo não se fizesse acompanhar, no momento da circulação rodoviária, dos mencionados documentos comprovativos de que a mesma ou outras verificações foram realizadas, para esvaziar por completo o sentido útil da norma, furtando-se, deste modo, ao ius puniendi estatal.

5º - Por conseguinte, o tipo de ilícito contra-ordenacional dos arts. 13°e 1°, n° 3, ambos do Decreto - Lei n.º 291/90, de 20.09 deve ser interpretado no sentido de que a não manutenção, junto do tacógrafo, dos documentos comprovativos de verificação periódica também configura uma vera contra-ordenação, nos termos das disposições legais acima mencionadas.

6º - A sujeição a um estrito princípio da legalidade (sob a veste da proibição da analogia, e da proibição da aplicação retroactiva da lei penal), não embarga, contudo, a consideração de elementos implícitos do tipo, na medida em que estes se deduzem apenas e necessariamente de uma reflexão e de uma articulação valorativa e global sobre o bem jurídico protegido e os elementos explicitamente cunhados pelo legislador, naquele e noutros tipos legais de crime que, igualmente, visem proteger o mesmo bem jurídico.

7º - Atenta a estrutura valorativa do tipo de ilícito contra-ordenacional ínsito nos arts. 13°e 1°, n° 3, ambos do Decreto - Lei n° 291/90 e, essencialmente, tendo em linha de conta o bem jurídico que se encontra condensado na norma, deveria, com o devido respeito, a douta sentença ter concluído que, apesar de a norma contra-ordenacional só fazer referência expressa à enumeração incompleta de condutas subsumíveis ao mesmo, essa mesma norma abarca no seu espírito, logo na sua previsão, a manutenção/falta dos documentos comprovativos de controlo metrológico, junto ao tacógrafo, na medida em que se o bem jurídico é um nódulo problemático que radicaliza um valor, só a curial interpretação da sua concreta teleologia permite maximizar, por um lado, o grau de previsibilidade do tipo de garantia e, por outro lado, encurtar significativamente a possibilidade de surgimento de indesejáveis lacunas de punibilidade.

8º - A construção de um tipo legal de crime também se faz por interpretação através da busca incessante da intencionalidade jurídica da norma, por um lado, e, essencialmente, pela escolha da solução mais acertada ou razoável, não só na intencionalidade final encontrada, isto é, no âmbito de protecção da norma, mas também na razoabilidade no caminho da definição dos elementos do tipo e na estrada de concatenação entre eles, pois quanto mais interpretação mais legalidade.

9º - Por conseguinte, a douta sentença recorrida violou o disposto nos arts. 29°, n° 1 da CRP; 1 ° do Cód. Penal; 2°,32° e 43° do R.G.C.O. e 1°, n° 3 e 13° do Decreto _ Lei n° 291/90, de 20.09 com referência ao art. 20° do Capítulo VII do Regulamento Geral do Controlo Metrológico aprovado pela Portaria n" 962/90, de 09.10.

Deste modo, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a arguida "(…), Lda" pela prática da contra-ordenação p. e p. nos arts. 20° do Capítulo VII do Regulamento Geral do Controlo Metrológico aprovado pela Portaria n.º 962/90, de 09.10, e 1º, n° 3, 4° e 13°, estes do Dec-Lei n° 291/90, de 20.09, que lhe vinha imputada.

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A factualidade que o Tribunal recorrido deu como assente, aqui a considerar, é apenas a seguinte:

- No dia 15 de Novembro de 2006 no IP2 ao Km 358, comarca de Beja, a arguida utilizava para seu serviço o veículo pesado de matrícula (…) sem que fizesse acompanhar o aparelho tacógrafo do documento de verificação periódica.

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Quid juris?

A Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade entendeu que os factos em referência integravam a contra-ordenação pela qual condenou a arguida.

Ficou assim equiparada a factualidade efectivamente apurada (quando o veículo ao serviço da arguida foi fiscalizado o respectivo aparelho tacógrafo não estava acompanhado do documento comprovativo da sua verificação periódica) com aquela que tinha sido inicialmente o objecto de autuação por parte da GNR (a “falta de inspecção periódica do tacógrafo”).

Com efeito, após a respectiva autuação a arguida tinha vindo aos autos comprovar que não se verificava a “falta de inspecção periódica do tacógrafo”, como tinha ficado a constar do auto, por no momento da fiscalização não ter sido apresentado o documento comprovativo dessa inspecção. A dita inspecção tinha sido devidamente efectuada, como foi documentalmente demonstrado. Deste modo, a falta que subsistiu consiste exclusivamente no facto de o respectivo documento comprovativo não acompanhar o aparelho tacógrafo a que se reportava.

O despacho judicial ora impugnado veio dar razão ao recurso da arguida, julgando que a falta ocorrida não é susceptível de integrar a contra-ordenação em análise.

Escreve-se no douto despacho judicial recorrido:

“Não se levantam quaisquer dúvidas que a conduta da arguida viola o disposto no art. 20º do Capítulo VII da Portaria n.º 962/90, de 9 de Outubro, que dispõe que “Os fabricantes, importadores e utilizadores deverão conservar os instrumentos de medição em bom estado de funcionamento e manter os documentos comprovativos do controlo metrológico junto dos respectivos instrumentos”.

A questão que se coloca agora é a de saber se tal violação se encontra tipificada como contra-ordenação, sendo certo que a arguida defende que não.

A decisão submetida à apreciação deste Tribunal considerou que tal conduta consubstanciava a prática da contra-ordenação prevista no art. 13º n.º 1 do Dec. Lei n.º 291/90, de 20 de Setembro.

Tal preceito legal consagra que constitui contra-ordenação punível com coima toda a conduta que infrinja as normas relativas às operações de controlo metrológico previstas no n.º 3 do art. 1º do referido diploma legal.

O n.º 3 do art. 1º dispõe que “O controlo metrológico dos instrumentos de medição compreende uma ou mais das seguintes operações: a) Aprovação de modelo; b) Primeira verificação; c) Verificação periódica; d) Verificação extraordinária.”

Ora como facilmente se conclui da análise dos supra citados preceitos legais, a conduta da arguida, embora efectivamente violadora do disposto no art. 20º do Capítulo VII da Portaria n.º 962/90, não constitui contra-ordenação nos termos da legislação invocada, por nela não se encontrar expressamente prevista. Apenas o são as condutas que infrinjam as regras relativas à aprovação do modelo do instrumento de medição, à primeira verificação, à verificação periódica e à verificação extraordinária, não estando contempladas situações como as dos autos em que tais regras foram respeitadas, apenas não se encontrando junto do aparelho de medição o documento comprovativo do cumprimento das mesmas.

Assim, assiste razão à ora arguida porquanto a sua conduta não se encontra tipificada como contra-ordenação no art. 13º do Dec. Lei n.º 291/90, o que determina a sua absolvição.”

Em face dos textos legais a considerar, afigura-se que não é possível acompanhar as conclusões do recorrente.

Na verdade, a circunstância de o legislador não ter previsto, na Portaria n.º 962/90 de 9 de Outubro, que contém o Regulamento Geral do Controlo Metrológico, qualquer sanção legal para a inobservância do que estatuiu no seu art. 20º (“Os fabricantes, importadores e utilizadores deverão conservar os instrumentos de medição em bom estado de funcionamento e manter os documentos comprovativos do controlo metrológico junto dos respectivos instrumentos”) não pode conduzir a que de forma voluntarista o julgador tente integrar esse comportamento entre as contra-ordenações puníveis pelo art. 13º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/90 de 20 de Setembro.

Esta norma estatui apenas que “Constitui contra-ordenação punível com coima toda a conduta que infrinja as normas relativas às operações de controlo metrológico previstas no n.º 3 do artigo 1.º do presente diploma”. E o mencionado n.º 3 do art. 1º estabelece que “O controlo metrológico dos instrumentos de medição compreende uma ou mais das seguintes operações: a) Aprovação de modelo; b) Primeira verificação; c) Verificação periódica; d) verificação extraordinária.”

Ou seja, da letra dos preceitos citados decorre claramente que os factos puníveis como contra-ordenação têm que traduzir-se em infracções aos deveres legalmente impostos relativamente ao controlo metrológico dos próprios aparelhos de medição, concretamente a falta das operações a que estes têm obrigatoriamente que sujeitar-se – aprovação, primeira verificação, verificação periódica, verificação extraordinária…

Não há “interpretação extensiva” que valha ao entendimento do MP, segundo o qual o simples facto de não se fazer acompanhar o aparelho de medição pelo documento comprovativo da realização da verificação periódica é punível de forma igual à efectiva falta da verificação periódica.

Cabe lembrar que nunca no nosso direito o crime de condução sem habilitação ilegal ficou preenchido com a conduta daquele que sendo possuidor dela todavia não a traz consigo na altura em que é fiscalizado pelos agentes policiais. E nem por isso se pode afirmar que desta forma ficou frustrada a “operacionalidade prática” da imposição legal de prévia habilitação para o exercício da condução automóvel.

Não se pode aceitar que a contra-ordenação contida no DL n.º 291/90 abranja a factualidade apurada nos presentes autos (a contra-ordenação traduz-se em infracção às normas relativas às operações de controlo metrológico, que são aquelas concretas operações, não se podendo incluir nelas a posterior falta de apresentação de um documento quando solicitado). Qualquer interpretação extensiva pressupõe algum apoio no elemento literal, tendo que ser suportado num dos sentidos possíveis da letra da lei.

E não se pode certamente aceitar que a Portaria n.º 962/90 tenha vindo criar um novo tipo de ilícito contra-ordenacional, ou alargar o âmbito do existente.

Em conclusão:

A arguida não pode ser punida ao abrigo do DL 291/90 de 20/9, pois a conduta praticada por ela não se encontra tipificada em tal diploma legal – o qual exige a inobservância do estatuído nesse diploma em matéria de operações de controlo metrológico.

Com efeito, a conduta alegadamente infractora da arguida consistiu unicamente em não exibir no momento da operação de fiscalização do seu veículo pela GNR o documento comprovativo do controle periódico do tacógrafo.

Esta conduta da arguida desrespeita exclusivamente o disposto no n.º 20 da Portaria n.º 962/90 de 9/10, a qual é omissa no que respeita à punição por tal infracção.

Por tudo o que fica dito, dada a sua falta de fundamento legal, improcede na sua totalidade o recurso sub judicio.

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C)

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmam na íntegra o despacho recorrido.

Sem custas, por a elas não estar sujeito o recorrente.

Notifique.

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Évora, 27 de Abril de 2010

JOSÉ LÚCIO (relator) - LUÍSA ARANTES