Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
193/10.9GACTX.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
ANIMAIS PERIGOSOS
CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29 de Outubro, que aprovou o regime jurídico da criação, reprodução e detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos, enquanto animais de companhia, passou a constituir contraordenação, p. e p. pelo art. 38.º, n.º1, al. r), “a não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves”, não integrando tal conduta a prática do crime, p. e p. pelo art. 148.º, n.º1 do Código Penal [1
]
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


1. RELATÓRIO

Nos presentes autos, distribuídos para julgamento ao 2.º Juízo do Tribunal Judicial do Cartaxo, por despacho proferido em 25.11.2011 foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público, acompanhada pela assistente, por manifestamente infundada, bem como rejeitado liminarmente o pedido de indemnização civil formulado.

Inconformado com tal despacho, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:


A Mmª Juiz “a quo”, em suma, entendeu que à data em que foi deduzida acusação, os factos constantes da mesma não constituíam crime.


Mas antes uma contra-ordenação, punível pela al. r), do artº 38°, do DL 315/2009, de 29/10, que dispõe, “A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.”


Esqueceu-se porém a Mmª Juiz “a quo”, que o Capítulo V do citado Decreto­-Lei 315/09 se subdivide em 3 secções, e que a Secção II, sob a epígrafe “Crimes”, prevê cinco situações distintas.


De que importa salientar:

No artº 33º, as ofensas à integridade física negligentes, de que resultem para o ofendido ofensas graves; e,

No artº 34°, sob a epígrafe Aplicação subsidiária, está prevista uma norma de salvaguarda, que dispõe o seguinte:

“Em tudo o que não esteja expressamente previsto na presente secção são aplicáveis as normas constantes do Código Penal”.


Aquele diploma não prevê expressamente o crime de ofensa à integridade física negligente de que resultem para o ofendido lesões, que têm de ser consideradas simples, como as que resultaram dos factos descritos na acusação em apreço, para a ofendida/assistente, pelo que há que recorrer à norma de salvaguarda estatuída no artº 34°, do DL 315/09 citado.


Assim como não podia deixar de ser, tal situação fáctica, continua a estar prevista e a ser punida pelo artº 148°, n° 1, do CP, constituindo pois um crime, por força do artº 34°, do DL 315/09 citado.


Tal situação em concreto poderá fazer incorrer o arguido na prática em concurso de crime e de contra-ordenação, nos termos do artº 36°, do DL 315/09 citado.

Termos em que, revogando o despacho recorrido e substituindo-o por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público,

Farão Vossas Excelências, como sempre,
JUSTIÇA.

Notificados, o arguido e a assistente nada ofereceram aos autos.

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no essencial, entendendo que, existindo relação de especialidade entre as normas em causa, é aplicável a que prevê a contra-ordenação e, assim, no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, atento o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente em conformidade com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995.

Consubstancia-se, assim, em apreciar se o despacho recorrido não deveria ter, com o fundamento em que assentou, rejeitado a acusação.

Consta do despacho recorrido:

«O Tribunal é competente.
*
Nos termos do disposto no artigo 311º Código do Processo Penal 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.

Compulsado o teor da acusação deduzida pelo Ministério Público vem imputada ao arguido a prática dos seguintes factos:

O arguido é dono de um animal de raça canina, de grande porte: um “Pit Bull”.

Este vive no quintal da residência do arguido, sita na ---, Reguengo, Valada, nesta comarca.

Todos os dias o animal é solto e anda com açaime mas sem trela pelas redondezas.

No dia 3 de Agosto de 2010, pelas 22h e 40m, o arguido soltou o referido “Pit Bull”, como habitualmente.

Sucede porém que FG, que mora nas proximidades, àquela mesma hora saiu de casa para dar um passeio e dirigiu-se à Travessa da Rua das Flores, sita em Valada,

Nesta altura, e sem que nada o fizesse prever, surge a correr na sua direcção o mencionado “Pit Bull”, que se lançou sobre a mesma, derrubando-a, após o que permaneceu cerca de 10 minutos em cima da ofendida FG, que estava caída no solo.

Decorrido tal lapso temporal surgiu o arguido que ao ver o que se passava, proferiu a expressão, “Esta já está!” e nem se aproximou, nem chamou o seu cão e nada fez para por cobro à situação.

Em consequência da situação descrita sofreu FG as lesões descritas no Auto de Exame de fls. 21 a 23 e na documentação clínica de fls. 4 e 5, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos, que lhe determinaram como consequência directa, necessária e adequada 2 dias de doença com igual período de incapacidade para o trabalho.

O arguido agiu sem os cuidados que devia e podia ter para evitar aquele resultado, que igualmente podia e devia prever, sendo certo que sabia que aqueles canídeos são agressivos e consequentemente têm que ser passeados à trela.

Mais sabia o arguido que tinha o dever de vigiar o seu animal de raça canina em referência e não o vigiou.

Sabia ser tal conduta proibida por lei.

Do Auto de Exame de fls. 21 a 23 e da documentação clínica de fls. 4 e 5 resulta que a ofendida sofreu a seguinte lesão: traumatismo da coluna cervical sem alterações da mobilidade passiva e activa da coluna.

Tais lesões foram periciadas por médico nos termos do Auto de Exame Médico de fls. 21 que expressamente excluiu tal lesão do âmbito de aplicação do artigo 144º Código Penal que regula as ofensas à integridade físicas graves.

Assim, excluída tal lesão da qualificação como graves, não fora a negligência, e as lesões descritas integrariam o conceito de ofensa à integridade física simples, nos termos do disposto no artigo 143º Código Penal.

Em 1 de Janeiro de 2010 entrou em vigor o DL 315/2009, de 29 de Outubro que aprovou o regime jurídico a detenção de animais perigosos, o qual, de acordo com o seu artigo 44º revogou o DL 312/2003, de 17.12, alterado pela Lei 49/2007, de 31.08.

Por sua vez, e porque ainda não aprovada a regulamentação prevista em tal lei, mantém-se em vigor a Portaria 422/2004, de 24.04 que determina as raças de cães e cruzamentos potencialmente perigosos (cfr. artigo 44°, n° 2 DL 315/2009).

Tais raças potencialmente perigosas são as seguintes: I) Cão de fila brasileiro. II) Dogue argentino. III) Pit bull terrier. IV) Rottweiller. V) Staffordshire terrier americano. VI) Staffordshire bull terrier. VII) Tosa inu.

Como se verifica o pitt bull terrier, mais conhecido apenas por PITT BULL é nos termos da referida portaria um cão de raça considerada perigosa e portanto abrangido pelo âmbito de aplicação do referido diploma de 2009.

Nos termos do disposto no artigo 38° do DL 315/2009 1 - Constituem contra-ordenações puníveis, pelo director-geral de Veterinária, com coima cujo montante mínimo é de (euro) 500 e máximo de (euro) 3740 ou (euro) 44 890, consoante se trate de pessoas singulares ou colectivas: (...) r) A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves.

Assim, e considerando tudo o que vem de se expor, a factualidade vertida na acusação não integra a prática de um crime mas sim de uma contra-ordenação, termos em que, e de acordo com o disposto no artigo 311°, n° 2, alínea a) e n° 3, alínea d) Código do Processo Penal, se rejeita a acusação pública deduzida e acompanhada pela Assistente.

Sem custas.
*
Pela Assistente foi deduzido pedido de indemnização civil.

Nos casos em que da prática dos factos ilícitos típicos resulte lesão de natureza patrimonial ou não patrimonial para o ofendido ou para terceiros, deve o pedido cível ser deduzido no processo penal respectivo, cfr. o disposto no artigo 71º do Cód. Proc. Penal.

De acordo com o artigo 129º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, pelo que ter-se-á que ter em conta ao que esta estatui quanto à responsabilidade civil extracontratual.

Ora, in casu não estamos perante uma situação em que os factos eram crime à data da dedução de acusação mas que o não são à data do recebimento da acusação ou do julgamento. Aqui logo à data da acusação os factos não constituíam crime pelo que se rejeita liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido.

Sem custas (artigo 4º. n° 1. alínea m) Regulamento das Custas Processuais.
*
Notifique.

Oportunamente, dê baixa e devolvam-se os autos ao Ministério Público.
*
Cartaxo. d.s. ».
(())

Como transparece do despacho, o fundamento legal do decidido assentou no art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea d), do CPP, reconduzindo-se à rejeição da acusação, por manifestamente infundada, decorrente dos factos não constituírem crime.

A actual redacção do preceito foi introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25.08 e, mormente no tocante àquele n.º 3, na sequência de divergências notadas na doutrina e na jurisprudência e da formulação do Assento do STJ n.º 4/93, de 17.02, publicado no D.R. I-A Série de 26.03.1993, que então fixou como obrigatória a jurisprudência de que «A alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária», a qual sempre suscitou a dúvida de compatibilizá-la com o princípio acusatório e com a autonomia das autoridades judiciárias que presidem, respectivamente, ao inquérito e ao saneamento e julgamento do processo.

Com as alterações introduzidas, reforçou-se a consagração desse princípio, ao restringir-se ao mínimo indispensável, isto é, unicamente em razão de vícios estruturais da acusação, a possibilidade do juiz de julgamento - em situações em que não tenha havido instrução - se pronunciar valorativamente quanto aos termos da mesma, no cumprimento estrito da distinção constitucional de funções que às diferentes autoridades judiciárias incumbem e, concomitantemente, às suas diversas atribuições no âmbito processual penal.

Visando esse desiderato, o legislador previu expressamente as situações específicas em que a acusação, por manifestamente infundada, pode ser rejeitada, aproximando a redacção daquele n.º 3 do art. 311.º da previsão do art. 283.º, n.º 3, do CPP - que fixa os requisitos a que tem de obedecer a acusação, sob pena de nulidade - e, assim, fazendo caducar aquela jurisprudência, que se reportava à susceptibilidade de apreciação indiciária.

As exigências previstas para a acusação são emanação clara desse princípio acusatório, consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa, tendo como subjacente que só se pode ser julgado pela prática de crime, precedendo acusação formulada por órgão distinto do julgador.

Contém-se na dimensão ampla de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do n.º 1 do mesmo art. 32.º, consagrando-se como cláusula geral englobadora de todas as garantias que hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido, ou seja, de todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra, 2007, vol. I, pág. 516).

Segundo estes Autores, ob. cit., pág. 522, O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

A concepção típica de um processo acusatório implica, assim, a estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, em sede de determinação do objecto do processo, bem como na vertente de ponderação dos poderes de cognição e dos limites da decisão, só assim ficando asseguradas as garantias de defesa, por só desse modo o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles se possa convenientemente defender (Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, Coimbra, 1974, pág. 65).

Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal, Verbo, 1994, tomo III, pág. 117, O processo acusatório, buscando assegurar a imparcialidade do julgador, atribui a órgãos distintos as funções de investigação e acusação, por um lado, e a função de julgamento dessa acusação, por outro. Deste modo pretende assegurar-se a objectividade do julgamento dos factos que são objecto da acusação; a acusação é condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento.

Já Figueiredo Dias referia, ob. cit., pág. 145 (citando Castanheira Neves), que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.

Toda a temática se revela, também, como decorrência do direito a um processo equitativo, de harmonia com o art. 6.º, n.º 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

É indubitável, por isso, que se reconheça que ninguém pode ser punido sem culpa e que os requisitos exigidos para qualquer acusação, reflexo daquele princípio acusatório, são essenciais à delimitação do objecto do processo e, como tal, do julgamento a realizar.

Aqui se inclui, desde logo, a narração de factos, ainda que sintética, a que o referido art. 283.º, no seu n.º 3, alínea b), se reporta, como sendo aqueles que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

E, também, designadamente, comporta a exigência de que os factos narrados na acusação constituam crime, na medida em que, conforme Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 268, O ponto de vista que ao direito importa é a referência dos acontecimentos às normas jurídicas, e ao processo penal os comportamentos humanos que por lei são declarados passíveis de penas ou medidas de segurança criminais.

Se isso, pois, é bem patente na exigência da indicação das disposições legais aplicáveis – mesmo art. 283.º, n.º 3, alínea c) -, na medida em que qualquer alteração do ponto de vista jurídico pode vir a reflectir-se na relevância atribuída à prova e à defesa de determinados elementos de facto, não deixará, inelutavelmente, de o ser, desde logo, se os factos narrados nem sequer constituem crime, com o que, além do mais, como referido, se evita que o arguido venha a ter de ser sujeito, sem justificação, a julgamento.

Esta solução em nada contende com a afastada possibilidade de avaliação indiciária, já que o juiz, ao proceder ao saneamento do processo nos termos daquele art. 311.º, apenas faz a constatação de que os factos não constituem crime, alheio a qualquer apreciação quanto à sua fundada, ou não, indiciação, pois isso lhe está vedado.

Tal viabilidade de rejeição da acusação assenta, no fim de contas, em que a acusação, mesmo que procedesse na parte atinente aos factos narrados, seria inconsequente e, por isso, o julgamento seria acto inútil.

Não obstante todo o cuidado posto no respeito dessas exigências, a expressão “manifestamente infundada” não deixa de ter, como subjacente, a ausência clara de fundamento, seja por não conter a identificação do arguido, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, seja, ainda, porque foi omitida aquela indicação das disposições legais e, como tal, definindo-se como aquela que, pelos seus próprios termos, é, desde logo, evidente que não pode vir a ser julgada procedente.

E, por isso, o julgador só deverá usar dessa prerrogativa quando seja, de todo, inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que venha a ser, injustificadamente, sujeito, à “violência” de um julgamento, sendo certo que, neste âmbito, se tem em vista, tão-só, o controle da legalidade da acusação, através da análise dos seus vícios estruturais, sem embargo de se sobrepor ao regime das nulidades e cujo conhecimento, oficiosamente, se impõe.

Na perspectiva do recorrente – não se suscitando dúvida quanto à narração feita na acusação (transcrita no despacho sob censura) e que mereceu, nesta, a imputação de que o arguido incorreu na prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo art. 148.º, n.º 1, do Código Penal (CP) -, a sua discordância prende-se com a circunstância do despacho ter afastado a punição dos factos como crime, ao considerá-los tão-só como contra-ordenação nos termos do 38.º, n.º 1, alínea r), do Dec. Lei n.º 315/2009, que aprovou o regime jurídico da detenção de animais perigosos e potencialmente perigosos enquanto animais de companhia.

Ao invés da posição assumida no despacho, sustenta que os factos integram o crime indicado na acusação, por via da aplicação subsidiária das normas constantes do CP prevista no art. 34.º do mesmo Decreto-Lei, incluído na Secção II do respectivo Capítulo V, destinada aos “Crimes”, distinta da respectiva Secção III, reportada às “Contra-ordenações”.

Alega, ainda, que o art. 35.º do Dec. Lei n.º 315/2009 se refere ao envio do processo pela autoridade competente sempre que considere que a infracção constitui um crime e que a situação configura concurso de crime e contra-ordenação, nos termos do art. 36.º desse diploma.

Note-se que não se discute que o comportamento imputado ao arguido na acusação é havido como conduta negligente, por ter incorrido em violação do dever de cuidado que sobre si impendia de vigiar o seu animal de raça canina, adequado à produção do resultado, que, em concreto, consistiu em ofensa à integridade física (simples) de FG, em sintonia com o art. 10.º, n.º 2, do CP e decorrente do dever especial de vigilância do detentor de animal perigoso ou potencialmente perigoso (por referência ao elenco definido no Anexo à Portaria n.º 422/2004, de 24.04, dado tratar-se de um “pitt bull”), imposto, em geral, pelo art. 11.º do Dec. Lei n.º 315/2009, concretizado, no que aqui releva, no seu art. 13.º (1 - Os animais abrangidos pelo presente decreto-lei não podem circular sozinhos na via pública, em lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos, devendo sempre ser conduzidos por detentor. 2 - Sempre que o detentor necessite de circular na via pública, em lugares públicos ou em partes comuns de prédios urbanos com os animais abrangidos pelo presente decreto-lei, deve fazê-lo com meios de contenção adequados à espécie e à raça ou cruzamento de raças, nomeadamente caixas, jaulas ou gaiolas, ou, no caso de cães, açaimo funcional que não permita comer nem morder e, neste caso, devidamente seguro com trela curta até 1 m de comprimento, que deve estar fixa a coleira ou a peitoral).

A questão a dilucidar reconduz-se, pois, à interpretação das normas em apreço, consistindo em determinar o seu conteúdo e o seu pensamento, não esquecendo que, nos termos do art. 9.º do Código Civil, não deve cingir-se à letra da lei, que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência e que na fixação do sentido e alcance da lei se presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Não se justificando, aqui, um desenvolvimento acerca da temática dos elementos que regem a interpretação, a mesma pode sintetizar-se, como é doutrinária e jurisprudencialmente aceite, ao método que, partindo da interpretação literal (gramatical, linguística, verbal), se completa na interpretação lógica, deduzida de elementos racionais, sistemáticos e históricos, sendo ambas partes conexas de uma só e indivisível actividade (v. “Interpretação e Aplicação das Leis”, de Francesco Ferrara, traduzido por Manuel de Andrade, Colecção Cultura Jurídica, 2.º edição, Arménio Amado, Editor, Sucessor Coimbra, 1963).

Ora, os crimes previstos na referida Secção II do Capítulo V do Dec. Lei n.º 315/2009 estão tipificados nos arts. 32.º e 33.º deste, respectivamente como Ofensas à integridade física dolosas e Ofensas à integridade física negligentes, e, neste último caso (único que agora interessa), só atribuível a quem, por não observar deveres de cuidado e vigilância, cause a outra pessoa ofensas graves à integridade física, sendo que, pela aplicação subsidiária das normas constantes do CP (art. 34.º do diploma) e concretamente pelo art. 144.º do CP, na situação em concreto se não colocam.

Por seu lado, o comportamento imputado surge, expressamente, previsto no art. 38.º, n.º 1, alínea r), do Dec. Lei n.º 315/2009 (A não observância de deveres de cuidado ou vigilância que der azo a que um animal ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa causando-lhe ofensas à integridade física que não sejam consideradas graves), incluído na mencionada Secção III desse Capítulo, definido como negligente e, objectivamente, com resultado que exclui ofensas tipificadas como graves, sendo punido como contra-ordenação.

Da comparação do referido nesse arts. 33.º e 38.º, ressalta inequivocamente, em termos literais, que a distinção entre crime e contra-ordenação (ambos decorrentes de omissão de dever jurídico que incumbe ao detentor) opera relativamente ao resultado verificado, consoante se esteja, ou não, em presença de ofensas graves, tornando-se irrelevante, para o efeito, que a autoridade competente tenha, ou não, remetido o processo ao Ministério Público, aqui recorrente.

Na verdade, independentemente dessa circunstância, quer no âmbito penal, quer na vertente contra-ordenacional, o que importa é o respeito pelo princípio da legalidade na tipificação das infracções respectivas (arts. 1.º, n.º 1, do CP e art. 1.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, p. e p. pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10) e não o modo como se iniciou o procedimento.

Por seu lado, a prevista aplicação subsidiária das normas constantes do CP, consagrada naquele art. 34.º, não permite concluir que exista lacuna de previsão do comportamento imputado na acusação que tenha de ser preenchida através desse preceito, na medida em que essa conduta resulta enquadrável no citado art. 38.º.

Analisando, por seu turno, o preâmbulo do Dec. Lei n.º 315/2009, destaca-se que Pela experiência adquirida com a aplicação daqueles normativos legais conclui-se, no entanto, que a punição como contra-ordenação das ofensas corporais causadas por animais de companhia não é factor de dissuasão suficiente para a sua prevenção, pelo que se entendeu como adequado tipificar tais comportamentos expressa e claramente como crime, reportando-se ao anterior Dec. Lei n.º 312/2003, de 17.12, entretanto alterado pelo Dec. Lei n.º 49/2007, de 31.08, a cuja revogação procedeu (seu art. 44.º, n.º 1, alínea a)), o que, realçando o propósito legislativo de criminalizar comportamentos antes apenas tipificados como contra-ordenação, não distinguiu quanto à caracterização das ofensas decorrentes.

Se assim é, essa ausência de distinção, porém, poderá ter-se ficado a dever à circunstância de, no anterior Dec. Lei n.º 312/2003, não existir, ao nível da tipificação das contra-ordenações aí previstas, referência ao resultado da acção do agente infractor, tendo-se quedado pela definição dos comportamentos omissivos dos deveres impostos.

Deste modo, haverá que, para tanto, não conferir relevo a esse preâmbulo, já que, além de não constituir, em si mesmo, elemento proeminente de interpretação, não poderá conduzir a interpretação que contenda com as disposições do diploma.

Por seu lado, afigura-se compreensível que o legislador tenha operado distinções em razão do desvalor do resultado dos comportamentos, tal como acontece no domínio penal em sede de crimes contra a integridade física e, mesmo, no âmbito dos crimes por negligência.

Aliás, se alguma incongruência fosse vista perante o teor desse preâmbulo, não deixaria de ser meramente aparente, na medida em que neste, por natureza, não caberia uma explicitação pormenorizada dos elementos típicos da punibilidade.

A aplicação subsidiária daquele art. 34.º, não obstante a sua vertente generalizante, não poderá contrariar o que noutros preceitos, de carácter especial, se dispõe no Dec. Lei n.º 315/2009, o que remete para a interpretação do concurso de normas que se verifica entre esse art. 34.º e o citado art. 38.º, n.º 1, alínea r), tal como sublinhado pela Digna Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer.

Na verdade, ainda que tendo ambas aptidão para serem aplicadas aos factos narrados na acusação, a norma especial (desse art. 38.º, n.º 1, alínea r)) tem de prevalecer sobre a norma comum (desse art. 34.º), dado que contém elementos especializantes, isto é, independentemente de que a última seja uma norma de aplicação subsidiária e, assim, destinada apenas a colmatar lacunas do diploma, todos ou alguns dos seus elementos constitutivos são reduzidos na sua amplitude por uma caracterização específica.

A não ser assim, haveria uma duplicação da punição do mesmo facto, em violação do princípio “ne bis in idem”, dado que, no caso, não se trata de que a mesma infracção constitua crime e contra-ordenação, em que o agente seria punido apenas pelo crime (art. 36.º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 315/2009), mas sim de erigir à categoria de crime comportamento que expressamente é tipificado como contra-ordenação.

Todos os elementos interpretativos confluem, pois, para que os factos narrados na acusação não constituem crime, tal como decidido.

Aliás, estranho seria que, a uma norma de aplicação subsidiária, fosse conferida a dignidade de tipificar um crime, como resultaria se acolhida fosse a posição do recorrente, em detrimento das garantias da legalidade, da tipicidade e da intervenção mínima que ao direito penal são reservadas.

Se bem que admitindo que o legislador pudesse ter ido mais longe na protecção dos interesses que visou tutelar, a letra da lei não consente outra interpretação senão aquela que ficou fundamentada no despacho recorrido.

Finalmente, embora restringindo-se o recurso à rejeição da acusação, a consequência, que se extraiu, da rejeição liminar do pedido de indemnização civil não merece, também, reparo.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, assim,

- manter integralmente o despacho recorrido.

Sem custas, por delas, o recorrente estar isento.

Processado e revisto pelo Relator.

Évora, 5 de Junho de 2012

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(Carlos Berguete Coelho)

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(João Gomes de Sousa)

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[1] - Nota do membro da comissão de informatização da jurisprudência do TRE:

Sobre a questão concreta tratada no acórdão, não se encontrou jurisprudência publicada.

Posição contrária à defendida neste acórdão é sustentada por Plácido Conde Fernandes, in Comentário das Leis Penais Extravagantes (Organizado por Paulo Pinto Albuquerque e José Branco), Vol. I, a pág.318.

Segundo este autor, o concurso de normas deve ser resolvido tendo em atenção que o novo regime visa reforçar a proteção dos bens jurídicos e a confiança comunitária, sem ter revogado expressamente nenhuma norma do Código Penal (nem podia por apenas versar sobre uma ínfima parte das ofensas, as que são cometidas com meio perigoso, e dentro destas apenas aquelas em que foi usado um animal); visa, tendencialmente, a implementação de um regime especial para as ofensas graves provocadas por animal a que deu azo uma conduta negligente; manteve-se a graduação punitiva; inovou-se quanto à natureza procedimental pública da promoção penal.

A ofensa simples à integridade física por negligência, com queixa, é punida pelo art. 148.º, n.º1 do Código Penal, excluindo a contraordenação, prevista n art. 38.º, n.º1, al. r) do DL n.º 315/2009, por subsidiariedade (ex vi art. 36.º, n.º3).

Não tendo havido queixa, a ofensa à integridade física por negligência é sancionada pela contraordenação, prevista e punida pelo art. 38.º, n.º1, al. r), subsidiária face ao art.148.º, n.º1, do Código Penal. A contraordenação inova, por prever o dano ao invés do mero perigo de lesão (como sucedia anteriormente), visando evitar que estas condutas fiquem descobertas de proteção porque o ofendido optou por abdicar do procedimento criminal.

Diz o mesmo autor que “A única alternativa a este entendimento, absurda por colidir frontalmente com a enunciada ratio legis e a mens legislatoris, seria a descriminalização das ofensas simples negligentes, nestes casos em que um animal é a fonte do perigo, mediante degradação sancionatória para aquela contraordenação”

Fernando Ribeiro Cardoso