Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4356/10.9TBPTM.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
DESPESAS DE CONDOMÍNIO
DIREITO DE ACÇÃO
Data do Acordão: 01/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I- Um particular não pode impor a outro um encargo sem que exista um contrato ou, pelo menos, um consentimento do onerado.
II- A administradora de um empreendimento turístico em propriedade plural, nos termos do art.º 52.º do regime jurídico aprovado Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 228/2009, de 14 de Setembro, não pode, unilateralmente, definir o montante da prestação periódica.
III- Tal competência cabe à assembleia de proprietários, nos termos do art.º 1431.º, n.º 1, Cód. Civil, por força da remissão contida no art.º 53.º daquele regime jurídico.
IV- A emissão de facturas para pagamento da prestação periódica, sem que tenha havido assembleia geral a fixar os respectivos montantes, pode ser impugnada por via de acção.
V- Não viola o direito da R. de acesso aos tribunais a propositura da presente acção pelos proprietários contra aquela sem que tenham esperado que a R. tivesse proposto contra eles, por sua vez, uma acção comum ou um processo de injunção.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

“A… e mulher M… e Outros …”,
Intentaram a presente acção declarativa contra: I…, S.A..
Pedem que o Tribunal declare nulas ou inválidas e, consequentemente, a não produzirem quaisquer efeitos, as facturas indicadas na petição inicial, emitidas pela R em nome dos AA, bem como que a ré seja condenada a abster-se de exigir aos AA qualquer pagamento relativo àquelas facturas.
Alegam, para tanto e em síntese, que o prédio identificado no art.º 7.º da PI está constituído em regime de propriedade horizontal e constitui também um empreendimento turístico em regime de propriedade plural, explorado pela ré, onde os autores são proprietários e condóminos das fracções autónomas identificadas no art.º 10.º da PI. Sucede que a ré remeteu facturas a cada um dos autores, exigindo o pagamento da comparticipação nas despesas do condomínio, relativas a parte do ano de 2010, mas até à presente data nunca foram apresentadas as contas relativas às quantias entregues por conta do condomínio, nem foi realizada uma assembleia-geral onde fossem discutidas e aprovadas as contas relativas a 2008 e 2009, nem houve nenhuma assembleia-geral para aprovação do orçamento das despesas a efectuar no ano de 2010.
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A ré contestou, impugnando parcialmente os factos alegados pelos autores, alegando, em síntese, que as despesas em causa dizem respeito a todo o ano de 2010 e não apenas a parte dele, sendo que a comparticipação dos proprietários que não possuem as suas fracções em exploração turística para as despesas de funcionamento do empreendimento é fixada pelo orçamento da ré. E os orçamentos da ré, enquanto empresa que explora o empreendimento turístico não foram, nem podem ser aprovados em assembleia geral de proprietários, pois, se assim fosse, seria essa assembleia-geral a gerir o empreendimento, a fixar a estratégia dos negócios da empresa, a estipular que tipo de serviços seriam prestados e a correr os riscos do negócio.
Diz ainda que os autores não podem limitar o seu direito de acção contra eles, pelo que, se aqueles entendem que a acção que a ré pretende instaurar contra eles não tem razão de ser, é nessa acção que devem dizer tudo aquilo que entendem.
Conclui pela improcedência da acção.
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Os autores apresentaram réplica, admitindo que a ré, depois da entrada desta acção, remeteu uma carta a informar que o montante contido nas facturas reporta-se ao ano inteiro e não apenas ao semestre, sustentando os mesmos argumentos alegados na petição inicial.
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Foi a instância declarada extinta relativamente a alguns dos autores (…), por inutilidade superveniente da lide, e a autora … foi declarada parte ilegítima.
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Foi proferida sentença que, julgando a acção procedente,
a) declarou nulas as obrigações pecuniárias subjacentes às facturas indicadas nos factos assentes, emitidas pela ré em nome dos autores a que se referem tais facturas, não produzindo as mesmas quaisquer efeitos jurídicos;
b) condenou a ré a abster-se de exigir aos mesmos a tores qualquer pagamento relativo a essas mesmas facturas.
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Desta sentença recorre a R. alegando como se segue:
a) O edifico em causa na presente acção está constituído em propriedade horizontal e constitui também um empreendimento turístico cujo Título Constitutivo foi depositado e aprovado pela Direcção Geral do Turismo no dia 8 de Dezembro do ano 2000.
b) Por imposição da norma que se extrai do n.º 1 do artigo 64.º do DL 39/2008, de 4 de Março, o Capítulo VIII deste Decreto-lei (artigo 52.º a artigo 64.º) não se aplica a este empreendimento turístico, que, por isto, continua a ser regido nas relações entre a empresa exploradora do empreendimento e os proprietários pelo DL 167/97, de 4 de Julho.
c) A douta sentença recorrida fundamenta-se de direito nas normas do capítulo VIII do DL 39/2008, o que significa que o Meritíssimo Juiz “a quo” não se submeteu à norma do n.º 1 do artigo 64.º do DL 39/2008, e significa que, não aplicando à questão o DL 167/97, de 4 de Julho, fundamentou erradamente a decisão.
“As normas do presente capítulo não se aplicam aos empreendimentos turísticos em propriedade plural cujo título constitutivo já se encontre aprovado à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, sendo-lhes aplicável o disposto no Decreto-Lei n.º 167/97, de 4 de Julho, na redacção actualmente em vigor, e seus regulamentos”.
d) Este erro de direito foi determinante para que a acção tivesse sido decidida como foi, porque, como se pode verificar pelo teor da sentença, o fundamento da anulação das obrigações pecuniárias emergentes das facturas foi o incumprimento por banda da recorrente de algumas das obrigações previstas nas normas do Capítulo VIII do DL 39/2008.
e) Às questões a decidir neste processo tem de se aplicar o DL 167/97, de 4 de Julho, e este diploma não estabelece nenhuma das obrigações impostas em 2008 às empresas exploradoras dos empreendimentos turísticos pelos artigos 52.º a 64.º do DL 39/2008, o que faz com que a recorrente não tenha a obrigação de organizar as contas e de as submeter à aprovação de um revisor oficial de contas, não tenha a obrigação de realizar um relatório de gestão e de contas,
f) E faz com que caiam integralmente todos os reparos que na sentença são feitos à recorrente e que levaram à anulação das obrigações emergentes das facturas e à condenação de que a recorrente foi objecto.
g) O condomínio também é um empreendimento turístico e, por isto, a entidade que explora o empreendimento turístico é também quem exerce as funções do administrador do condomínio (n.º 1 do artigo 50.º do DL 167/97 de 4 de Julho).
h) A norma do n.º 2 do artigo 48.º do DL 167/97, estabelece que os proprietários que retirem as suas fracções autónomas da exploração turística (como é o caso de todos ao autores), passam a ser os responsáveis pelo pagamento das despesas relativas às suas fracções e, na proporção da permilagem destas últimas, passam também a ser também responsáveis pelas despesas de conservação, fruição e funcionamento relativas às instalações, equipamentos e serviços de utilização turística de uso comum.
i) É por estas razões que os autores são responsáveis, na proporção da permilagem das respectivas fracções, por todas as despesas relativas às instalações, aos equipamentos e serviços de utilização comum postos à disposição dos utentes do empreendimento turístico sem que possa ser exigida uma retribuição específica pela sua utilização (norma do n.º 4 do artigo 48.º do L 167/97).
j) O que faz com que todas as despesas de funcionamento das instalações, dos equipamentos e dos serviços de uso comum sejam suportadas pela entidade exploradora do empreendimento e pelos proprietários das fracções autónomas que saíram da exploração turística.
k) Mas, porque o exercício da actividade turística é uma indústria gerida pela empresa exploradora do empreendimento, a natureza, a quantidade e a qualidade das instalações, dos equipamentos comuns e dos serviços de utilização turística de uso comum dependem da estratégia comercial e industrial desta empresa e, por isto, não podem nunca ser fixados por uma assembleia de proprietários que não corre (nem pode correr) os riscos do negócio.
l) O negócio do turismo não é do condomínio: é da empresa que explora o empreendimento e, por isto mesmo, é ela que tem de estabelecer a estratégia com que opera no mercado.
m) É que os empreendimentos turísticos podem ter várias categorias e dentro destas existem vários níveis de exigência e, sendo assim, não pode ser a assembleia geral de proprietários a fixar o número de recepcionistas que devem estar na recepção para que seja dado um bom serviço, a estipular o número de nadadores devem estar nas piscinas para se dar uma boa assistência aos utentes destes equipamentos, a dizer quantos vigilantes devem estar de serviço para se garantir um bom nível de segurança das pessoa e dos bens, ou a fixar quantas vezes é que se devem fazer as limpezas nas escadas e nos corredores para se manter um elevado nível de higiene.
n) Se fizesse, quem faria a gestão do empreendimento não seria a empresa exploradora do empreendimento mas seria, isso sim, a assembleia geral de condóminos, porque a qualidade das instalações, equipamentos e serviços depende do valor que se gastar com eles.
o) São estas razões que fazem com que o orçamento de despesas de funcionamento das instalações, equipamentos e serviços de uso comum tenham de ser estabelecidos pela empresa que explora o empreendimento turístico: é ela que corre os riscos do negócio e estes riscos não correm nem podem correr por conta do condomínio.
p) Veja-se que o novo regime (o do DL 39/2008) confirma e aperfeiçoa o regime que o regime do DL 167/97 estabeleceu, e neste novo regime também não é a assembleia geral de condóminos que aprova o orçamento de despesas de funcionamento das instalações, equipamentos e serviços de uso comum nem as contas relativas a estes gastos.
q) O que acabou de se demonstrar não significa que os autores não possam contestar os montantes que lhes foram facturados, porque podem fazê-lo:
r) Os valores que lhes foram facturados aos autores para a totalidade do ano de 2010 variam entre os €586,69 e os €834,00 para cada fracção (sem descontos para o fundo de reserva) o que significa que, contra o pagamento destas importâncias, usufruem de instalações, equipamentos e serviços de uso comum que não existem na esmagadora maioria dos edifícios (recepção 24 horas por dia, segurança, piscinas, equipamentos desportivos, jardins, manutenção de 4 elevadores, limpezas, água quente nas fracções e etc. etc. etc.).
s) Tendo as facturas sido regularmente emitidas, caso os autores não as queiram pagar, podem sempre contestar o respectivo montante opondo-se num processo de injunção, ou contestar a acção declarativa que a recorrente possa propor contra eles (caso o processo de injunção não seja o processo adequado), ou podem ainda propor uma acção de prestação de contas.
t) O que não podem é via a juízo invocar legislação que não se aplica ao empreendimento e ignorar que a assembleia geral de condóminos não pode gerir a empresa que faz a exploração turística.
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Os recorridos contra-alegaram, defendendo a manutenção do decidido, nestes termos:
1. A recorrente ignora por completo a similitude entre ambos (o anterior e o novo) os regimes jurídicos dos empreendimentos turísticos.
2. Relativamente aos empreendimentos turísticos em propriedade plural (como está definido no artigo 52.º do novo regime jurídico dos empreendimentos turísticos, aprovado pelo D.L. n.º 39/2008, de 7 de Março e antigamente no n.º 2 do artigo 44.º do D.L. n.º 167/97, de 4 de Julho, com as alterações subsequentes), são-lhe aplicáveis subsidiariamente as disposições do regime de propriedade horizontal.
3. Dispõe o art. 53.º do novo regime jurídico dos empreendimentos turísticos que o regime aplicável às relações entre os proprietários dos empreendimentos turísticos em propriedade plural é o disposto no referido Decreto-lei n.º 39/2008 e, subsidiariamente, o regime da propriedade horizontal.
4. O n.º 1 do art. 58.º daquele diploma estatui que a administração dos empreendimentos turísticos em propriedade plural incumbe à entidade exploradora, salvo quando esta seja destituída das suas funções.
5. O disposto n.º 3 refere que a entidade administradora do empreendimento exerce as funções que cabem ao administrador do condomínio, nos termos do regime da propriedade horizontal.
6. No mesmo sentido, já dispunha o n.º 1 do art. 49.º do D.L. n.º 167/97 que “as funções que cabem ao administrador do condomínio, nos termos do regime da propriedade horizontal, são exercidas, sem limite de tempo pela entidade exploradora, salvo o disposto no número seguinte.”(sublinhado nosso).
7. Já o n.º 1 do art. 46.º daquele diploma referia: “sem prejuízo do disposto no presente diploma e seus regulamentos, às relações entre os proprietários das várias fracções imobiliárias dos empreendimentos turísticos é aplicável o regime da propriedade horizontal, com as necessárias adaptações resultantes das características do empreendimento.” (sublinhado nosso).
8. Quer ao abrigo do art. 46.º, n.º 1 e 49º, n.º 1, do anterior regime jurídico dos empreendimentos turísticos, contido no Decreto-Lei n.º 167/97, de 4 de Julho, com as alterações introduzidas e republicado pelo Decreto-lei n.º 55/2002, de 11 de Março, quer ao abrigo do disposto no art. 53.º do novo regime, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, o qual entrou em vigor em 7 de Abril de 2008, aplicam-se subsidiariamente as disposições do regime de propriedade horizontal aos empreendimentos turísticos em propriedade plural.
9. Com todas as consequências daí decorrentes, desde logo a imposição legal de prestação de contas e aprovação do orçamento de despesas no âmbito da realização das assembleias de proprietários, e observados todos os preceitos e princípios do regime da propriedade horizontal nestas matérias, que não estejam expressamente previstos no regime jurídico dos empreendimentos turísticos.
10. A administração condomínio e a exploração do empreendimento turístico são coisas bem diferentes, como resulta desde logo pelas funções distintas que cabem a cada uma das actividades.
11. No regime jurídico dos empreendimentos turísticos (seja o anterior ou novo), no caso dos empreendimentos turísticos em propriedade plural, como aquele que está em causa nos autos, podemos nele surpreender três tipos de interesses: o interesse colectivo, o interesse particular e o interesse público.
12. O interesse colectivo é aquele que diz directamente respeito aos proprietários das fracções autónomas ou apartamentos integrados no empreendimento turístico, que, de resto, não representa especificidades em relação ao condomínio ou regime da propriedade horizontal, como é patente no anterior e novo regime dos empreendimentos turísticos.
13. Esse interesse fica bem plasmado nas normas que determinam a aplicação do regime de propriedade horizontal, maxime na obrigação de convocar a assembleia de proprietários e de aprovar as contas do exercício anterior e o orçamento de despesas para o ano.
14. O interesse particular contido no regime dos empreendimentos turísticos, não consiste em dotar a entidade de administradora de qualquer natureza especial, mas em conceder-lhe determinadas prerrogativas.
15. Porém, estas não chegam ao ponto de serem demasiado radicais e esvaziar de sentido as normas que protegem o interesse colectivo dos proprietários de fracções autónomas (note-se que a entidade exploradora e/ou administradora não é forçoso que seja proprietária), podendo mesmo ser outra entidade que não a entidade exploradora a administrar o condomínio desde que cumpridos certos pressupostos.
16. Também não se confundem as contas e gestão da administração do condomínio com as contas e gestão da exploração do empreendimento e muito menos com as contas e gestão da sociedade entidade exploradora, a qual pode explorar um ou vários e distintos empreendimentos turísticos.
17. O interesse público diz respeito à defesa da actividade turística enquanto um sector de actividade preponderante para a economia do país, particularmente para a região onde proliferam os empreendimentos turísticos e cuja actividade principal é o turismo como é o caso do Algarve, cuja defesa fica patente por exemplo na imposição de a exploração do empreendimento ser feita por uma única entidade, entre outras.
18. Do lado oposto, a tese preconizada pela recorrente conduz a um contra-senso, que aliás não deixa de ser apontado na douta sentença – cf. pág. 20 -, de poder a prestação dos quantitativos das despesas a suportar pelos proprietários/condóminos ser fixada unilateralmente pelos administradores ou accionistas da recorrente.
19. Em rigor, a vingar tal tese o risco da actividade da recorrente corria por conta dos proprietários/condóminos recorridos que não têm qualquer intervenção nas decisões da administração da recorrente, e, em último caso, poderia mesmo a actividade desta ser financiada por estes últimos, fixando a recorrente o valor que lhe aprouvesse, já que não teria que prestar contas e aprovar o orçamento de despesas aos proprietários/condóminos.
20. A recorrente nem tão pouco cumpre o n.º 1 do artigo 6.º do regulamento de condomínio que dispõe “A assembleia reúne-se durante o mês de janeiro, mediante convocação da administração do empreendimento turístico para discussão e aprovação das contas respeitantes ao último ano e aprovação do orçamento das despesas a efectuar durante o ano.
21. Impõe-se assim concluir que ao não realizar as assembleias como de resto impõe a lei, não poderia ser outro caminho traçado pelo tribunal “a quo”, senão impor a nulidade das obrigações pecuniárias subjacentes às facturas indicadas na petição inicial, não produzindo as mesmas quaisquer efeitos, bem como
22. Andou bem o tribunal “a quo”, proferindo uma decisão acertada, percorrendo um caminho perfeitamente claro, lógico, coerente, fundamentando devidamente a sua decisão, contendo a referência expressa às disposições legais aplicáveis, não omitindo ou violando qualquer norma legal, que a recorrente nem sequer o diz, pelo que deverá ser integralmente mantida.
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Foram colhidos os vistos.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. O prédio denominado Clube …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º … e n.º …, sito …, está afecto ao regime de propriedade horizontal, e constitui também um empreendimento turístico em regime de propriedade plural, constituindo a ré a entidade que actualmente explora o mesmo para fins turísticos.
2. O referido prédio é composto por diversas fracções autónomas, distribuídas por dois blocos: bloco 1 e bloco 2.
3. Os autores “A… e mulher M… e Outros …” são proprietários e condóminos, respectivamente, das seguintes fracções autónomas integradas no BLOCO 1 daquele prédio:
(…);
4. Os restantes autores são proprietários, respectivamente, das seguintes fracções autónomas integradas no BLOCO 2 daquele prédio:
(…);
5. Em 17 de Setembro de 2010, a ré enviou a cada um dos autores uma carta com o conteúdo seguinte:
“Vimos pela presente remeter a V. Exa. a nossa factura referente à sua comparticipação nas despesas com o condomínio do edifício Clube … no período de 1 de Janeiro a 30 de Junho de 2010, relativo ao apartamento identificado em assunto do qual é proprietário, agradecendo antecipadamente a pronta liquidação da mesma por via de cheque à ordem da I…, S. A. a remeter para a sede da empresa com a indicação anexa do numero de factura ou facturas que o mesmo regulariza”.
6. Juntamente com aquela carta, a ré remeteu também aos seguintes autores, factura com data de 31.08.2010, com as seguintes rubricas e valores:
(…).
7. Foram remetidas as seguintes facturas aos seguintes autores:
(…).
8. A ré enviou aos autores uma carta através da qual os informa que o montante de despesas que lhes é reclamado diz respeito a todo o ano de 2010 e não apenas a um semestre.
9. A ré nunca convocou nenhum proprietário de fracções autónomas integradas no prédio referido em 1., para qualquer assembleia-geral ordinária ou extraordinária, onde estivesse incluído na ordem de trabalhos a prestação de contas.
10. A ré também não remeteu aos autores qualquer plano de administração ou o sujeitou à aprovação da assembleia-geral, nem apresentou, até à data da instauração desta acção, as contas relativas às quantias entregues por conta do condomínio e geridos pela ré.
11. Não foi realizada qualquer assembleia-geral relativa ao Clube…, cuja ordem de trabalhos consistisse na discussão e aprovação das contas respeitantes ao ano de 2009, o que sucedeu também relativamente ao exercício de 2008, e não houve aprovação do orçamento das despesas a efectuar durante o ano de 2010.
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Como se escreve na sentença recorrida, as questões a decidir são as seguintes: (1.ª) saber se a ré pode exigir o pagamento de despesas do condomínio sem a prévia aprovação de contas e do orçamento dessas mesmas despesas em assembleia geral de condóminos e (2.ª) se existe alguma limitação do direito de acção e de acesso aos tribunais da R., com a instauração desta acção.
Subjacente a isto, está um problema de ordem pública: a imposição de um encargo feita por um particular a outro.
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Notaremos em primeiro lugar que os AA. não põem em questão a sua obrigação de pagamento da prestação periódica, ao contrário do que se afirma nas alegações. Eles continuam a ser os responsáveis pelo pagamento das despesas relativas às suas fracções e, na proporção da permilagem destas últimas, passam também a ser também responsáveis pelas despesas de conservação, fruição e funcionamento relativas às instalações, equipamentos e serviços de utilização turística de uso comum. O que os AA. não querem é pagar sem saber por que estão a pagar, sem saber os critérios que fixam a prestação e, principalmente, porque não terem sido tidos nem achados na fixação dos valores.
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É aplicável ao caso o regime do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março, que foi alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 228/2009, de 14 de Setembro.
Os empreendimentos turísticos prestam serviços de alojamento «mediante remuneração» (art.º 1.º, n.º 1) sendo que o problema que se nos coloca tem que ver com o modo como se fixa esta remuneração.
Tratando-se, como se trata, de um empreendimento turístico em propriedade plural, nos termos do art.º 52.º, às «relações entre os proprietários dos empreendimentos turísticos em propriedade plural é aplicável o disposto no presente decreto-lei e, subsidiariamente, o regime da propriedade horizontal» (art.º 53.º).
Em relação ao pagamento das despesas do condomínio por parte dos proprietários, o n.º 1 do art.º 56.º estatui que “o proprietário de um lote ou fracção autónoma de um empreendimento turístico em propriedade plural deve pagar à entidade administradora do empreendimento a prestação periódica fixada de acordo com o critério determinado no título constitutivo”, destinando-se esta prestação (de acordo com o seu n.º 2) a fazer face às despesas de manutenção, conservação e funcionamento do empreendimento, incluindo as das unidades de alojamento, das instalações e equipamentos comuns e dos serviços de utilização comuns do empreendimento, bem como a remunerar a prestação dos serviços de recepção permanente, de segurança e de limpeza das unidades de alojamento e das partes comuns do empreendimento”.
No caso dos autos nada se sabe a respeito do título constitutivo, designadamente, dos critérios (se alguns) que foram definidos para a fixação do montante da prestação periódica.
Significa isto que esta omissão tem de ser suprida pela intervenção da assembleia de proprietários, figura que nada tem de estranho (como parece supor a recorrente) e que, pelo contrário, é fundamental na administração do empreendimento. A assembleia geral vem prevista em termos genéricos no art.º 63.º, cabendo-lhe, entre outras coisas, «aprovar, sob proposta do revisor oficial de contas, a alteração da prestação periódica, nos casos previstos no n.º 9 do artigo 56.º». Este preceito legal prevê e estatui o seguinte: «Independentemente do critério de fixação da prestação periódica estabelecido no título constitutivo, aquela pode ser alterada por proposta do revisor oficial de contas inserida no respectivo parecer, sempre que se revele excessiva ou insuficiente relativamente aos encargos que se destina e desde que a alteração seja aprovada em assembleia convocada para o efeito».
Ou seja, e é isto que pretendemos frisar, se para a alteração da prestação periódica é obrigatória a intervenção da assembleia geral, também o há-de ser na definição inicial dessa mesma prestação quando o título constitutivo não contiver critérios para a sua fixação.
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O argumento extraído do n.º 1 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 39/2008 (que manda aplicar o regime anterior quando o «título constitutivo já se encontre aprovado à data de entrada em vigor do presente decreto-lei») não colhe por dois motivos.
Por um lado, e como já se disse, da matéria de facto não consta qualquer referência àquele instrumento; não sabemos se existe, se foi aprovado, qual o seu conteúdo.
Por outro lado, o art.º 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 167/97, com redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 55/2002, dispõe que «às relações entre os proprietários das várias fracções imobiliárias dos empreendimentos turísticos é aplicável o regime da propriedade horizontal, com as necessárias adaptações resultantes das características do empreendimento», o que nos remete para o art.º 1431.º, n.º 1, Cód. Civil, que determina a realização de uma assembleia geral «para discussão e aprovação das contas respeitantes ao último ano e aprovação do orçamento das despesas a efectuar durante o ano».
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Transcrevemos da sentença:
«De todas as disposições legais acima mencionadas, é manifesta a obrigação legal da entidade exploradora do empreendimento turístico prestar anualmente contas aos proprietários das fracções autónomas, devendo essas contas ser aprovadas anualmente pela assembleia-geral ordinária, a ter lugar no 1.º trimestre de cada ano, a qual se destina, nomeadamente, a aprovar o relatório de gestão e as contas respeitantes à utilização das prestações periódicas e a aprovar o programa de administração e conservação do empreendimento, no que se inclui, naturalmente, o orçamento das despesas a efectuar durante o ano».
É que se não houver assembleia geral ficaremos na situação de um particular definir a outro um encargo, ficaremos na situação em que um particular age como se de um poder público se tratasse. Uma coisa é o Estado a definir impostos, regras de conduta, encargos, etc.. Outra bem diferente é um particular fazer o mesmo a outros sem o consentimento destes.
É o princípio da autonomia negocial, bem como o da vinculação por meio de contrato, que está aqui em questão. Não temos, no objecto do litígio, qualquer intervenção daqueles princípios mas tão-só o exercício, por parte da R., de um poder de facto, sem direito.
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Com isto também se arreda o argumento de que a intervenção da assembleia geral implica que «quem faria a gestão do empreendimento não seria a empresa exploradora do empreendimento mas seria, isso sim, a assembleia geral de condóminos, porque a qualidade das instalações, equipamentos e serviços depende do valor que se gastar com eles». Com efeito, não é a assembleia geral de proprietários que vai definir as estratégias económicas da R.; mas o que ela tem de definir é o valor da prestação periódica pois que não é possível ser só a R., autoritariamente, a fazer tal. E se tal implicar uma mudança de estratégia, pois que se mude a estratégia.
Transcrevemos, de novo, um excerto da sentença:
«É assim, manifesto que a ré encontra-se a violar as disposições legais acima mencionadas, as quais têm carácter imperativo, pois nenhuma entidade exploradora de um empreendimento turístico pode ignorar ou desrespeitar as normas que exigem a aprovação das contas anuais e a aprovação do programa de administração e de conservação do empreendimento para o ano seguinte, por parte da assembleia-geral de proprietários, e, ao invés, decidir essas questões unilateralmente, estando em causa o interesse geral e a ordem públicas».
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No nosso caso, temos que não foi realizada qualquer assembleia geral (o que nem sequer está em questão), ou seja, a R. decidiu como entendeu e como quis.
Assim, não pode exigir dos AA. os valores constantes das facturas que lhes apresentou.
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A segunda questão prende-se com saber se existe alguma limitação do direito de acção e de acesso aos tribunais, com a instauração desta acção.
Francamente, não compreendemos o argumento.
O que se alega é o seguinte: «As facturas foram regularmente emitidas e os autores, caso não as queiram pagar, têm de contestar o respectivo montante ou opondo-se num processo de injunção, ou contestando a acção declarativa que a recorrente possa propor contra eles (caso o processo de injunção não seja o processo adequado), ou ainda propondo uma acção de prestação de contas contra a recorrente para verificarem e conferirem todas as contas».
Os AA. não concordam com os valores indicados nas facturas e entendem que não têm a obrigação de as pagar. Que é que os impede de vir a tribunal defender essa posição? E em que é que esta acção impede a R. de fazer vingar o seu ponto de vista?
Teriam os AA. que esperar por uma acção proposta pela R.? Mas isto não tem sentido! Só lhes seria permitido defender-se na oposição à injunção? Mas o que é isto?! A R. continua a pensar que é um poder público e que as suas decisões são imediatamente executórias, só podendo ser impugnadas em determinados termos. Mas não tem absolutamente razão.
O que a R. defende, neste aspecto do recurso, acaba por fazer impender sobre os AA. o que ela não quer para si: o impedimento do acesso ao direito e aos tribunais. Como se escreve na sentença, «seria o direito de acção e de acesso aos tribunais dos autores que seria claramente posto em causa».
E, claramente, a R. não viu beliscado minimamente o seu direito de vir a tribunal expor as suas razões, do que, aliás, o presente recurso é ilustrativo.
Assim, também aqui a recorrente não tem razão.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Évora, 16 de Janeiro de 2014
Paulo Amaral
Rosa Barroso
José Lúcio