Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
647/12.2TBLLE-AE1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: PROCURAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 01/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
1 – Não sofre de nulidade por indeterminabilidade do objecto uma procuração que confere ao representante poderes para avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos, subscritas por um grupo de sociedades nela mencionadas, e ainda por qualquer outra sociedade que seja ou venha a ser participada por qualquer das sociedades antes identificadas.
2 – Com efeito, o objecto imediato dessas procurações traduz-se na própria concessão dos poderes de representação, com o âmbito ali definido; e o objecto de algum acto ou negócio que venha a ser praticado pelo representante determina-se individualmente, caso a caso, face ao conteúdo desse acto ou negócio.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório
1.1. Os executados J... e I... vieram deduzir oposição à execução comum, para pagamento de quantia certa, que lhes move Banco..., SA., todos com os demais sinais identificadores constantes dos autos.
Alegaram, em suma, que os avales prestados na livrança oferecida como
título executivo são nulos e ineficazes porquanto prestados por procurador munido de procurações nas quais não é determinável o seu objecto.
Alegaram, ainda, que assinaram o contrato na origem da emissão da livrança, o qual não estava sujeito a renovação automática, não tendo assinado o acordo/renovação, do qual apenas tiveram conhecimento com a execução instaurada, o qual foi assinado em seu nome com as referidas procurações, as quais são nulas.
Mais alegaram que se a livrança tivesse sido preenchida no termo do contrato já havia decorrido o prazo de prescrição e que as procurações com base nas quais foi assinada a livrança em seu nome, das quais a exequente teve conhecimento, não foram objecto de reconhecimento notarial, tratando-se de escritos particulares, sem qualquer outro tipo de solenidade ou formalidade.
Aduziram, ainda, que não são gerentes das sociedades mencionadas nas procurações, apenas a executada foi nomeada gerente de algumas delas, mas nunca exerceram actividade para as mesmas, representaram ou tiveram conhecimento da sua actividade, tendo a executada participação social numa das sociedades oferecida pelo seu pai, e que residiram no estrangeiro entre Julho de 2007 e Dezembro de 2010.
Alegaram, ainda, que apenas tiveram conhecimento da livrança com a execução intentada, que nada devem por não serem responsáveis pelo pagamento da dívida e que revogaram a procuração, não fazendo a exequente prova do valor em dívida, o qual é superior ao valor acordado no aditamento, concluindo pela nulidade das procurações, devido ao objecto não ser determinável, bem como pela nulidade do aditamento ao contrato de conta corrente e do aval prestado.
A exequente veio contestar, em suma, alegando serem válidas as procurações outorgadas pelos executados e, consequentemente, os avales prestados em seu nome, aduzindo que a executada foi gerente da sociedade executada/subscritora da livrança e indicada nas procurações e que não exige a lei formalidade alguma para a sua outorga.
Ouvidas as partes, veio a ser proferida sentença, na qual foi julgada a oposição improcedente, e determinado o prosseguimento da execução.
1.2. Os oponentes vieram então interpor o presente recurso, que foi admitido como de apelação.
A terminar as suas alegações, concluíram o seguinte:
“A - Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou improcedente a oposição à execução deduzida pelos ora Recorrentes, a qual conclui que “Mostrando-se o objecto das procurações inteira e perfeitamente determinado, não se coloca a questão da sua determinabilidade e, portanto, da sua nulidade.
B. Ora, o texto das procurações em análise é o seguinte: [...identificação do mandante...} constitui bastante procurador F... [...identificação do mandatário...] ao qual concede os poderes necessários para avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos, subscritas pelas sociedades M… - Sociedade de Construções, Lda., NIPC …, M… - Reparação e Aluguer de Máquinas, L.da NIPC …, M… - Transportes, L.da NIPC …, V… Auto Reparadora, L.da NIPC …, B… - Transporte e Bombagem de Betão, L.da NIPC …, M…- Promoção Imobiliária, L.da NIPC …., M… - Empreendimentos Imobiliários, L.da NIP.C …, C…­Transportes e Bombagens de Betão, L.da NIPC …, T…, L.da NIPC …, T… 1/- …, L.da NIPC … e por qualquer outra sociedade que seja ou venha a ser participada por qualquer das sociedades atrás identificadas. (o realce é nosso)
C. Tanto a livrança em causa, bem como o Aditamento com o qual a mesma foi entregue, não foram assinados pessoalmente pelos Recorrentes, mas sim pelo procurador, com expressa menção da qualidade em que interveio (factos provados 2 e 6).
D. O Recorrido teve conhecimento das procurações e examinou-as, o que se conclui do simples facto de ser feita menção expressa da representação dos Recorrentes com a expressão "PP." (factos provados 2 e 6), pois, se o Recorrido assinou (e aceitou celebrar) um Aditamento e uma livrança em branco com tal expressão aposta junto das assinaturas dos Recorrentes é necessariamente porque conhecia o conteúdo das procurações com base nas quais tais documentos foram assinados.
E. A sentença ora em crise faz uma análise do regime jurídico da livrança, do aval e da procuração, concluindo que o objecto das procurações em causa é inteira e perfeitamente determinado, não se colocando, por isso, a questão da sua validade.
F. A sentença limita-se a concluir que o seu objecto é determinável sem justificar tal conclusão, referindo apenas que o objecto da procuração é a prestação dos avales que o procurador entender ("para qualquer finalidade") para, deste modo, concluir pela sua validade.
G. É precisamente na abrangência da procuração que reside o problema da sua validade, ao deixar ao livre arbítrio do procurador / mandatário a prestação dos avales.
H. O vício de que a procuração padece é, pois, anterior à prestação de avales concretos e precisos.
I. A procuração em causa, cuja invalidade constitui thema decidendum, é de tal modo abrangente que não define qualquer critério para a prestação dos referidos avales referindo, inclusivamente, que os mesmos se podem destinar a "qualquer finalidade" e que podem ser prestador em beneficio de "qualquer outra sociedade que seja ou venha a ser participada por qualquer das sociedades atrás identificadas" - o pronome indefinido qualquer torna evidente a impossibilidade de determinação de algum critério orientador para a prestação dos avales a prestar bem como das sociedades em benefício das quais o mesmo é/pode ser prestado, permitindo até que sejam prestados avales em benefício de sociedades que não existiam no momento da outorga da procuração.
J. Realce-se, a este propósito, que o aval é uma garantia de uma outra obrigação pelo que, não limitar as finalidades do aval a prestar nem as sociedades em benefício das quais o mesmo será prestado é permitir que os Recorrentes sejam garantes de toda e qualquer obrigação, desde que a mesma esteja garantida por uma livrança à qual se aponha o seu aval.
K. E, por isso, neste particular, há, de facto, que seguir de perto o doutamente entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça no que diz respeito à abrangência da fiança (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2001) pois a abrangência e amplitude do texto da procuração é em tudo semelhante ao previsto no referido Acórdão, o que a torna indeterminável na medida em que equivale a autorizar que o procurador/mandatário celebre os contratos que entender, vinculando os mandantes pelo simples facto de tais contratos serem garantidos por uma livrança.
L. A procuração é, pois, um cheque em branco de tal modo amplo e abrangente que torna o seu objecto absolutamente indeterminável.
M. Refere ainda a sentença em crise que, dado o regime previsto no artigo 32.0 § 2.0 da Lei Uniforme das Letras e Livranças, o aval prestado em nome dos Recorrente é válida mas, na verdade, a validade cuja análise se discute no presente processo é prévia à prestação efectiva do aval.
N. Não pode esquecer-se que o actual portador da livrança é o Recorrente, que recebeu a procuração, a examinou e referiu expressamente no contrato e na livrança que os Recorrentes estavam representados por procurador sob pena de, com um argumento puramente formal, se permitir que um negócio jurídico nulo (a procuração) produza, afinal, efeitos jurídicos.
O. Tal artigo 32.° § 2.° da Lei Uniforme das Letras e Livranças está pensado apenas para os casos em que a prestação de aval, propriamente dita, não padece de qualquer vício, o que não sucede no presente caso, pois, sendo as procurações com base nas quais os avales foram prestados nulas, nulos serão também os avales.
P. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 280.° do Código Civil (CC), acerca dos requisitos do objecto negocial, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja (...) indeterminável; a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cfr. artigo 286.° do CC).
Q. Deste modo, tendo as procurações por objecto a atribuição dos poderes necessários para avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos (...) e por qualquer outra sociedade que seja ou venha a ser participada por qualquer das sociedades atrás identificadas, há que analisar a validade das mesmas, de acordo com as obrigações que poderiam, nos termos da mesma, ser assumidas em nome dos representados.
R. Devendo, assim, ser analisada a questão da validade da mesma, nomeadamente no que se refere à determinabilidade do seu objecto - requisito essencial de todo e qualquer negócio jurídico (cfr. artigo 280.° do CC).
S. Neste particular, é, pois, de seguir de perto o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2001 (Publicado na I série do Diário da República de 08.03.2001), nos termos do qual é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.
T. Pois, conforme se refere no douto acórdão, os critérios podem ser mais ou menos vagos: não podem é, ad nutum, deixar tudo ao arbítrio de uma parte ou de terceiro, circunstância que é precisamente a que se verifica com a procuração outorgada pelos ora Recorrentes, ao conferirem poderes para avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos, (. . .) e por qualquer outra sociedade que seia ou venha a ser participada por qualquer das sociedades atrás identificadas.
U. A falta de indicação da finalidade das livranças (i.e., a absoluta ausência de finalidade da mesmas), a possibilidade de avalizar livranças em favor de todas as inúmeras sociedades indicadas na procuração, bem como de quaisquer outras que venham a existir - por simples relação de participação - impõe concluir que estamos perante um objecto indeterminável.
V. Note-se, inclusivamente que, nos termos do disposto no artigo 483.º do Código das Sociedades Comerciais, a relação de simples participação existe quando uma sociedade é detentora de, pelo menos, 10% do capital sociedade de uma outra.
W. A abrangência dos avales que a procuração permite prestar é tal que a torna indeterminável, não sendo estabelecido qualquer critério para a prestação dos mesmos em nome e representação dos Recorrentes, o que torna o texto da mesma equivalente a dizer que o procurador pode prestar os avales que o mandatário/procurador quiser, sem qualquer outra limitação.
X. Ora, conforme se explicita no douto Acórdão 4/2001 (...) a determinação da prestação por alguma das partes ou por terceiro só pode ser pactuada se houver um critério a que essas entidades devam obedecer. Seria, assim, seguramente nulo o contrato pelo qual uma pessoa se obrigasse a pagar a outra o que esta quiser.
Y. E, note-se, na procuração em causa não é estipulado qualquer critério quer para a determinação da finalidade dos avales quer para a determinação das sociedades em benefício das quais os mesmos são prestados - ou seja, o mesmo não existe.
Z. O mesmo é dizer que, apesar de ser legalmente admissível que um aval seja prestado por procuração, não é legalmente admissível que uma procuração admita "avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos, (...) e por qualquer outra sociedade que seja ou venha a ser participada por qualquer das sociedades atrás identificadas", na medida em que não estão minimamente identificados quaisquer critérios para a determinação dos avales a prestar.
AA. Por isso se refere, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/1995 (Proc. 087204) que a determinabilidade da prestação para efeitos de garantia bancária comporta uma certa margem de indefinição, mas, embora se não exija a indicação de um valor máximo, não poderá deixar de indicar-se o critério objectivo que permita precisar o teor da obrigação, designadamente em função do respectivo título.
BB. Pelo que, é imperioso concluir-se pela nulidade da procuração com base na qual o mandatário avalizou a livrança dada à execução no presente processo em nome dos ora Recorrentes, bem como, consequentemente, pela nulidade do Aditamento e do aval da livrança entregue ao Recorrido e ora dada à execução, pois, sendo nula a procuração, o Aditamento e o aval prestados em nome dos ora Recorrentes são nulos e ineficazes quanto a eles.
CC. Sendo nula a procuração, o aval prestado equivale a uma situação de representação sem poderes, a qual vem regulada no artigo 268.°, n.º 1, do CC, de acordo com o qual se exige a ratificação do negócio, o que os Recorrentes nunca fizeram.
DO. Nem nunca tiveram conhecimento do Aditamento celebrado, o qual mostra bem que o contrato se renovou (sem o conhecimento dos Recorrentes) já que apenas se pode "aditar" um contrato que esteja em vigor, pelo que é imperioso concluir que os Recorrentes nada devem ao Recorrido
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser procedente, declarando-se a nulidade das procurações com base nas quais foi prestado o aval ora dado à execução, e, em consequência, reconhecendo-se que os Recorrentes nada devem ao Recorrido, assim se fazendo a acostumada Justiça.”
1.3. Pelo exequente/recorrido foram apresentadas contra-alegações, que concluem como se segue:
A. O ora recorrido é o legítimo portador de uma livrança no valor de € 428.483,46 (quatrocentos e vinte e oito mil, quatrocentos e oitenta e três euros e quarenta e seis cêntimos), cujo vencimento ocorreu em 15 de fevereiro de 2012, subscrita pela executada “B... – Transportes e Bombagem de Betão, Lda.” e avalizada por onze intervenientes, entre os quais os ora recorrentes.
B. A livrança e a posterior alteração ao contrato foram assinadas por um procurador (F..., gerente da sociedade subscritora e pai da recorrida), a quem os recorrentes conferiram, voluntariamente, poderes voluntários representativos para “avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos, subscritas pelas sociedades B… - Transportes e Bombagens de Betão, Lda., NIPC … (…)”.
C. “Procuração” é, simultaneamente, “o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos” (vide art. 262.º, n.º 1 do C.C.) e o documento em que esse negócio foi consignado.
D. Na origem da procuração está um contrato de mandato, que pressupõe que o mandatário esteja obrigado a praticar um ou mais atos jurídicos e que atue por conta do mandante, ou seja, os efeitos projetam-se na esfera jurídica do mandante.
E. No caso concreto, o representante F... comportou-se junto do ora recorrido como se de um verdadeiro procurador se tratasse, manifestando intenção de que os efeitos da assinatura da livrança e da alteração ao contrato em nome dos recorrentes os vinculassem e não a ele próprio – é o chamado requisito da contemplatio domini.
F. A douta sentença recorrida explica o requisito da contemplatio domini de forma muito clara: “(…) tal situação é perfeitamente admissível, conforme decorre do art. 8.º da LULL, segundo o qual apenas se exige, para que se produzam os efeitos da procuração, que o representante aponha a sua assinatura como tal, isto é, declarando que assina em nome do representado, especificando a pessoa deste último. § É o que sucede no presente caso, em que o procurador assinou F... e apôs os dizeres “Bom para aval ao subscritor P.P. de I… e J...”.
G. Conclui a douta sentença que “Deste modo, as procurações em causa conferem ao procurador poderes de representação determinados (outorgar em nome dos mandantes todo o tipo de contratos e avalisar livranças), conferindo-lhe, assim, um mandato especial”.
H. Aliás, constitui jurisprudência pacífica que “Não recai sobre os Bancos e outras instituições financeiras qualquer dever especial de verificação de poderes dos subscritores de títulos de crédito que permita concluir pela existência de falta grave da sua parte quando tal verificação não é efectuada. Antes cabe aos subscritores dos títulos de crédito que agem ou pretendem agir em representação de terceiros assegurarem-se da existência de poderes ou poderes suficientes de representação dadas as consequências que a lei, nomeadamente o art. 8.º da LULL, comina” – vide, por todos, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-04-2008, disponível em www.dgsi.pt.
I. A recorrente foi gerente da sociedade avalizada e foi sócia e gerente da M… (também executada nestes autos), uma sociedade que participou no capital social da B… .
J. O ora recorrido tem na sua posse, pelo menos, dois documentos que já juntou aos autos, outorgados pela recorrente, na qualidade de gerente das sociedades avalizadas.
L. Sendo a procuração válida e eficaz relativamente aos ora recorrentes, vincula-os a prestar, na sua esfera jurídica pessoal, como se dele fora parte, o aval à sociedade subscritora.
M. Como se explica ex professo no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-1991, disponível em www.dgsi.pt, “I – O artigo 8 da Lei Uniforme de Letras e Livranças, embora não se dirija directamente a permitir a assinatura por procuração, pressupõe claramente a sua admissibilidade, só que, para se produzirem os efeitos da procuração é indispensável que o representante aponha a sua assinatura na letra ou livrança como tal, isto é, que declare assinar em nome do representado, claramente especificando a pessoa deste último.”
N. A procuração foi o acto pelo qual os ora recorrentes conferiram ao mandante poderes de representação, tendo como consequência que, ao celebrar o negócio jurídico para cuja conclusão lhe foram dados poderes, o negócio produziu efeitos em relação àqueles.
O. O procurador agiu de acordo e dentro do limite dos poderes que lhe foram atribuídos e nem os recorrentes alegam que não conferiram poderes de representação nem que não assinaram a livrança e o contrato, nem tão pouco põem em causa as assinaturas nas procurações, nem a aposta na livrança, em seu nome.
P. O objeto dos poderes conferidos é determinado e traduz-se na assinatura de livranças para qualquer finalidade e na assinatura dos respetivos pactos de preenchimento e contratos.
Q. A obrigação do mandatário seria nula por indeterminabilidade se a sua atuação não tivesse de se pautar por um critério material.
R. Ora, a atividade do mandatário em nome do mandante deve cingir-se – e cingiu-se efetivamente – aos poderes perfeitamente determinados que lhe foram conferidos: avalizar livranças e subscrever contratos em que sejam partes as sociedades mencionadas.
S. O conteúdo da prestação do mandatário é, no caso concreto, perfeitamente concretizável, embora ainda não seja determinada no momento em que a obrigação se constituiu.
T. A citação do Prof. Antunes Varela, contida no ponto 46 da alegação dos recorrentes, a propósito dos requisitos do objeto negocial, é clara: “A prestação necessita, por fim, de ser determinável – ou seja, concretizável no seu conteúdo. Não se exige, nem no artigo 280.º (que trata do objecto do negócio jurídico em geral), nem no artigo 400.º (que trata da prestação debitória), que ela seja determinada, no momento em que a obrigação se constitui. Mas não se prescinde de que seja nessa altura determinável, que possa ser concretizada, de harmonia com os critérios estipulados pelas partes ou fixados na lei” (sublinhado nosso).
U. Destarte, o acórdão uniformizador de jurisprudência citado no ponto S. das conclusões apresentadas pelos recorrentes (Ac. n.º4/2011), é inaplicável ao aval de uma livrança, conforme ressalta, entre outros, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-03-2007: “Não se deve confundir o aval com a fiança, sendo ininvocável no caso vertente a doutrina do citado acórdão uniformizador, já que o regime da fiança é diferente do relativo ao aval. É preciso não perder de vista que o recorrente não foi demandado como fiador do negócio jurídico subjacente à livrança, mas como avalista da subscritora desta, como garante apenas da obrigação cambiária assumida pela subscritora, desencadeando o aval uma obrigação, independente e autónoma, de honrar o título cambiário, ainda que só caucione outro co-subscritor - princípio da independência do aval (artº 32º, aplicável ex vi artº 77º, ambos da LULL.”
V. Os recorrentes não foram demandados como fiadores do negócio jurídico subjacente à livrança, mas como avalistas da subscritora desta, como garantes apenas da obrigação cambiária assumida pela subscritora, desencadeando o aval uma obrigação, independente e autónoma, de honrar o título cambiário – é o chamado princípio da independência do aval que está em causa.
W. A livrança foi subscrita pela sociedade B…, como promitente pagadora, e avalizada em nome dos ora recorrentes, pelo respectivo procurador, apresentando para o efeito o referido instrumento de procuração emitido por aqueles a favor do último, nos termos dos artigos 30.º ex vi do art. 77.º, ambos da LULL.
X. Ora, dispõe o artº 32º, § 2º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), ex vi do artº 77º do mesmo diploma, que a «obrigação [do dador de aval] mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma».
Y. É o que resulta da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal, da qual a título de exemplo se refere o douto Acórdão de 20-05-2004 (Proc. 04B1522, disponível in www.dgsi.pt): “VII. A responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado, mas solidário, pelo que o avalista não goza do benefício da excussão prévia. VIII.
O aval representa um ato cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma a honrar o título, ainda que só caucione outro co-subscritor do mesmo – princípio da independência do aval (art. 32.º da LULL). IX. Vício de forma do título é apenas aquele que prejudica a respectiva aparência formal”.
Z. O avalista é um devedor solidário, passando a ser um devedor cambiário sujeito de uma obrigação cambiária autónoma, embora dependente no plano formal, da do avalizado.
AA. Não existe nem foi demonstrado qualquer vício formal que coloque em causa responsabilidade dos avalistas, aqui recorrentes.
BB. Naufraga, pois, a alegada nulidade do aval por alegada indeterminabilidade do objecto, visto que do simples exame da livrança preenchida se comprova, sem necessidade de recurso a quaisquer elementos externos, que o mesmo foi prestado com observância de todas as normas legais e dela decorre qual a medida da responsabilidade dos avalistas.
CC. Por tudo quanto foi dito, os recorrentes respondem pelo pagamento da livrança que constitui o título executivo da presente acção, isto é, respondem pela quantia peticionada no âmbito desta execução, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43.º, primeira a terceira partes, 47.º, primeira e segunda partes, 48.º, 1º e 2º, 77.º e 78.º da LULL, e 46.º, alínea c), do CPC.
Termos em que roga a este Venerando Tribunal se digne manter a sentença recorrida, por a mesma não ser merecedora de qualquer reparo”.
1.4. Cumpre agora conhecer do mérito do recurso de apelação que vem interposto.
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2 – Os Factos
Na primeira instância foi julgada provada a seguinte matéria de facto com relevância para a decisão de fundo agora impugnada:
“1- A exequente instaurou a presente execução apresentando como título executivo uma livrança subscrita pela sociedade B…- Transportes e Bombagem de Betão, Ldª, no valor de €428.483,46, datada de 14 de Maio de 2007 e com vencimento em 15 de Fevereiro de 2012 (doc. junto com o requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
2- Os executados J... e I... não assinaram pessoalmente a referida livrança, tendo a mesma sido assinada no verso com os seguintes dizeres Bom para aval ao subscritor P.P. de I… e J...” seguido da assinatura de F... (confissão e doc. junto com o requerimento executivo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
3- A referida livrança foi entregue à exequente para garantia das obrigações decorrentes de um acordo denominado “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente Caucionada” datado de 14 de Maio de 2007 (doc. junto a fls.24/32, cujo teor se dá aqui por reproduzido).
4- O qual foi subscrito pelos executados J... e I... (confissão e doc. junto a fls.24/32, cujo teor se dá aqui por reproduzido).
5- Tendo sido objecto de aditamento mediante acordo denominado “1ª alteração ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente Caucionada de 14 de Maio de 2007” (doc. junto a fls.33/36, cujo teor se dá aqui por reproduzido).
6- O qual foi subscrito em nome dos executados J... e I... por F... (confissão e doc. junto a fls.33/36, cujo teor se dá aqui por reproduzido).
7- Por escritos datados de 11 de Julho de 2007 os executados J... e I... declararam conferir os poderes necessários a F... para avalizar livranças para qualquer finalidade e assinar os respectivos pactos de preenchimento e contratos, subscritas pelas sociedades (…) B… - Transporte e Bombagem de Betão, Ldª NIPC … (…)” (confissão e docs. De fls.38/39, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).”
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3 – O Direito
Como é sabido, é pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, salvo questões de conhecimento oficioso.
Importa portanto apreciar o recurso de apelação interposto pelos oponentes, tendo presentes as conclusões por eles apresentadas.
Em face dessas conclusões, constata-se que os recorrentes colocam em discussão apenas uma questão, que vem a ser a validade das procurações com base nas quais o seu representante avalizou em nome deles a livrança dada à execução – defendendo os recorrentes que as procurações são nulas, por traduzirem um acto jurídico de objecto indeterminável, desrespeitando o art. 280º do Código Civil.
Efectivamente, é essa a única questão – visto que a pretendida nulidade do aval decorre inteiramente da nulidade do instrumento de representação.
Importa sublinhar este aspecto visto que a argumentação entre as partes, e mesmo alguma fundamentação da sentença recorrida, resvala notoriamente para a discussão sobre o próprio aval e a validade deste, nomeadamente chamando-se à liça comparações entre os regimes legais da fiança e do aval, e citando-se mesmo jurisprudência e doutrina referentes a essas figuras jurídicas, e discutindo-se sempre se o objecto do aval é determinado ou determinável, de forma a satisfazer ou não o disposto no art. 280º do CC.
Ora tal discussão não se afigura sequer pertinente para o caso.
Não faz sentido qualquer polémica sobre a indeterminabilidade do objecto do aval, visto que esse resulta claro do simples exame da livrança preenchida.
Objecto do aval é a obrigação cambiária garantida; e todos os seus contornos (v. g. a data do vencimento, o local do pagamento, o valor) ficaram determinados com o completo preenchimento do título de crédito, ressaltando agora do próprio documento, sem necessidade de recurso a quaisquer elementos externos, qual o montante da responsabilidade dos avalistas e demais aspectos atinentes ao cumprimento da obrigação.
O avalista garante a obrigação cambiária assumida pelo subscritor da livrança, desencadeando o aval uma obrigação, independente e autónoma, de honrar o título cambiário – é o chamado princípio da independência do aval (artº 32º, aplicável ex vi artº 77º, ambos da LULL).
E ninguém discute que o aval pode ser dado por procuração, nos termos do artigo 8.º, aplicável às livranças ex vi do artigo 77.º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças – sendo necessário apenas que a procuração conceda ao representante os poderes correspondentes, de forma a que o acto produza os seus efeitos jurídicos na esfera dos representados.
Portanto, repete-se, e tendo em conta as próprias conclusões do recurso, a questão que exige apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se são nulas, por indeterminabilidade do seu objecto, as procurações que basearam a prestação do aval dos oponentes na livrança dada à execução.
Ora neste ponto, crucial para as pretensões dos recorrentes, não cremos que lhes assista razão alguma.
Recorde-se que de acordo com o artigo 280º do CCivil, nº 1, “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física e legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”.
Deste modo, o artigo 280º apenas proíbe o negócio com objecto indeterminável, mas não proíbe o objecto indeterminado, desde que determinável. Por força do artigo 280º, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja indeterminável; mas é válido o negócio jurídico com objecto indeterminado, desde que seja determinável, designadamente com recurso às formas previstas no artigo 400º do CCivil.
Como refere Rodrigues de Bastos, in "Das Relações Jurídicas", II, 1968, 187, a determinabilidade do objecto negocial afere-se no verificar se a determinação “está contida potencialmente na referência a um acontecimento futuro, ou a critérios objectivos de determinação, ou, inclusive, à determinação realizada por um terceiro”.
Ora a procuração é, concretamente, “o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos” (art. 262º, n.º 1, do Código Civil). Por extensão, designa-se também por procuração o documento em que esse acto se corporiza.
Assim, não havendo (nem estando alegados) quaisquer vícios que afectem a validade dessa manifestação de vontade dos ora recorrentes, os actos que o representante, no uso dessa procuração, venha a praticar em nome deles, desde que se situem dentro dos poderes conferidos, produzem naturalmente os seus efeitos na esfera jurídica dos próprios recorrentes, como actos seus (que o foram, embora praticados através do seu representante, por eles mandatado).
Nada na lei obsta a que se emitam procurações em termos mais ou menos amplos, pode perfeitamente o instrumento de representação ser conferido para um leque alargado de situações, aí mencionadas em termos mais ou menos genéricos.
Só assim não acontece quando a própria lei impõe restrições, exigindo que a procuração seja especial ou com poderes especificados, como acontece em certas situações (v. g. entre cônjuges) ou para certos actos (v. g. casamento).
Mas normalmente e correntemente admite-se a procuração em termos gerais, como acontece todos os dias com as procurações forenses.
Não há, pois, qualquer nulidade das procurações em análise, por indeterminabilidade do respectivo objecto – o objecto das procurações é a concessão de poderes de representação nos termos nelas consignados.
Outra coisa é o objecto dos actos e negócios jurídicos que com base nelas o procurador venha a praticar: mas então o objecto desses actos e negócios determina-se, naturalmente, caso a caso.
Não se descortina, no caso, nenhuma indeterminação, muito menos indeterminabilidade, no objecto das procurações em apreço, quer o imediato quer o mediato.
Sobre este ponto, cita-se em apoio o sumário do Acórdão do STJ 15/11/2005 (in CJ/STJ, 2005, 3º, 115):
I – A procuração pela qual se conferem a outrem os poderes necessários para proceder à venda de todo e qualquer prédio ou direito, situado onde quer que seja, pelo preço e condições que se entenda, outorgar as escrituras, receber os preços e tudo fazer e promover como se ele mandante fosse, confere um mandato especial.
II – Um tal mandato não tem um objecto indeterminável, por o objecto poder vir a ser individualmente determinado.
III- Desta forma o mandato conferido não é nulo por ser indeterminável o seu objecto”.
Por último, não pode deixar de salientar-se que os oponentes e recorrentes estão a batalhar contra um facto próprio (diga-se aliás que em momento algum afirmam que o seu representante exorbitou os seus poderes de representação).
Na verdade, foram eles que outorgaram as procurações e definiram o seu conteúdo (e, diga-se, em rigor foram também eles que prestaram o aval). Os termos que delas ficaram a constar são os que resultaram das suas vontades, livremente expressas. Intentar aproveitar-se de uma falada nulidade que a existir seria imputável a eles próprios aponta perigosamente para o desrespeito das regras da boa fé, princípio subjacente a todo o Direito das Obrigações – e justificaria que se concluísse, caso fosse de aceitar a invocada nulidade, estarmos perante uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Mas não é preciso chegarmos a este ponto: como se explicou, é inaceitável a argumentação tendente a demonstrar a nulidade das procurações por indeterminabilidade do objecto.
E desse modo improcede todo o recurso interposto, que nessa nulidade tinha o seu único suporte.
Pelo que fica confirmada a sentença impugnada.
*
4 – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Notifique.
Évora, 16 de Janeiro de 2014
(José Lúcio)
(Francisco Xavier)
(Elisabete Valente)