Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3088/12.8TBLLE.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANO BIOLÓGICO
Data do Acordão: 02/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- Tendo resultado provado que a Autora iniciou a travessia da passadeira a pedalar uma bicicleta, ao invés de a levar à mão como lhe seria consentido, inculca que o fez continuamente, sem se certificar, tendo em conta a distância que a separava do veículo que transitava na adjacente rotunda e a respectiva velocidade, que o podia fazer sem perigo de acidente.
II - Nessa medida se pode concluir que a Autora não agiu com a prudência exigível a uma pessoa medianamente cuidadosa e previdente, colocada nas circunstâncias concretas do caso e que tal conduta omissiva contribuiu, em termos de causalidade adequada para a produção do dano, já que na formulação negativa da causalidade adequada – que é a mais ampla - a condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre inteiramente inadequada, indiferente para aquele resultado, o que neste conspecto não se mostra afastada.
II- Porém, face ao incontroverso reconhecimento da comprovada e acentuada culpa do condutor do veículo automóvel pela desatenção com que seguia, o excesso de velocidade que imprimia ao seu veículo e não abrandamento à aproximação de uma passagem de peões, a percentagem de culpa a atribuir ao condutor na produção do acidente deve ser de 80%, sendo, portanto, de 20% para a lesada.
III- A circunstância de não se ter provado o valor das roupas da Autora que ficaram danificadas não é obstativo à pretensão deduzida porquanto deverá a mesma Autora ser indemnizada através do recurso à equidade (art.º 566ºnº3 do Cód. Civil).
IV- Não se tendo provado que entre a data do acidente e a data da consolidação das lesões a Autora tenha ficado privada do recebimento de quaisquer salários ou que estivesse na expectativa de os receber, não há, fundamento legal para lhe atribuir qualquer indemnização por hipotética perda de ganho nesse período;
V- Como explica o Conselheiro Sousa Dinis o dano corporal deve ser visto: 1) Como dano não patrimonial, na sua vertente de dano moral e estético ou enquanto gerador de esforços acrescidos para a manutenção do mesmo rendimento; 2) ou como dano patrimonial futuro, sempre que seja gerador de rebate profissional concreto, ocasionando perda dos rendimentos do trabalho 3) ou como dano a se biológico, enquanto violação do direito ou ofensa à integridade fisio-psíquica.
VI- Actualmente a problemática da avaliação e indemnização do dano corporal na sua tripla vertente está contemplada nas tabelas constantes da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio de 2008 alterada pela Portaria nº 679/2009 de 25 de Junho.
VII- Perante matéria tão complexa como é a do cálculo do dano corporal, em quadro de desiderato de uniformização e, consequentemente, de consecução nesta matéria do princípio da igualdade, os critérios da Lei, i.e os previstos naquela Portaria não poderão deixar de ser considerados pelos Tribunais, como ponto de referência;
VIII- Porém, se a aplicação de tais critérios ao caso concreto conduzir a um resultado que o senso de justiça e os padrões habitualmente seguidos nos tribunais não permitam aceitar, deverá esse resultado ser corrigido para moldes mais adequados e ajustados, dentro do que consinta e exorte o critério da equidade (art.º 566º nº3 do C.C.).
Sumário da relatora
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I- RELATÓRIO

RJ intentou em 8.11.2012 acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra … Companhia de Seguros, SA (após integração por fusão da R… Seguros, SA), pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 1.079.470,58, a título de danos patrimoniais e morais, acrescida de juros de mora vincendos correspondendo:

a) Dano patrimonial com perda roupa, bicicleta etc.- € 245,00;
b) Dano temporário (25-02-09/24-02-11)- € 55.000,00;
c) Dano permanente incapacidade profissional absoluta- € 253.946,00;
d) Dano permanente contratação terceira pessoa- € 430.279,58;
e) Dano permanente necessidades ajudas técnicas. € 55.000,00;
f) Dano permanente estético- € 95.000,00;
g) Dano permanente actividade sexual - € 10.000,00;
h) Dano biológico com sequelas existenciais - € 80.000,00.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que foi vítima de um acidente de viação quando conduzia um velocípede na passadeira e foi atropelada por um veículo automóvel cuja responsabilidade havia sido transferida por contrato de seguro para Ré, tendo em decorrência do mesmo sofrido ferimentos graves e ficado com sequelas irreversíveis que lhe provocaram danos patrimoniais e morais.
Referiu igualmente que o condutor do veículo foi, pela prática dos mesmos factos, julgado e condenado, por sentença já transitada, por um crime de ofensas à integridade física grave por negligência.
A Ré deduziu contestação na qual invocou a prescrição do direito à indemnização, entendendo ainda que a responsabilidade na produção do acidente é da Autora, na medida em que não cumpria o estatuído na Código da Estrada relativamente à circulação de velocípedes, não tendo iluminação no mesmo nem usando capacete, para além de circular a pedalar na passadeira, não seguindo atenta ao trânsito, podendo e devendo ter-se apercebido da aproximação do veículo automóvel se tal não sucedesse, impugnando ainda os danos invocados e o montante do pedido, por excessivo.
Na réplica, a Autora pugnou pela improcedência da excepção peremptória de prescrição, vindo a ser proferido despacho saneador que a decidiu no sentido da sua improcedência. Procedeu-se à condensação, fixando-se a matéria de facto assente e a base instrutória.
Realizada audiência final, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, condenou a Ré ... Companhia de Seguros, SA a pagar à Autora RJ a quantia de total de € 258.030,00, sendo € 90.030,00 a título de danos patrimoniais e € 168.000,00 a título de danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico), acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à data da prolação da sentença até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis, com excepção do custo do velocípede no valor de € 30,00, cujos juros de mora são devidos desde a citação, absolvendo-a do demais peticionado.

2. Desta sentença apelaram ambas as partes.

3. A Autora formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pela Mma. Juiz a quo, em 02.06.2016 que condenou a Ré ... COMPANHIA DE SEGUROS SA, a pagar à Autora RJ a quantia de € 258.030,00, sendo tal quantia correspondente a 60% do valor indemnizatório apurado em virtude de se ter considerado pela concorrência de culpa do lesado e do lesante na percentagem de 40% e 60% respectivamente.

2. Na presente acção, a Autora (ora Recorrente), intentou acção declarativa de condenação com forma de processo ordinário contra ... Companhia de Seguros, SA (após integração por fusão da R… Seguros, SA), pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 1.079.470,58, a título de danos patrimoniais e morais, acrescida do juros de mora vincendos

3. Por sentença proferida em 30 de Maio de 2012, no âmbito do processo comum com tribunal singular n.º 737/09.9 TALLE, e transitada em julgado em 20 de Junho de 2012, foi o ali arguido B… condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos artigos 13º, 15º, al. a), e 148º, n.º 1 e n.º 3, do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à razão diária de €6,00, no total de €1.200,00,

4. No dia 26 de Fevereiro de 2009, pelas 00.20 horas, antes do embate, a Autora seguia de bicicleta juntamente com o marido, na mão de trânsito contrária à do veículo de matrícula “OX” que seguia no sentido Vilamoura-Quarteira na Av. Dr. Carlos Mota Pinto, na localidade de Quarteira, que no local configura uma recta com dois sentidos de trânsito, precedida por uma rotunda, divididos por um separador central e tem duas faixas de rodagem para cada um dos sentidos, e, quando se encontrava imediatamente antes da rotunda, pretendeu mudar de direcção e iniciou a travessia da passadeira a pedalar, da direita para a esquerda atento o sentido de marcha Quarteira-Vilamoura, e sem se aperceber que o veículo “OX” circulava antes da rotunda e em sentido contrário que e aproximava com os faróis médios acesos, o qual circulava pelo menos a 60 km/h, cujo condutor, quando se apercebeu do velocípede travou ainda mas embateu no mesmo na hemi-faixa do sentido Vilamoura-Quarteira.
5. Em consequência do embate, a Autora apresenta:
I) Crânio-TCE com quadro de tetraparesia de predomínio esquerdo e distal com afasia parcial; membro inferior direito- cicatriz na coxa direita de 10 cm e 4,5 cm proximal para distal de carácter operatório, cicatrizes múltiplas com carácter operatório na face anterior do terço proximal com 7 cm e outra na região média com 13 cm e área cicatricial com crosta central e facilmente ulcerável na região anterior da perna com 13*5 cm e outra cicatriz distal com 13 cm e deformidade do terço distal da perna e rigidez com equino varo do pé; membro inferior esquerdo- cicatrizes múltiplas com carácter operatório na face anterior do terço proximal com 7 cm e outra na região mediana com 13 cm e área cicatricial com crosta central e facilmente ulcerável na região anterior da perna com 13*5 cm e outra cicatriz distal com 13 cm, para além de rigidez em equino do tornozelo e encurtamento de 2 cm.
II) Défice Funcional Temporário Total de 323 dias;
III) um Quantum Doloris no grau 6/7;
IV) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 70 pontos em 100;
V) Dano Estético Permanente no grau 6/7;
VI) Em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, bem como de quaisquer outras dentro da sua área de preparação técnico-profissional;
VII) Repercussão Permanente na Actividade Sexual no grau 5/7.
VIII) Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas no grau 5/7;
IX) Necessidades, a título permanente, de ajudas medicamentosas, tratamentos regulares, ajudas técnicas, adaptação domicílio e/ou veículo, bem coo de ajuda de terceira pessoa a tempo parcial (artigos 13º, 18º a 21º, 24º e 28º a 36º da Base Instrutória).
6. A Mma. Juiz a quo analisou os diversos pressupostos da Responsabilidade civil, tendo verificado pela existência dos mesmos, no entanto, quanto aos pressupostos da culpa e do dano, cremos que não esteve bem a Mma. Juiz a quo na valoração feita atribuindo concurso de culpa na percentagem de 60% para o lesante e 40% para a lesada, bem como ao valor indemnizatório fixado tendo-se afastando em larga medida do peticionado.
7. Nos presentes autos estamos perante uma situação de colisão de veículos, tendo já uma decisão penal condenatória nos termos da qual ficou provada a culpa do lesante e conforme se verifica pela análise dos pontos 5 e 7 dos factos dados como provados o autor da lesão não conseguiu afastar a presunção de culpa que sobre si recaia nos presentes autos, demonstrando-se que actuava em excesso de velocidade e desatento, o que não lhe permitiu evitar a colisão, pois constam da matéria de facto no local do embate havia iluminação pública com visibilidade normal, e o lesante que circulava a uma velocidade de cerca de 60Km/hora e tinha ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS de 0,46 g/lt.
8. Ao se aperceber de que a vítima atravessava a faixa de trânsito por onde circulava, o condutor ainda accionou os mecanismos de travagem do seu veículo mas, atenta a forma desatenta como conduzia e a velocidade que imprimia ao veículo, só se apercebeu da presença da vítima mesmo à sua frente, já muito próximo desta, não conseguindo imobilizar a sua viatura, sem antes embater naquela, não tendo tido qualquer outra reacção senão travar e guinar o volante para a direita.
9. Tal era a velocidade a que o autor da lesão circulava que as marcas de travagem do veículo “OX” começaram ainda na rotunda e têm a extensão de 21,40 m para o pneu esquerdo e 13,60 m para o pneu direito e na sequência do embate, o velocípede da Autora foi projectado na outra faixa de rodagem a 28,40 m do local daquela e a Autora foi projectada a 19,40 m do local do mesmo.
10. Ou seja, se o Condutor, autor da lesão não fosse em excesso de velocidade, conforme se provou, teria tido tempo suficiente para travar ao ver a Autora a atravessar a passadeira. o Autor da lesão, ao conduzir da forma como conduzia dentro de uma localidade e conhecendo o local, conforme se provou que conhecia, sabia que qualquer pessoa poderia atravessar a passadeira e ele não teria tempo de travar, no entanto nada fez para o evitar, não conduzindo com a prudência devida conforme as condições o exigiam, acabando por colidir contra a A., provocando danos, agindo com culpa na modalidade de negligência na forma consciente.
11. Entendeu a Mma. Juiz a quo aplicar nos presentes autos o disposto no art. 570.º que disciplina as situações em que o lesado contribuiu para a produção ou agravamento dos danos, cabendo, nestas situações, ao tribunal determinar, com base nas consequências que delas resultaram a determinação do valor indemnizatório, no entanto foi dado como provado que o A. conduzia em excesso de velocidade, com uma taxa de álcool positiva e que em virtude da forma desatenta como conduzia e a velocidade que imprimia ao veículo, só se apercebeu da presença da vítima mesmo à sua frente, já muito próximo desta, não conseguindo imobilizar a sua viatura. Ou seja, o comportamento da A. não contribuiu, em nada, para a verificação dos danos, não podendo a Mma. Juiz a quo concluir conforme concluiu.

12. Se a A. estivesse a caminhar ou transportasse o velocípede em mão, a colisão ocorreria sempre, porque a mesma se deveu única e exclusivamente à conduta do condutor do veiculo automóvel. Face a velocidade que o lesante vinha, a A. nunca se conseguiria desviar quer indo a pé ou de velocípede, nem o facto de vir a caminhar se tornava mais visível aos olhos do condutor do veiculo, o que não obstante conduzir um velocípede fazia-o com a prudência devida.
Sem, prescindir,
13. Admitindo que em virtude das infracções cometidas pela lesada esta agiu com culpa – na modalidade de negligência inconsciente – contribuindo para a produção dos danos, cremos que esteve mal a Mma. Juiz a quo ao considerá-la na medida de 40%, pois a censurabilidade da conduta do condutor do veiculo automóvel é bastante superior ao da A., condutora do velocípede, desde logo em virtude da velocidade que imprimia no veículo no local onde se encontrava e da forma desatenta como conduzia conforme ficou provado.
14. Outro factor a ter em conta aquando da avaliação da culpa é o risco próprio do veículo que se conduz. O risco e danos provenientes de um automóvel são muito mais gravosos do que os de um velocípede, tendo já a nossa jurisprudência se debruçado bastante sobre a questão, concluindo o incumprimento de um condutor de veiculo automóvel é muito mais gravoso que o de um velocípede e como tal a percentagem da sua responsabilidade dever se superior, neste sentido refere o ac. Do STJ de 01.07.1997, proc. 430/97, Ac. STJ de 21.05.2012, no qual foi relator Pinto Monteiro e ac. Do STJ de 09.09.2008, no qual foi relator Garcia Calejo, assim, em face dos factos dados como provados no caso concreto, e tratando-se da ponderação e avaliação da culpa uma ponderação casuística, analisando-se da jurisprudência indicada, teremos de concluir que no caso concreto o grau de censura ao comportamento do condutor do veiculo é muito superior ao da condutora do velocípede, nunca podendo o nível da culpa ser graduado em 60% para o lesante e 40% para a lesada, mas sim uma percentagem muito superior para o lesante, condutor do veiculo automóvel.
15. Não esteve bem a Mma. Juiz a quo na ponderação efectuada quanto danos sofridos pela A., pois tenho em conta o estado da A., o valor indemnizatório atribuído deveria ter sido outro, pois, provou-se, conforme pontos 24 e 25 dos factos dados como provados, que a Autora era dona do velocípede em que circulava no momento do embate que tinha o valor de pelo menos € 50,00 e que aquando do embate a Autora vestia roupas que ficaram danificadas de valor não concretamente apurado, valor não concretamente apurado não significa que fossem desprovidos de qualquer valor, sendo que quanto às mesmas a Mma. Juiz deveria ter fixado certa quantia, uma vez que se provou que as mesmas ficaram danificadas e como tal inutilizáveis, entende a A. que quando ao vestuário deveria ter sido atribuído, pelo menos o montante de € 20,00. Totalizando a quantia de € 70 quanto aos danos patrimoniais emergentes.
A A. peticionou a quantia de € 55.000,00 relativa aos salários que deixou de auferir desde o acidente até à data da alta, bem como quanto ao dano temporário de défice funcional, de repercussão absoluta de possíveis actividades profissionais e de quantum doloris. A Mma. Juiz a quo na sua ponderação dos danos apenas se refere a este valor de € 55.000,00 como se tivesse sido peticionado a título de salários que a A. deixou de auferir no período em que esteve internada. Ora, como resulta expresso da petição inicial este valor não diz apenas respeito aos salários não auferidos, mas também ao dano temporário e ao quantum doloris. Não obstante ser verdade que a A. não auferia qualquer remuneração à data do acidente, também é verdade que se não fosse o acidente a A. estaria apta a arranjar trabalhado, devendo o mesmo ser considerado e atribuído à A. um dano, em virtude dos salários que deixou de auferir no período do internamento e de incapacidade absoluta para o trabalho, correspondente a uma indemnização de, pelo menos € 4.725,00.
16. Refere a Mma. Juiz a quo quanto ao custo de contratação de terceira pessoa e de ajudas técnicas, calculados nos termos dos artigos 564.º e 566.º do CPC, mediante a prova produzida e os factos dados como provados, é notório o estado deficitário em que a A. se encontrava após o facto lesivo, bem como as sequelas e incapacidades existentes para toda a vida, não se podendo simplesmente afastar o valor peticionado com os argumentos apresentados, pois, resulta ainda da perícia médico-legal junta aos autos que a A. necessitará de “ajudas técnicas permanentes, ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares, ajudas técnicas, adaptação de domicilio”, tais adaptações e ajudas são fulcrais para a vida da A., devendo proceder o peticionado quanto ao valor de ajudas técnicas de € 55.000,00.
17. Quanto à contratação de terceira pessoa, a própria Mma. Juiz a quo considera que a A. despenderá a quantia de € 257.600,00 durante a sua vida, tendo por fim atribuído um valor indemnizatório de € 150.000,00. Entendemos, pois, que tal redução é completamente desprovida de fundamento, devendo a A. ser indemnizada tendo em conta a quantia que, efectivamente, vai ter de despender, no valor de € 257.600,00.
18. Aceita-se o valor a que se logrou chegar relativo à actividade profissional futura de € 222.600,00. Deste modo, deverá ser atribuída a A. uma quantia indemnizatória nunca inferior a € 539.995,00.
19. Relativamente à avaliação dos danos morais tendo em conta a matéria de facto dada como provada, entendemos que esteve bem a Mma. Juiz a quo, só sendo de chamar especial atenção aos valores indemnizatórios a que chegou, sendo, na óptica da A., muito inferiores aos efectivamente merecidos em face da própria fundamentação apresentada pela própria Mma. Juiz.conforme resulta da Douta sentença a A. “Autora, Para além disso, sofreu um Quantum Doloris no grau 6/7, um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 70 pontos em 100, um Dano Estético Permanente no grau 6/7, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, bem como de quaisquer outras dentro da sua área de preparação técnico-profissional, apresentando Repercussão Permanente na Actividade Sexual no grau 5/7 e Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas no grau 5/7, necessitando a título permanente, de ajudas medicamentosas, tratamentos regulares, ajudas técnicas, adaptação domicílio e/ou veículo, bem como de ajuda de terceira pessoa a tempo parcial. Por outro lado, apurou-se que a Autora era pessoa saudável e activa e, após o acidente, passou a andar agitada, ansiosa e alterando o seu comportamento atentas as sequelas físicas que sofreu, estando limitada nas suas actividades do dia-a-dia, não sendo pessoa autónoma. (negrito e sublinhado nosso)
20. Ora, em face de tudo quanto exposto na sentença, e já incluindo a valor anteriormente referido a título de indemnização por perda de capacidade de ganho – ou seja, desenvolvimento de actividade profissional, – entendeu a Mma. Juiz a quo fixar a quantia de € 280.000,00 (sendo que € 222.600,00 respeitam à perda de capacidade de ganho), ou seja, quanto ao peticionado a titulo de dano permanente de incapacidade profissional, dano estético, dano permanente actividade sexual e dano biológico o valor único de € 57.400,00, valor francamente baixo em virtude dos danos efectivos sofridos pela A.
21. Pois, tendo em conta factos dados como provados o valor atribuído a titulo de indemnização tem, forçosamente que ser outro muito superior ao atribuído na Sentença, devendo por isso ascender, no mínimo a quantia de € 538.946,00 conforme peticionado, pois a A. deixou de ter uma vida normal para sempre, nunca poderá ser capaz de se reger sozinha, apresenta grande dor e sofrimento com elevados danos estético e na sua actividade sexual, bem como na prática de lazer e desporto, acrescendo ao facto de que nunca poderá ter filhos.
22. Face ao exposto, deverá o quantum indemnizatório ser alterado para um total de, pelo menos € 1.078.941,00.
NESTES TERMOS, DEVERÁ:
O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROVADO E PROCEDENTE ALTERANDO-SE A SENTENÇA PROFERIDA, ATRIBUINDO A CULPA EXLUSIVA AO LESANTE E CONSEQUENTEMENTE RESPONSABILIZANDO-SE A RÉ DO PEDIDO FORMULADO.”.

4. A Ré, por seu turno, formulou as seguintes conclusões:
1. A douta sentença mostra-se ferida de erro na apreciação da prova, flagrantes contradições e omissões de apreciação da prova e de violação da Lei.
2. O Tribunal a quo procedeu a uma errada aplicação das normas constantes da Lei à factualidade constante dos autos, e, bem assim, a uma errada apreciação dos factos e sua adequação à prova produzida.
3. A A., com total displicência e notória má-fé, veio aos autos trazer uma versão do acidente em que imputava a responsabilidade integralmente ao segurado da Recorrente.
4. Versão essa encapotada de forma a melhor servir os seus inconfessáveis e mal-disfarçados interesses.
5. Pretendeu a A. dar a entender que circulava pelo passeio e que, como qualquer vulgar peão, estava habilitada a atravessar por uma passadeira, montada na sua bicicleta, pedalando descontraidamente.
6. E que, nessas circunstâncias, foi atropelada pelo veículo do segurado da Recorrente, que não lhe teria cedido o direito de prioridade.
7. De que prioridade a A. julgava beneficiar, é algo que se ignora, dado que o Código da Estrada é por demais explícito ao referir que um ciclista só é equiparado a um peão no atravessamento de uma via se transportar a sua bicicleta à mão.
8. O que a A., ao longo do processo, sempre procurou esconder, foi o facto de que, tanto ela, como o marido, circulavam pela Av. Carlos Mota Pinto, no centro da vila da Quarteira, pela estrada, como, de resto, lhes competia.
9. E que, chegados à rotunda onde veio a ocorrer o acidente, por mera comodidade, decidiram não a contornar, como a isso estavam obrigados, optando por cortar caminho para o seu destino, atravessando a passadeira destinada aos peões.
10. No local, a Av. Carlos Mota Pinto tem duas faixas em cada sentido, delimitadas por um separador central arborizado.
11. Na zona onde ocorreu o embate existe ainda uma rotunda, que, no seu redondel central, também dispõe de árvores e arbustos.
12. A A. seguia à frente do marido cerca de 2 a 3 metros.
13. Era de noite, mas, não obstante, a A. circulava numa bicicleta completamente desprovida de luzes ede reflectores âmbar obrigatórios nas rodas.
14. Também não dispunha de capacete nem de colete reflector, sendo um mero vulto escuro a circular pela via pública.
15. Circulava completamente distraída e desatenta.
16. Comprova-o o facto de o marido, que ia atrás dela 2 a 3 metros, com um ângulo de visão mais reduzido relativamente ao trânsito que circulava em sentido contrário, se ter apercebido da aproximação do veículo seguro na Ré e ter parado, ao contrário da mulher, aqui A., a qual, tendo perfeita visibilidade relativamente ao automóvel, desprezou a sua aproximação por completo e avançou despreocupadamente, quiçá, convencida (mal) de um direito de prioridade (que não possuía).
17. Mas mais do que a distracção da A. e a sua falta de percepção relativa ao automóvel, o que aqui está em causa é uma contra-ordenação grave cometida pela A. .
18. Em caso algum, a A. poderia ter usado a passadeira para efectuar a mudança de direcção à esquerda !
19. Numa aproximação a uma rotunda, a A. tinha obrigatoriamente que nela ter entrado e tomado a faixa que melhor servisse o seu propósito de voltar à esquerda, depois de contornar a rotunda.
20. E nunca fazer uso de uma passadeira para peões para encurtar caminho, ou para qualquer outro propósito do seu exclusivo interesse.
21. Nestas circunstâncias surge o veículo seguro na Recorrente, cujo condutor, como qualquer condutor normal, estava longe de imaginar que, à sua frente, numa passadeira para peões, se ia deparar com ciclistas a atravessarem a via num local onde tal não é permitido por lei !
22. O condutor do veículo, ao ser confrontado com o súbito e inopinado aparecimento de uma ciclista, sem luzes, vinda de um separador arborizado, ainda teve a presença de espírito e tempo para travar e até guinar para a direita, dando à A. o benefício de mais espaço e até, eventualmente, guinar ela para a esquerda para evitar o carro.
23. No entanto, face ao inesperado da situação, à proximidade da ciclista e à velocidade a que ela seguia, o embate foi inevitável.
24. A douta sentença reconheceu o comportamento impróprio e indevido da A. , comportamento esse que configura uma contra-ordenação grave !
25. No entanto, tendo dado como provado que o condutor do veículo automóvel circulava a 60km/h dentro de uma povoação onde a velocidade está limitada a 50km/h, imputou-lhe a prática de uma conduta que configurava uma contra-ordenação leve !
26. Tendo concluído pela verificação de concorrência de culpas, numa justificação atabalhoada em que confunde os condutores e as suas percentagens de culpas, para, no fim, fixar essa distribuição em 60/40 desfavorável à Recorrente, não obstante a justificação.
27. A Recorrente não se pode conformar com tal concorrência de culpas.
28. Como facilmente se reconhece, houve duas infracções distintas, com qualificações diferentes e, sobretudo, com consequências bem diversas.
29. A A. infringiu uma miríade de disposições do Código da Estrada :
a) Os artigos 61º, 90º e 93º, que estabelecem regras para condução de um velocípede, impondo que, desde o anoitecer ao amanhecer, os velocípedes só podem circular com utilização dos dispositivos que, para o efeito, forem fixados em regulamento, designadamente as luzes.
b) O artigo 104º, al. b), que equipara ao trânsito de peões a condução à mão de velocípedes de duas rodas.
c) O artigo 35º, n.º 1 que prevê que um condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.
d) O artº 21º, que prevê que quando um condutor pretender (…) mudar de direção ou de via de trânsito, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção
30. Nada disto a A. fez ou acatou !
31. Pelo contrário, ao condutor do veículo seguro na Recorrente apenas se lhe pôde assacar circular ligeiramente acima do limite máximo de velocidade para o local – 60km/h num local de 50km/h.
32. Não restam dúvidas sobre qual dos condutores efectuou a manobra determinante para a eclosão do sinistro, aquela que constitui o verdadeiro nexo de causalidade acidente.
33. Como é óbvio e patente, pretendendo a A. voltar à esquerda num local onde havia uma rotunda, estava obrigada a contorná-la e, no seu interior, tomar a saída que melhor servisse os seus interesses.
34. E, se o tivesse feito, o seu trajecto nunca se teria cruzado com o do automóvel seguro na Recorrente, pois, dada a diferença de velocidades entre ambos, no tempo que a A. levaria para contornar a rotunda de bicicleta, o veículo automóvel já teria saído da mesma há muito !
35. Pode assim dizer-se que, seguramente, a infracção causal do acidente foi a praticada pela A., que ignorou o trajecto que deveria OBRIGATORIAMENTE ter tomado e desprezou o demais trânsito que circulava, concentrada apenas no seu desejo egoísta de encurtar o seu caminho, fosse por que meios fosse, infringindo que disposições fossem !
36. Quanto ao condutor do veículo automóvel o que se pode dizer é que, ainda procurou evitar a A., designadamente guinando para a sua direita e dando-lhe espaço para se desviar ela para a esquerda e evitá-lo, o que demonstra bem que seguia atento ao trânsito, não lhe sendo, no entanto, exigível que esteja
à espera que lhe apareça numa passagem de peões, uma bicicleta, uma motorizada, um automóvel ou um camião TIR !!!
37. Dado o carácter súbito e completamente inesperado como a A. lhe surgiu pela frente, e a proximidade a que ambos se encontraram, o embate seria sempre inevitável, circulasse o automóvel a 60 ou a 50km/h.
38. E, tendo o embate a 60km/h tido as consequências que teve, alguém acredita que se o carro circulasse apenas a menos 10km/h, as consequências seriam muito menos gravosas ?
Como é óbvio, a resposta só pode ser negativa !
39. Quer isto dizer que, se a A. tivesse tomado a trajectória a que estava obrigada em vez de infringir a lei, o acidente teria sido evitado.
40. Logo, como facilmente se depreende, foi a infracção cometida pela A. que foi causal do acidente, pois, ao atravessar, inopinadamente, na passadeira de peões, causaria sempre o acidente tanto a um condutor que circulasse a 60 km/h como a um que circulasse a 50km/h.
41. Como tal, considera-se que não foi correcta a apreciação e valoração que a Mma Juiza efectuou, no que respeita à divisão de responsabilidades, a qual, pelas razões aduzidas, deverá ser imputada na sua totalidade à A. por manifesta infracção aos comandos dos artigos citados no ponto 29.
42. Relativamente aos danos, também a douta sentença pecou por uma excessiva liberalidade.
43. Se alguns dos pedidos foram liminarmente indeferidos por ser manifesta a sua desadequação e falta de fundamento, a má-fé no seu leitmotiv e a ganância evidente, outros houve que, lamentavelmente, foram parcialmente atendidos em condições com que a Recorrente não pode concordar.
44. Quanto à contratação de terceira pessoa, com um pedido exorbitante de € 430.279.58, o Tribunal veio a conceder uns incríveis € 150.000.00, de todo inaceitáveis e de justificação que desafia a evidência e as boas práticas.
45. O Tribunal chegou a esse valor com base num inconcebível custo de € 400.00 mensais que não foi minimamente fundamentado, e que não teve em conta certos factores, que não poderão, nem deverão ser escamoteados, como sejam o facto de ter sido fixada à A. uma incapacidade elevada, de 70Pts e de o Tribunal ter baseado as suas contas numa esperança média de vida de 80 anos, sendo certo que essa esperança média de vida é aferida com base em pessoas com uma vida sã e normal, no pleno uso das suas capacidades físicas e mentais e não de pessoas com graves problemas de saúde que, muito provavelmente não alcançarão essa idade, pelo que, no presente caso, atenta a incapacidade que foi fixada à A. deveria haver uma redução da esperança média de vida em, pelo menos, 20 anos.
46. Por outro lado, resulta da experiência comum a extrema volatilidade e mobilidade da comunidade chinesa, conhecida por não fixar raízes nos países em que se estabelece temporariamente, sempre com o fito de regressar à pátria.
Consta dos autos que, não obstante a incapacidade que lhe foi atribuída, a A. tem viajado amiúde para a China onde tem passa alguns períodos, e onde reside a família e, nomeadamente, a filha.
47. Ora é sabido que o custo de vida em Portugal (ainda) é consideravelmente superior ao da China pelo que qualquer indemnização que vier a ser arbitrada deverá ter isso em consideração, sob pena de se estar a atribuir um ganho indevido e injustificado à A. – A título de exemplo, o Tribunal estimou o custo previsível da terceira pessoa em € 400.00 com Segurança Social incluída, quando o mesmo custo na China certamente não chegaria sequer a € 100.00 mensais
48. Peticiona, por fim, a A. o pagamento das quantias de € 253.946,00 a título de dano permanente incapacidade profissional absoluta, € 95.000,00 como dano estético, € 10.000,00 a título de dano permanente actividade sexual e € 80.000,00 a título de dano biológico.
49. Com a devida vénia, tal pedido é manifestamente absurdo e deverá ser liminarmente indeferido.
Relativamente a estas três componentes do desmesurado pedido, entendeu o Tribunal não os autonomizar, o que torna mais difícil a sua compreensão e alcance, para além de que a sua fundamentação é por demais opaca.
50. A verba de € 222.600.00 que foi atribuída a título de danos patrimoniais revela-se exageradíssima e completamente desfasada tendo em conta o caso sub judice, tendo o Tribunal baseado as suas contas no valor do salário mínimo até à idade da reforma – 66 anos.
51. Importa referir que a A. é de nacionalidade chinesa, não fala português e a sua actividade laboral foi nula, nunca tendo contribuído de qualquer forma para as receitas do país que a acolheu e que dada a sua escolaridade básica, dificilmente encontraria trabalho fora da comunidade a que pertence, em restaurantes chineses ou lojas de conveniência explorados (em mais do que um sentido) por compatriotas e onde um salário mínimo de € 530.00 mensais não passa de uma … miragem.
52. Tanto quanto é do conhecimento da Recorrente, não existe salário mínimo na China, onde profissões como aquelas a que as habilitações da A. permitiriam almejar, seguramente não chegam aos € 100.00 mensais, pelo que, pelas razões expendidas nos arts. 45º e 46º destas conclusões, tais valores deverão sempre ser corrigidos para baixo, e muito.
53. Quanto aos demais danos, a Recorrente não poderá deixar de avocar a Portaria 679/2009 de 25.06.
Para um Quantum Doloris de grau 6/7, a Portaria prevê uma indemnização até € 3.283.20.
Para um Dano Estético de grau 6/7, a Portaria prevê uma indemnização até € 7.438.50.
Num total de € 10.721.70
54. Tendo a sentença englobado os danos patrimoniais e o dano biológico numa só indemnização, verifica-se que sobra para este, descontado o QD e o DE uma verba superior a € 46.678.00 o que, crê-se, é exageradíssimo e deverá ser reduzido ao seu justo valor.
55. Por último, pelas razões amplamente vertidas, discorda-se do facto de o Tribunal não ter operado a redução da indemnização nos termos do artº 494º do Cód.Civil.
56. No que concerne à dinâmica do acidente, a douta sentença violou o disposto nos arts 342º nº 1, 483º e 487º e 494º do Cód. Civil.
57. No que toca às indemnizações arbitradas, também a douta sentença é merecedora de censura porquanto violou flagrantemente o disposto nos arts 562º, 563º e 570º nº 1 do Cód. Civil, e descurou flagrantemente o linhas orientativas da Portaria 377/2008 de 26 de Maio e 679/09 de 25.06.
58. A douta sentença revela-se, pelo exposto, completamente desadequada à factualidade efectivamente provada, tendo arbitrado valores irrazoáveis e nada condizentes com aquela, excedendo manifestamente a mais lata noção de equidade que se possa imaginar e nem sequer tendo em conta a redução a operar ao abrigo do disposto no artº 570º nº 1 do Cód.Civil
Termos em que, alterando a factualidade provada e não-provada nos termos aqui requeridos, uma vez demonstrada à saciedade a razão que lhe assiste, revogando na totalidade a douta sentença em matéria da responsabilidade pela produção do acidente, que deverá ser considerada como cabendo única e exclusivamente à A. FARÃO V.EXAS A HABITUAL JUSTIÇA !!!”.

5. Ambas contra-alegaram pugnando pela improcedência dos recursos da parte contrária.

6. Cumpriram-se os vistos.

7. OBJECTO DOS RECURSOS
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, face às enunciadas em ambos os recursos, consistem em saber:
i) Se se pode atribuir à Autora a culpa exclusiva na eclosão do acidente (como pretende a Ré/apelante);
ii) Se se verificam os pressupostos de aplicabilidade do nº1 do artº 570º do Cód.Civil e em caso afirmativo se a proporção fixada na sentença de 60% para o condutor seguro na Ré e de 40% para a Autora se mostra adequada ou se deve ser aumentada em sentido desfavorável aquele;
iii) Quanto à indemnização
(Com referência ao recurso da Autora):
a) Se deve ser atribuída indemnização pela perda da roupa da Autora;

b) Se deve ser considerado o “ dano temporário “(de 25.2.2009 a 24.2.2011) apesar de a Autora não auferir qualquer remuneração à data do acidente, atribuindo-se uma indemnização que tenha por referência o salário mínimo nacional à data dos factos;

c) Se deve ser atribuída à Autora a quantia peticionada de € 55.000,00 referente às “ ajudas técnicas “ de que vai carecer;

d) Se havia fundamento para reduzir a indemnização atribuída para “ contratação de terceira pessoa” de € 257.600,00 para € 150.000,00, como se fez na sentença recorrida;

e) Se o valor de € 280.000,00 atribuído para compensar o “ dano permanente incapacidade profissional absoluta”, o “ dano estético permanente”, o “ dano permanente de actividade sexual “ e o “ dano biológico” é insuficiente, devendo ser fixado em € 1.078.941,00.

Com referência ao Recurso da Ré

f) Se o montante de € 150.000,00 atribuído na sentença para contratação de terceira pessoa é excessivo por não ter sido ponderado que a esperança média de vida da Autora decresceu em cerca de 20 anos em razão das lesões que padece e que passando a Autora largas temporadas na China o valor da remuneração dessa pessoa deve ser ajustado ao nível de vida nesse país;

g) Se a indemnização pelo dano biológico que foi fixada em € 222.600,00 é excessiva tendo em conta que a Autora é de nacionalidade chinesa, não fala português, e que a perspectiva de actividade laboral que poderia ter não lhe daria a contrapartida de € 530.00 mensais;

h) Se os valores arbitrados para o “ quantum doloris”e o dano estético são excessivos.


II- FUNDAMENTAÇÃO


A) É a seguinte a factualidade dada como provada na 1ªinstância e que não foi posta em crise por qualquer dos apelantes:

1) Por sentença proferida em 30 de Maio de 2012, no âmbito do processo comum com tribunal singular n.º 737/09.9 TALLE, e transitada em julgado em 20 de Junho de 2012, foi o ali arguido B… condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos artigos 13º, 15º, al. a), e 148º, n.º 1 e n.º 3, do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à razão diária de €6,00, no total de €1.200,00, pela prática dos seguintes factos:

“1. No dia 26.02.2009, pelas 00h20m, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula “OX” na Av. Dr. Carlos Mota Pinto, dentro da cidade de Quarteira, área desta comarca de Loulé.

2. O local configura uma recta com dois sentidos de trânsito, precedida por uma rotunda, divididos por um separador central, e tem duas faixas de rodagem para cada um dos sentidos.

3. O arguido circulava a uma velocidade de cerca de 50Km/hora e tinha ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS de 0,46 g/lt.

4. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, a ofendida RJ seguia num velocípede sem motor, vulgarmente conhecido por bicicleta, e efectuava o atravessamento da faixa de rodagem, da esquerda para a direita, na passadeira para peões.

5. A ofendida RJ circulava a pedalar o velocípede, sem capacete e sem que o velocípede tivesse as luzes acesas.

6. Ao se aperceber de que a vítima atravessava a faixa de trânsito por onde circulava, o arguido ainda accionou os mecanismos de travagem do seu veículo mas, atenta a forma desatenta como conduzia e a velocidade que imprimia ao veículo, só se apercebeu da presença da vítima mesmo à sua frente, já muito próximo desta, não conseguindo imobilizar a sua viatura, sem antes embater naquela, não tendo tido qualquer outra reacção senão travar e guinar o volante para a direita.

7. A ofendida RJ foi embatida no corpo pelo veículo conduzido pelo arguido, com extrema violência, quando já se encontrava no final do atravessamento da referida passadeira de peões.

8. O arguido conhecia o local do acidente e sabia da existência de uma passadeira logo após a rotunda.

9. Como consequência directa e necessária do embate supra descrito, resultaram para a ofendida as seguintes lesões traumáticas:

“Traumatismo craneoencefálico com hemorragia sub-aracnóideia com edema cerebral e sangue na cisterna interpeduncular; fractura cominutiva grau 3 da perna esquerda, fractura cominutiva dos ossos da perna direita complicada de ferida; fractura da diafise do fémur direito fechada”.

10. Tais lesões resultaram, directa e necessariamente em doença, por um período de pelo menos 365 dias, sendo 365 deles com afectação grave para a capacidade de trabalho.

11. Devido à gravidade das lesões, a ofendida teve de ser submetida a diversas intervenções cirúrgicas.

12. Como consequências permanentes, resultaram ainda para a ofendida: “Síndroma pos-traumático crânio encefálico. Cicatrizes exuberantes ao nível das fracturas dos membros expostas. Provável encurtamento de membro inferiores e assimetria. Alterações graves da capacidade de trabalho e auto-sustento, marcha, mobilidade, respiração, controlo de esfíncteres, equilíbrio, linguagem, fala, deglutição, respiração, cognitiva, comportamental, memória e comunicação, com completa incapacidade total para qualquer profissão. Limitação total e grave na capacidade de satisfação das necessidades da vida diária e total dependência de terceira pessoa.”

13. O arguido representou como possível que o facto de não ter abrandado ao aproximar-se de uma passagem de peões e conduzir de forma desatenta viesse a causar um acidente de viação do qual resultassem ofensas à integridade física graves a outrem, mas actuou na convicção de que tal não aconteceria.

14. O arguido ficou muito abalado com o acidente e visitou várias vezes a vítima no Hospital; em julgamento demonstrou arrependimento e pesar pelas consequências trágicas do acidente;

15. O arguido celebrou com a seguradora ... Companhia de Seguros, S.A., seguro obrigatório de responsabilidade civil, através da apólice n.º …, válida na data dos factos, relativa ao veículo “OX”.

16. O Hospital Distrital de Faro intentou uma acção declarativa de condenação contra a ... Companhia de Seguros, S.A., que terminou com a celebração de um acordo de transacção, tendo a Seguradora efectuado o pagamento de € 6.737,76 (seis mil setecentos e trinta e sete Euros) relativa ao pagamento de despesas hospitalares decorrentes dos tratamentos que a vítima RJ recebeu após o acidente dos autos.

17. O arguido é mecânico, aufere € 700,00 (setecentos Euros)/mês; sozinho, em casa arrendada; tem despesas com a renda de casa, €300,00 (trezentos Euros/mês); estudou até ao 9º ano;

18. Não tem antecedentes criminais.” – doc. de fls. 24 e segs., cujo restante teor se dá por integralmente reproduzido (Alínea A) dos Factos Assentes).

2) Na data do sinistro a Autora tinha 31 anos (Alínea B) dos Factos Assentes).

3) A Ré, com carta de 04-01-2010, comunicou à Autora que incorporou activos e passivos da R… Seguros SA (Alínea C) dos Factos Assentes).

4) Após o acidente a Autora foi imediatamente assistida por uma ambulância do INEM de Faro, que a transportou de urgência para o Hospital Distrital de Faro, onde foi assistida pelo serviço de urgência (Alínea D) dos Factos Assentes).

- Da Base Instrutória-

5) No local do embate havia iluminação pública com visibilidade normal (artigo 40º da Base Instrutória).

6) A bicicleta na qual a Autora circulava não dispunha de farolins traseiro vermelho nem dianteiro branco, nem dos reflectores de cor âmbar, ou dos reflectores pequenos em toda a circunferência da roda e a Autora circulava sem colete reflector (artigos 41º a 43º da Base Instrutória).

7) No dia 26 de Fevereiro de 2009, pelas 00.20 horas, antes do embate, a Autora seguia de bicicleta juntamente com o marido, na mão de trânsito contrária à do veículo de matrícula “OX” que seguia no sentido Vilamoura-Quarteira na Av. Dr. Carlos Mota Pinto, na localidade de Quarteira, que no local configura uma recta com dois sentidos de trânsito, precedida por uma rotunda, divididos por um separador central e tem duas faixas de rodagem para cada um dos sentidos, e, quando se encontrava imediatamente antes da rotunda, pretendeu mudar de direcção e iniciou a travessia da passadeira a pedalar, da direita para a esquerda atento o sentido de marcha Quarteira-Vilamoura, e sem se aperceber que o veículo “OX” circulava antes da rotunda e em sentido contrário que se aproximava com os faróis médios acesos, o qual circulava pelo menos a 60 km/h, cujo condutor, quando se apercebeu do velocípede travou ainda mas embateu no mesmo na hemi-faixa do sentido Vilamoura-Quarteira (artigos 44º, 45º e 51º da Base Instrutória). (artigo 49º da Base Instrutória).

8) No que respeita ao acidente referido em A), as marcas de travagem do veículo “OX” começaram ainda na rotunda e têm a extensão de 21,40 m para o pneu esquerdo e 13,60 m para o pneu direito (artigo 1º da Base Instrutória).

9) Na sequência do embate, o velocípede da Autora foi projectado na outra faixa de rodagem a 28,40 m do local daquele (artigo 2º da Base Instrutória).

10) Na sequência do embate, a Autora foi projectada a 19,40 m do local do mesmo (artigo 3º da Base Instrutória).

11) Os ferimentos que a Autora sofreu foram graves, tendo-se temido pela sua morte (artigo 4º da Base Instrutória).

12) A Autora esteve internada no Hospital Distrital de Faro, bem como Unidade de Convalescença de Loulé, e junto da Associação Cultural e de Apoio Social de Olhão desde 26 de Fevereiro de 2009 até pelo menos 27 Novembro 2009 (artigo 9º da Base Instrutória).

13) No dia 18-03-2009 foi submetida a intervenção cirúrgica de redução incruenta com colocação de fixador externo (Dinafix) no membro inferior direito, extracção de material de osteossíntese no membro inferior esquerdo (artigo 10º da Base Instrutória).

14) Em 26-03-2009 realizando-se sutura perióstica de tíbia e perónio, sendo submetida a redução fechada de fractura com fixação interna – tíbia e perónio esquerdos, mais tentativa de redução e osteisóntese com cavilha de stylder na tíbia direita e colocação de 4 pregos de st. mais bota gessada (artigo 11º da Base Instrutória).

15) No mesmo dia a Autora foi transferida à UCIP para suporte hemodinâmico e ventilatório, com sedação e analgesia (artigo 12º da Base Instrutória).

16) As dores sentidas neste período eram tão fortes que várias foram as noites em que não conseguiu dormir (artigo 14º da Base Instrutória).

17) Após a cicatrização das feridas, a Autora iniciou tratamentos de fisioterapia, que provocaram esforço e dores (artigo 16º da Base Instrutória).

18) A Autora sofreu grande desgosto pelo período que teve de permanecer internada, sozinha e no hospital pois, embora bem tratada, estava longe da família e de quem mais ama (artigo 17º da Base Instrutória).

19) A Autora vive com o marido C…, tendo como único sustento o ordenado deste, como empregado num restaurante em Vilamoura (artigo 22º da Base Instrutória).

20) A Autora precisa de ajuda de outra pessoa, a tempo parcial, para se levantar, deslocar e executar as demais tarefas diárias, como higiene pessoal, tomar banho, alimentação e lida da casa (artigo 25º da Base Instrutória).

21) A Autora não poderá ter mais filhos, nem tem capacidade para criar filhos e para ter uma vida familiar satisfatória e não tem prazer de viver (artigos 37º e 38º da Base Instrutória).

22) Vive angustiada, infeliz, triste e frustrada, e sem qualquer expectativa da vida (artigo 39º da Base Instrutória).

23) Em consequência do embate, a Autora apresenta:

I) Crânio-TCE com quadro de tetraparesia de predomínio esquerdo e distal com afasia parcial; membro inferior direito- cicatriz na coxa direita de 10 cm e 4,5 cm proximal para distal de carácter operatório, cicatrizes múltiplas com carácter operatório na face anterior do terço proximal com 7 cm e outra na região média com 13 cm e área cicatricial com crosta central e facilmente ulcerável na região anterior da perna com 13*5 cm e outra cicatriz distal com 13 cm e deformidade do terço distal da perna e rigidez com equino varo do pé; membro inferior esquerdo- cicatrizes múltiplas com carácter operatório na face anterior do terço proximal com 7 cm e outra na região mediana com 13 cm e área cicatricial com crosta central e facilmente ulcerável na região anterior da perna com 13*5 cm e outra cicatriz distal com 13 cm, para além de rigidez em equino do tornozelo e encurtamento de 2 cm.

II) Défice Funcional Temporário Total de 323 dias;

III) um Quantum Doloris no grau 6/7;

IV) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 70 pontos em 100;

V) Dano Estético Permanente no grau 6/7;

VI) Em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, bem como de quaisquer outras dentro da sua área de preparação técnico-profissional;

VII) Repercussão Permanente na Actividade Sexual no grau 5/7.

VIII) Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas no grau 5/7;

IX) Necessidades, a título permanente, de ajudas medicamentosas, tratamentos regulares, ajudas técnicas, adaptação domicílio e/ou veículo, bem como de ajuda de terceira pessoa a tempo parcial (artigos 13º, 18º a 21º, 24º e 28º a 36º da Base Instrutória).

24) A Autora era dona do velocípede em que circulava no momento do embate que tinha o valor de pelo menos € 50,00 (artigos 6º e 7º da Base Instrutória).

25) Aquando do embate a Autora vestia roupas que ficaram danificadas de valor não concretamente apurado (artigo 8º da Base Instrutória).

26) O proprietário do veículo “OX” transferiu para a Seguradora R… Seguros, SA, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação provocados pelo veículo (artigo 5º da Base Instrutória).

B) DO MÉRITO DOS RECURSOS

i) Consentirá a factualidade provada que se atribua à Autora a culpa exclusiva na eclosão do acidente (como pretende a Ré/apelante)?

Esta pretensão da Ré apelante alicerça-se na sua convicção de que o acervo factual que foi dado como provado infirma o conteúdo da sentença proferida em sede criminal que culminou com o seu segurado condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelos artigos 13º, 15º, al. a), e 148º, n.º 1 e n.º 3, do Código Penal.

Portanto, a questão que se coloca é se dos factos trazidos a esta acção e que resultaram provados se pode concluir que o acidente sub judice – traduzido num embate de um veículo num velocípede sem motor (vulgo bicicleta) em cima de uma passadeira - se ficou a dever a um facto ilícito e culposo praticado pela Autora.

Expressa a Ré/apelante o seu entendimento de que a Autora infringiu uma “miríade” de disposições do Código da Estrada e que o seu segurado afinal só infringiu uma (a do excesso de velocidade que reputa de insignificante).

Afirmação esta que é absolutamente despicienda para o caso: o que releva é que a infracção cometida seja causal ao acidente.

A cometida pelo seu segurado é-o certamente: A velocidade que imprimia ao seu veículo automóvel (que o tribunal fixou em pelo menos 60 Km/hora mas que tudo leva a crer ser bastante superior[1]) antes da aproximação a uma passadeira e a forma desatenta como conduzia, só o levaram a aperceber-se da presença da Autora mesmo à sua frente, já muito próximo desta, não conseguindo imobilizar a sua viatura, sem antes embater naquela, não tendo tido qualquer outra reacção senão travar e guinar o volante para a direita.

Casos há em que se verifica que o acidente resultou exclusivamente da conduta do lesado (i.e. quando esta constituiu o facto causal do acidente, o único dele determinante) não se evidenciando a interferência de nenhuma conduta culposa do condutor do veículo ou risco próprio deste.

Mas não é essa a situação que se nos depara e, por conseguinte, a pretensão da Ré apelante não tem qualquer suporte factual ou legal.

A questão, coloca-se sim, na (in) aplicabilidade do artº 570º do Cód. Civil, o que apreciaremos de seguida, em consonância com a apelação da Autora.


ii) Dos pressupostos de aplicabilidade do nº1 do artº 570º do Cód.Civil.

Como decorre expressamente da norma, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao Tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências, se a indemnização deve ser totalmente concedida reduzida ou excluída.

Antes de entramos na apreciação dos factos é preciso reter que o acidente ocorreu em 26.2.2009, estando então em vigor o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 113/2008, de 01 de Julho.

Não havia, portanto, sido ainda publicada a Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro que veio introduzir uma nova cultura de mobilidade urbana e procedeu à alteração de diversas normas do Código da Estrada tendentes a promover a utilização de meios de transporte mais sustentáveis, como os velocípedes, os quais veio, aliás, a integrar na denominação de “ utilizadores vulneráveis “ a par dos peões (cfr. alínea q) do artº 1º).

Sem embargo, o que importa indagar desde já é, se no caso concreto, ocorreu comparticipação da Autora no processo causal que conduziu ao seu embate pelo veículo seguro na Ré?

O Tribunal “a quo” entendeu que sim, referindo para justificar o seu juízo o seguinte:

“ Ora, apurou-se que a Autora seguia num velocípede, a pedalar e durante a noite, quando atravessava uma passadeira e foi embatida, não trazendo qualquer elemento de sinalização ou protecção nos termos acima descritos.

O artigo 112º, n.º 1 do Código da Estrada consagra que “velocípede é o veículo com duas ou mais rodas accionado pelo esforço do próprio condutor por meio de pedais ou dispositivos análogos.

Os artigos 61º, 90º e 93º do Código da Estrada estabelecem regras para condução de um velocípede, impondo que, desde o anoitecer ao amanhecer, os velocípedes só podem circular com utilização dos dispositivos que, para o efeito, forem fixados em regulamento.

O artigo 104º, al. b) do Código da Estrada equipara ao trânsito de peões a condução à mão de velocípedes de duas rodas sem carro atrelado e de carros de crianças ou de pessoas com deficiência.

Finalmente, nos termos do artigo 35º, n.º 1 do Código da Estrada, “O condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”.

A infracção da supra referida regra, numa estrada nacional, constitui uma contra-ordenação grave, atento o disposto no artigo 145º, al. f) do Código da Estrada.

Uma vez que a Autora utilizou uma passagem de peões para fazer o atravessamento da via e mudar de direcção, claramente não poderia seguir na mesma a pedalar nem fazer tal manobra naquele local, tendo de contornar a rotunda como qualquer condutor, pelo que violou o disposto no supra referido artigo 35º, n.º 1 do Código da Estrada.

A manobra de mudança de via de trânsito feita pela Autora enquanto condutora de um velocípede não era permitida e, como é evidente, o facto de seguir a pedalar, fez com que o atravessamento da via fosse mais rápido, mas também lhe era exigível que avistasse o veículo automóvel que seguia com luzes acesas, pelo que se seguisse a pé seguramente ter-se-ia apercebido da aproximação do veículo automóvel e teria conseguido parar a meio da faixa, no separador central e evitado o embate, pelo que se conclui que também contribuiu, com a violação das regras estradais, para a produção do embate, tendo actuado com negligência inconsciente.

Deste modo, há que concluir pela existência de culpa do lesado, pois que a conduta deste contribuiu de forma juridicamente relevante para a verificação dos danos, havendo, pois, concorrência entre a culpa do lesante e a culpa do lesado (não sendo aplicável o disposto no artigo 570º, n.º 2 do Código Civil porque a culpa do condutor do veículo automóvel é efectiva, não resultando de simples presunção).

Ora, havendo que proceder a uma repartição de culpas, por se encontrarem em concorrência entre si, deve o Tribunal proceder a um juízo de graduação entre as culpas com base na gravidade e nas consequências das mesmas de forma a concluir se a indemnização devida pelo lesante por se constituir em responsabilidade civil deve ser concedida na totalidade, ou se, por outro lado, deve ser reduzido, ou até mesmo excluída.

No caso dos presentes autos concluiu-se que o condutor do veículo automóvel desrespeitou o limite de velocidade ao dentro e uma localidade, de noite, ao sair de uma rotunda seguida de passagem de peões onde embateu no velocípede da Autora, que seguia a pedalar no mesmo e não cumpriu a regra de mudança de direcção contornando a rotunda, pelo que se conclui que as normas violadas pelos 2 intervenientes assumem gravidade idêntica, sendo certo que o veículo automóvel contribui mais para a produção do embate atenta a sua natureza e a circunstância de, apesar de ter travado ainda quando se encontrava na rotunda, o seu condutor não ter conseguido evitar e embate.

Deste modo, não obstante a conduta da Autora ser ela própria censurável, a verdade é que, comparativamente com a censurabilidade que deve ser ajuizada relativamente ao comportamento do condutor do veículo automóvel, vislumbra-se uma censurabilidade menor, havendo que graduar as culpas em função da própria ilicitude das condutas, que, no caso, se conclui ser de maior intensidade a da condutora do velocípede e de menor intensidade a do condutor do veículo automóvel.

Assim sendo, tudo ponderado, decide-se fixar a condutora do veículo automóvel em 60% e a culpa do condutor do velocípede em 40%, sendo aquele o valor pelo qual a Ré, em lugar da sua segurada, a lesante, estará constituída na obrigação de indemnizar a Autora, casos e verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.”.

Não acompanhamos na íntegra o raciocínio expendido na sentença.

Com efeito, no que concerne à utilização de acessórios de segurança, apenas os condutores e passageiros de velocípedes com motor e os condutores de trotinetas com motor estavam obrigados a proteger a cabeça usando capacete devidamente ajustado e apertado (cfr. artº 82º nº 5 do C.E. na versão em vigor à data dos factos).

É certo que a Autora, uma vez que conduzia o velocípede durante a noite, deveria fazê-lo com utilização dos seguintes dispositivos de iluminação: uma luz de presença à frente de cor branca com emissão contínua e outra à rectaguarda de cor vermelha com emissão contínua ou intermitente, bem como reflectores na roda da frente e na roda da rectaguarda que respeitassem as cores e as características fixadas no parágrafo 11º da Portaria n.º 311-B/2005, de 24 de Março.

Todavia, apesar de ser noite, provou-se que a Autora “foi embatida no corpo pelo veículo conduzido pelo segurado na Ré, com extrema violência, quando já se encontrava no final do atravessamento da referida passadeira de peões”, assim como resultou provado que no “ local do embate havia iluminação pública com visibilidade normal”, o que leva à conclusão de que não foi a circunstância de a bicicleta em que seguia não ter os dispositivos de sinalização adequados que contribuiu para a verificação do acidente.

O acidente ocorreu, como vimos, porque o segurado na Ré, como se lhe impunha, não reduziu a velocidade à aproximação da passadeira – que o mesmo conhecia – o que o levou a embater na Autora quando esta já a havia praticamente atravessado na totalidade.

Não é exigível a quem, no interior de uma localidade, atravesse uma passadeira - seja a pé, seja de trotinete, seja de patins- ainda que de noite, traga consigo dispositivos de sinalização.

Portanto, se a Autora conduzisse a bicicleta à mão na travessia da passadeira, nem se questionaria acerca da ausência de tais dispositivos.

De igual sorte não se descortina em que medida a imputada infracção das regras de mudança de direcção a que os velocípedes estão adstritos apresente conexão com o sucedido, maxime o disposto no artº 103º do qual decorre que ao mudar de direcção, o condutor, incluindo de velocípede, mesmo que não exista passagem assinalada para a travessia de peões ou velocípedes, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões ou velocípedes que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar.

Também não se vê qualquer conexão com a eventual infracção ao Regulamento da Sinalização do Trânsito que estabelece que sempre que o condutor do velocípede pretender reduzir a velocidade, parar ou realizar uma manobra que implique uma mudança do sentido de marcha, como a mudança de direcção, deve anunciar a sua intenção aos outros utentes da via pública através do recurso à sinalética aí descrita, sendo que pretendendo virar para a esquerda o deve fazer estendendo horizontalmente o braço esquerdo, com a palma da mão voltada para a frente.

O que resta por último equacionar, é se a circunstância de a Autora ter utilizado a passagem para peões para atravessar a faixa de rodagem pedalando o velocípede, ao invés de o levar à mão como lhe seria consentido[2], concorreu para a produção ou agravamento dos danos.

Admitimos, como salientado na sentença recorrida, que o facto de a Autora seguir a pedalar (ainda que se desconheça a velocidade que imprimia à bicicleta) fez com que o atravessamento da via fosse mais rápido (do que se fosse a andar a pé).

Mas também teria sido igualmente mais veloz se seguisse de patins ou de trotinete.

Aliás, a lei impõe que a travessia da faixa de rodagem se faça o mais rapidamente possível (cfr. artº 101º/2 do C.E.).

Da matéria de facto resulta, aliás, que a passadeira em questão sita na Av. Dr. Carlos Mota Pinto, na localidade de Quarteira, cruza toda a via que no local configura uma recta com dois sentidos de trânsito, divididos por um separador central e tem duas faixas de rodagem para cada lado.

Portanto, quando a Autora foi embatida pelo segurado na Ré, já havia atravessado a metade da passadeira que cruza o sentido Quarteira-Vilamoura, passado a zona do separador central e concluído praticamente a travessia da outra metade da passadeira que cruza o sentido Vilamoura –Quarteira de onde provinha o dito veículo.

De facto, só uma conduta desatenta do condutor deste e uma velocidade excessiva do veículo, como resultou provado, é que explica que o mesmo não se tenha apercebido da travessia da passadeira pela Autora que já vinha desde o outro lado da via (mais concretamente do seu lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo).

Cremos, todavia, que há uma questão que subsiste por analisar e que se prende com a circunstância de ter resultado provado que a Autora iniciou a travessia da passadeira a pedalar e sem se aperceber que o veículo “OX” circulava antes da rotunda e em sentido contrário e que se aproximava com os faróis médios acesos.

Será tal factualidade suficiente para se concluir que negligenciou o dever inscrito no nº1 do art.º 104º do C.E.?

De certo modo, sim.

A narrativa que é dada do acidente inculca que a Autora, na medida em que iniciou a travessia da passadeira a pedalar o fez continuamente, sem se certificar, tendo em conta a distância que a separava do veículo que transitava na adjacente rotunda e a respectiva velocidade, que o podia fazer sem perigo de acidente.

Nessa medida se pode concluir que a Autora não agiu com a prudência exigível a uma pessoa medianamente cuidadosa e previdente, colocada nas circunstâncias concretas do caso e que tal conduta omissiva contribuiu, em termos de causalidade adequada para a produção do dano[3].

A proporção de culpa que lhe foi atribuída na sentença pressuporia, em todo o caso, a prova que a Autora se tinha precipitado a atravessar a passadeira a pedalar quando o veículo já se encontrava praticamente em cima da mesma, ou seja que a Autora podendo ter-se apercebido da sua presença iminente havia avançado para a sua travessia.

Por conseguinte, perante a ausência desta prova mas face ao incontroverso reconhecimento da comprovada e acentuada culpa do condutor de um veículo automóvel pela desatenção com que seguia, o excesso de velocidade que imprimia ao seu veículo e não abrandamento à aproximação de uma passagem de peões, entendemos que, no caso concreto, a percentagem de culpa a atribuir ao condutor na produção do acidente deve ser de 80%, sendo, portanto, de 20% para a lesada.

iii) Quanto à indemnização

(Com referência ao recurso da Autora):

a) Se deve ser atribuída indemnização pela perda da roupa da Autora.

Na sentença recorrida entendeu-se negar à Autora tal pretensão indemnizatória por não se ter provado o valor das roupas que ficaram danificadas (cfr. ponto 25).

Salvo o devido respeito, tal argumento não é obstativo à pretensão deduzida porquanto deverá a Autora ser indemnizada através do recurso à equidade (art.º 566ºnº3 do Cód. Civil).
Assim e ponderando que a Autora circulava de bicicleta, era jovem, e que por isso envergaria roupas práticas, mas que era inverno e de noite e por esse motivo vestiria um abrigo adequado à estação do ano, julga-se ajustado o valor de € 20,00 que a esse título é reclamado nesta sede, de acordo com um juízo de equidade.

b) Se deve ser considerado o “ dano temporário “(de 25.2.2009 a 24.2.2011) apesar de a Autora não auferir qualquer remuneração à data do acidente, atribuindo-se uma indemnização que tenha por referência o s.m.n. à data dos factos.

Na sentença negou-se-lhe tal pretensão por se entender que a Autora não auferia qualquer remuneração à data do acidente, não fazendo parte da população activa e se a Autora não exercia qualquer actividade, não foi por causa do acidente que deixou de auferir qualquer quantia.

Vejamos.

Estamos no plano dos danos patrimoniais.

Nos termos do disposto no art.º 564º do Cód. Civil, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão e, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.

Refere-se o n.º 1 ao que correntemente é designado por danos emergentes e lucros cessantes. Os primeiros correspondem aos prejuízos sofridos, ou seja, à diminuição do património (já existente) do lesado; os segundos, aos ganhos que se frustraram, aos prejuízos que lhe advieram por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património.

Os danos futuros, a que se refere o n.º 2, tanto podem representar danos emergentes como lucros cessantes mas, como se viu, a lei só permite que o Tribunal atenda aos danos futuros se os mesmos forem previsíveis.

Ora, não se tendo provado que no período em análise a Autora tenha ficado privada do recebimento de quaisquer salários ou que estivesse na expectativa de os receber, não há, fundamento legal para lhe atribuir qualquer indemnização por hipotética perda de ganho no período que decorreu entre a data do acidente e a data da consolidação das lesões.

As dores de que padeceu nesse período, o sofrimento que teve em razão das cirurgias a que foi submetida, os dias de internamento hospitalar etc. deverão ser equacionados em sede de ressarcimento de danos não patrimoniais.

c) Se deve ser atribuída à Autora a quantia peticionada de € 55.000,00 referente às “ ajudas técnicas “ de que vai carecer:

Ficou demonstrado que em consequência do acidente a Autora apresenta : “Necessidades, a título permanente, de ajudas medicamentosas, tratamentos regulares, ajudas técnicas, adaptação domicílio e/ou veículo, bem como de ajuda de terceira pessoa a tempo parcial.

Evidencia-se, portanto, com clareza a existência de danos futuros ressarcíveis ( artº 564º nº2 do C.C.) que a Ré está, também, obrigada a indemnizar liquidando o respectivo custo que de momento se desconhece, o que determina que a indemnização nesse conspecto, pelas ajudas técnicas que a Autora vier a carecer, seja remetida para decisão ulterior em sede de incidente de liquidação.

Não há, portanto, fundamento para lhe arbitrar desde já a quantia de € 55.000,00 (nem o sendo possível com recurso à equidade) já que tal dano poderá ser exatamente averiguado.

d) Se havia fundamento para reduzir a indemnização atribuída para “ contratação de terceira pessoa” de € 257.600,00 para € 150.000,00, como se fez na sentença recorrida.

Estamos em presença de um dano patrimonial que não pode deixar de ser considerado à luz do que dispõe o art.º 564º nº1 do Cód. Civil.

O Tribunal enveredou por indemnizá-lo de acordo com um juízo de equidade em 150.000,00.

Temos de reconhecer que mesmo este último valor não tem paralelo na jurisprudência do STJ [4].

É a seguinte a justificação do tribunal a quo para a fixação de tal valor: “Relativamente à contratação e 3ª pessoa a tempo parcial (e não total por não se ter provado essa necessidade), o custo previsível da mesma não será superior a € 400,00 mensais, já incluindo encargos com a Segurança Social e, considerando uma esperança média de vida até aos 80 anos, da presente data, a Autora terá, previsivelmente, de despender a quantia de € 257.600,00 (400x 46 anos a 14 meses e uma vez que não foi invocada a contratação nem peticionado o pagamento do salário dessa terceira pessoa como dano emergente).

Nestes termos, em face de tudo quanto se expôs e considerando todos os factores supra aludidos, bem como a circunstância de se tratar de uma quantia que é paga de uma só vez e por isso capaz de gerar rendimentos imediatos, afigura-se adequado e equitativo fixar em € 150.000,00 a quantia a atribuir à Autora a título de indemnização a titulo de danos futuros com contratação de terceira pessoa.

Provou-se que a Autora precisa de ajuda de outra pessoa, a tempo parcial, para se levantar, deslocar e executar as demais tarefas diárias, como higiene pessoal, tomar banho, alimentação e lida da casa.

Admitimos como correcta a estimativa de 400,00/mês para retribuir uma ajuda a “ tempo parcial”.

Porém, e uma vez que a mesma é susceptível de ser concretizada sem vínculo laboral, o valor a alcançar é passível de ser multiplicado por 12 meses.

Por seu turno deverá ser equacionada uma esperança média de vida até aos 77 anos[5].

Refazendo os cálculos da sentença com base nestes pressupostos alcança-se o valor de € 206.400,00.

Porém, ter-se-á de ter em consideração de que o facto de Autora receber por uma só vez o montante indemnizatório, que deveria ser fraccionado ao longo dos anos, impõe que se lhe abata 1/3 do seu valor, alcançando-se, por isso, a quantia de € 137.600,00 que se entende arbitrar, a título de indemnização por dano futuro com contratação de terceira pessoa de acordo com um juízo de equidade.

Em conclusão: Havia fundamento para reduzir a indemnização por esse motivo, como na sentença bem se decidiu, sem embargo do montante aí alcançado ainda assim se afigurar excessivo, como a Ré apelante defende, e se reconhece.

e) Se o valor de € 280.000,00 atribuído para compensar o “ dano permanente incapacidade profissional absoluta”, o “ dano estético permanente”, o “ dano permanente de actividade sexual “ e o “ dano biológico” é insuficiente, devendo ser fixado em € 1.078.941,00.

O Tribunal “ a quo” ao determinar a indemnização devida a título de danos não patrimoniais à Autora, salientou que nela se abrangia o dano biológico (na sua vertente patrimonial e moral).

Convém determo-nos sobre esta questão.

A Autora, como resultou provado, ficou a padecer de um Défice Permanente de Integridade Física –Psíquica fixado em 70 pontos.

Ficou também patenteado que as sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, bem como de quaisquer outras dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

Concordamos com a afirmação do Conselheiro Sousa Dinis[6] quando refere que o dano corporal deve ser visto : 1) Como dano não patrimonial, na sua vertente de dano moral e estético ou enquanto gerador de esforços acrescidos para a manutenção do mesmo rendimento; 2) ou como dano patrimonial futuro, sempre que seja gerador de rebate profissional concreto, ocasionando perda dos rendimentos do trabalho 3) ou como dano a se biológico, enquanto violação do direito ou ofensa à integridade fisio-psíquica”.

E acrescenta “ ora o dano corporal é tratado na legislação civil portuguesa , em primeira linha na esfera dos danos não patrimoniais e depois em parte e reflexamente no campo patrimonial”. (…).

Actualmente a problemática da avaliação e indemnização do dano corporal na sua tripla vertente está contemplada à luz das tabelas constantes da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio de 2008 alterada pela Portaria nº 679/2009 de 25 de junho.

Ora, o dano corporal aparece desde logo consagrado no sentido de ofensa à integridade física e psíquica, independentemente de dela resultar perda de capacidade de ganho, no artº 3º al. b) da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio..

Conclui-se, assim, que ainda que não se repercuta directa ou indirectamente na esfera patrimonial do lesado e ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, o dano biológico ou corporal é um dano que deve ser compensado.

Vejamos então qual o valor indemnizatório a atribuir ao dano biológico da Autora.

Como defendido pelo Conselheiro Salvador da Costa[7] perante matéria tão complexa como é a do cálculo do dano corporal, em quadro de desiderato de uniformização e, consequentemente, de consecução nesta matéria do princípio da igualdade, os critérios da Lei , i.e os previstos naquela Portaria (Portaria nº 377/2008, alterada pela Portaria nº 679/2008 de 25 de Junho,)não poderão deixar de ser considerados pelos Tribunais, como ponto de referência ( acrescentamos nós).

Sufragamos entendimento de que se em certa hipótese concreta, ensaiados os índices facultados por tais instrumentos, o resultado a que se chegue for um que o senso de justiça e os padrões habitualmente seguidos nos tribunais não permitam aceitar, deve esse resultado ser corrigido para moldes mais adequados e ajustados , dentro do que consinta e exorte o critério da equidade (art.º 566º nº3 do C.C.).

Na verdade, quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal, sendo, por isso e também, uma forma de justiça.

Para a questão que agora nos interessa há que ter em conta o anexo IV da citada Portaria que dispõe sobre a compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica, no que é designado por dano biológico, com base em pontos e na idade do lesado à data do acidente.

Para uma desvalorização entre 66 a 70 pontos são estabelecidos os valores de € 1739,07 a € 1826,28 quando a vítima tenha entre 31 a 35 anos de idade.

Havendo no caso concreto uma desvalorização equivalente a 70 pontos e equivalendo cada ponto a €1782,67 (média do quadro tendo em conta que a idade da lesada era a “ menor “ desse quadro, ou seja 31 anos e 70 pontos a pontuação máxima do mesmo) a indemnização a atribuir seria de € 124.787,25 (70x €1782,67).

Considerando, porém, que os pontos são atribuídos de acordo com a RMMG (retribuição mínima mensal garantida) de 2007 (cfr. nota 1) que era então de 403€, importa proceder à sua actualização tendo em conta que tal valor à data do acidente ascendia a € 450,00, alcançando, por isso, um total de € 139.340,60 quantia que, no caso concreto, se mostra adequada – de acordo com um juízo de equidade – a ressarcir o dano pela violação do direito à integridade física e psíquica de que a Autora ficou a padecer.

Mas, também são ressarcíveis os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta ou de incapacidade para a profissão habitual, como é o caso.

Recorrendo de novo aos critérios da enunciada Portaria, ponderando no que dispõe o nº3 do respectivo 6º e o nº1 e nº2 do artº 7º e examinando a fórmula do anexo III, temos que:

Como a Autora tinha 31 anos à data do acidente, o prazo até à reforma (70 anos) é de 39 anos. O rendimento anual a ter em conta é de 6.300,00 (450,00x14).

Segundo a tabela, o factor a considerar é 23,699645.

Por conseguinte, multiplicando €6.300,00 por esse factor, atinge-se o valor de € 149.307,76.

Porém, e uma vez que a situação da Autora se configura como uma incapacidade permanente absoluta para a prática de profissão habitual, sem possibilidade de reconversão para outras profissões dentro da sua área de formação técnico profissional, a indemnização corresponderá a 2/3 do capital calculado de acordo com a aludida fórmula[8], ou seja a €99.538,50.

Portanto, a indemnização pelo dano biológico (nas duas vertentes assinaladas e que na sentença foram aglutinadas) perfaz € 238.879,10.

No caso, evidenciam-se também outros danos (morais) a ressarcir:

- O sofrimento físico e psicológico decorrente das lesões, cirurgias e tratamentos em consequência do acidente de que a Autora foi vítima e que é muito significativo e acentuado.

É, aliás, impressionante o relato de que, com oito dias de dilação, foi submetida a duas cirurgias (em 18-03-2009 de redução incruenta com colocação de fixador externo (Dinafix) no membro inferior direito, extracção de material de osteossíntese no membro inferior esquerdo em 26-03-2009 realizando-se sutura perióstica de tíbia e perónio, sendo submetida a redução fechada de fractura com fixação interna – tíbia e perónio esquerdos, mais tentativa de redução e osteisóntese com cavilha de stylder na tíbia direita e colocação de 4 pregos de st. mais bota gessada), e que as dores sentidas neste período eram tão fortes que várias foram as noites em que não conseguiu dormir; após a cicatrização das feridas, a Autora iniciou tratamentos de fisioterapia, que provocaram esforço e dores; sentiu desgosto enquanto esteve internada no hospital (entre 26.2.2009 e 26.11.2009) sozinha e longe da família.

Aliás, em termos médico-legais, importa sublinhar que o concreto quantum doloris da Autora, no caso dos autos e na escala valorativa de 7 graus, com os dados constantes do processo, foi fixado pelo INML no grau 6, sendo que um dos principais componentes do direito à integridade física consiste no direito ao bem-estar corporal, ou seja, o direito à ausência de dores ou incómodos físicos.

Assim e de acordo com um juízo de equidade que tem, também, em consideração o assinalável período de tempo em que a Autora esteve doente – praticamente um ano (323 dias) - se fixa em €35.000,00 a indemnização por tal dano.

A Autora ficou a padecer de acentuadas deformidades (quadro de tetraparesia de predomínio esquerdo e distal com afasia parcial; membro inferior direito- cicatriz na coxa direita de 10 cm e 4,5 cm proximal para distal de carácter operatório, cicatrizes múltiplas com carácter operatório na face anterior do terço proximal com 7 cm e outra na região média com 13 cm e área cicatricial com crosta central e facilmente ulcerável na região anterior da perna com 13*5 cm e outra cicatriz distal com 13 cm e deformidade do terço distal da perna e rigidez com equino varo do pé; membro inferior esquerdo- cicatrizes múltiplas com carácter operatório na face anterior do terço proximal com 7 cm e outra na região mediana com 13 cm e área cicatricial com crosta central e facilmente ulcerável na região anterior da perna com 13*5 cm e outra cicatriz distal com 13 cm, para além de rigidez em equino do tornozelo e encurtamento de 2 cm) o que para uma mulher na casa dos trinta anos é absolutamente devastador, sendo compreensível que viva angustiada, infeliz, triste e frustrada e sem qualquer expectativa da vida, como resultou provado.

Foi-lhe, pelo dano estético, atribuído pelo INML o grau 6 numa escala de 7 graus de gravidade crescente, o que lhe confere igualmente o direito a ser indemnizada, indemnização essa que de acordo com um juízo de equidade que tem em consideração o que se disse se fixa em € 35.000,00.

Há que ponderar ainda que, em consequência das lesões, a sua actividade sexual se ressentiu, tendo, por isso o INML lhe fixado o grau 5 numa escala de 7 graus a repercussão permanente que a mesma lhe determinou, o que se indemniza, de acordo com um juízo de equidade que tem em consideração que estava em idade fértil e que não pode ter mais filhos, em €40.000,00.

Nesta conformidade, tendo em conta as lesões, as dores e o sofrimento psicológico sofridos, o dano estético e o elevado défice permanente da integridade física de que a Autora ficou a padecer, com rebate profissional e reflexos permanentes na sua vida sexual, entende este Tribunal que é de aumentar para € 318.879,10 a indemnização pelos danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico) que lhe foi atribuída na sentença, por se afigurar justa e equitativa.

Com referência ao Recurso da Ré:
f) Se o montante de € 150.000,00 atribuído na sentença para contratação de terceira pessoa é excessivo por não ter sido ponderado que a esperança média de vida da Autora decresceu em cerca de 20 anos em razão das lesões que padece e que passando a Autora largas temporadas na China o valor da remuneração dessa pessoa deve ser ajustado ao nível de vida nesse país.

Já reflectimos acerca desta questão, tendo reduzido o valor atribuído pelo Tribunal “ a quo”.

Sem prejuízo dir-se-á que os elementos que a Ré /recorrente avança não têm suporte legal ou factual.

Se a esperança de vida da Autora em razão do acidente diminuiu, o que se desconhece, isso seria até um dado a ponderar no sentido de agravamento da responsabilidade porque o acidente teria como consequência tê-la privado de viver mais 20 anos !

O outro dado que pretende que fosse tido em consideração (e que eventualmente poderia ter relevância para apuramento da indemnização neste conspecto) não tem respaldo factual: donde se extrai que a Autora passa largas temporadas na China?

g) Se a indemnização pelo dano biológico que foi fixada em € 222.600,00 é excessiva tendo em conta que a Autora é de nacionalidade chinesa, não fala português, e que a perspectiva de actividade laboral que poderia ter não lhe daria a contrapartida de € 530.00 mensais:

Já abordámos esta questão e fundamentámo-la até com recurso à Portaria nº 679/2009 que em momento algum equaciona a nacionalidade dos lesados como factor (de correcção) de cálculo.

Basta também ler o que a propósito dispõe o nº3 do artº 6º (aplicável ao caso ex vi alínea c) do nº1 do artº 7º) da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio : “ É considerada a retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência, relativamente a vítimas que não apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores à RMMG.”.


h) Se os valores arbitrados para o “ quantum doloris” e o dano estético são excessivos.

Já abordámos igualmente tal questão e fundamentámo-la em conformidade.

Em conclusão :

Os valores indemnizatórios liquidados perfazem um total de € 486.549,10.

De danos patrimoniais: €50,00 (perda do velocípede) +20,00 € (perda das roupas) + 137.600,00 (dano futuro por necessidade de auxílio de terceira pessoa a tempo parcial);

E de danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico) - € 348.879,10.

Tendo em consideração a repartição de culpas ora operada (80%-20%) o valor indemnizatório a suportar pela Ré seguradora e que a mesma vai condenada a liquidar à Autora cifra-se em € 389.239,28.

III- DECISÃO

Por todo o exposto, julgam-se os recursos da Autora e da Ré parcialmente procedentes e em consequência :

a) Considera-se que a percentagem de culpa a atribuir ao condutor na produção do acidente deve ser de 80% sendo, portanto, de 20% para a lesada;

b) Atribui-se indemnização pela perda da roupa da Autora no valor de € 20.00;

c) Condena-se a Ré a indemnizar a Autora pelas ajudas técnicas que a Autora vier a carecer, na percentagem assinalada, em montante a determinar em incidente de liquidação;

d) Reduz-se para € 137.600,00 a indemnização por dano futuro com contratação de terceira pessoa;

e) Tendo em consideração a repartição de culpas operada (80%-20%) condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia indemnizatória global de € 389.239,28 acrescida de juros desde a data da prolação da sentença em 1ª instância (à excepção da indemnização pelas roupas e pela bicicleta, cujos juros se computam desde a citação da Ré, como decidido na sentença recorrida) e até integral pagamento;

f) No mais se mantém a sentença recorrida.

Custas por A. e Ré na proporção do decaimento.

Évora, 23/02/2017

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Bernardo Domingos

Silva Rato

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[1] Resultou provado que as marcas de travagem do veículo “OX” começaram ainda na rotunda e têm a extensão de 21,40 m para o pneu esquerdo e 13,60 m para o pneu direito (artigo 1º da Base Instrutória); que na sequência do embate, o velocípede da Autora foi projectado na outra faixa de rodagem a 28,40 m do local daquele (artigo 2º da Base Instrutória) e que na sequência do embate, a Autora foi projectada a 19,40 m do local do mesmo (artigo 3º da Base Instrutória).
Aliás, só quem nunca conduziu um veículo automóvel e não saiba exactamente o que significa seguir nessa velocidade é que pode acreditar que o segurado da Ré o tripulava a 60Km/h. Se seguisse mesmo a essa velocidade e ainda assim , travando, não conseguisse evitar o embate na Autora, esta não seria seguramente projectada à distância de cerca de 20 metros.
[2] Sendo, nesse caso, equiparada a um peão – cfr. artº 104º b) do C.E.
[3] Na formulação negativa da causalidade adequada – que é a mais ampla- a condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre inteiramente inadequada, indiferente para aquele resultado, o que neste conspecto não se mostra afastada.
[4] Cfr. designadamente Acórdãos do STJ de 22-10-2009 ( Relator Cons. João Bernardo) de 20-01-2011 ( Relator Cons. Souto Moura) de 27-9-2012 ( Relator Cons. Serra Batista) e de 2-6-2016 ( Relator Cons. Tomé Gomes)
[5] Esperança média de vida para as mulheres na China, país de origem da Autora, como se pode consultar na Wikipédia.
[6] In“ Avaliação e Reparação do Dano Patrimonial e não Patrimonial no Direito Civil, palestra consultável na Internet).
[7] No âmbito da formação contínua do CEJ de 2009/2010, em Abril de 2010: Temas de Direito Civil e Processual Civil, em intervenção subordinada ao tema “Caracterização, Avaliação e Indemnização do Dano Biológico “
[8] Aliás, como nos dá nota o Conselheiro Sousa Dinis no seu importante estudo, a filosofia subjacente às tabelas com as pontuações é a protecção das grandes incapacidades e a pouca valorização das pequenas.