Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
27/15. 8 PFSTB.E1
Relator: MARIA LEONOR BOTELHO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
PROPAGAÇÃO DE DOENÇA CONTAGIOSA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
JUÍZO DE PROGNOSE
Data do Acordão: 10/10/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Perante a insensibilidade manifestada pelo arguido aos repetidos juízos de censura emitidos pelas sentenças condenatórias de que foi alvo e às penas que ali lhe foram fixadas, que não o impediram de praticar novos ilícitos criminais em pleno período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, e não tendo ainda o arguido evidenciado em julgamento interiorização do desvalor das condutas que adoptou, não se afigura possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, de tudo resultando uma clara impossibilidade de a ressocialização do arguido se poder fazer ainda em liberdade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO
1. 1. – Decisão Recorrida

No processo comum singular com o n.º 27/15. 8 PFSTB da Secção Criminal da Instância Local de Setúbal – J2 do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, o arguido JV, melhor identificado nos autos, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143.º, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, e de um crime de propagação de doença, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 283.º, n.º 1, alínea a), 22.º e 23.º do Código Penal.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, a final e para além do mais, decidiu nos seguintes termos:

«Pelo exposto, julgo a acusação procedente e em consequência:

a) Condeno o arguido JV pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nºs 1, al. a) e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, al. l), todos do Código Penal, ocorrido em 24.01.2015, na pena de 8 (oito) meses de prisão;

b) Condeno o arguido JV pela prática de um crime de propagação de doença, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 283º, nº 1 alínea a), 22º e 23º do Código Penal, ocorrido em 24.01.2015, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c) Em cúmulo jurídico das aplicadas nas alíneas a) e b), condeno o arguido JV na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
(…)»
*
1. 2. – Recurso
1.2.1. - Inconformado com essa decisão, dela recorreu o arguido, pugnando pela suspensão da execução da pena única de prisão que lhe foi aplicada, com a obrigação de o arguido comprovar o internamento em clínica de reabilitação, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:

«I. O presente recurso tem como objeto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelos artigos 143°, n.º1 e 145°, n.ºs 1, al.a) e n.º 2, com referência ao artigo 132°, n.º 2 al. l) todos do Código Penal e, de um crime de propagação de doença, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 283°, n.º l , al.a), 22° e 23° do Código Penal.

III. O Tribunal "a quo" aplicou ao arguido uma pena de prisão de dois anos e quatro meses de prisão.

IV. Ora, sendo verdade que o arguido já teve várias condenações anteriores, também é verdade que há já alguns meses tentava reabilitar-se, tentando restabelecer a sua vida profissional.

V. Aproveitando todos os "biscates" que consegue para prover pelo sustento da sua casa, nomeada e especialmente, aos fins-de-semana.

VI. O cumprimento da pena que lhe foi aplicada irá certamente impedir o cumprimento das suas obrigações, pois ficará privado de trabalhar e sem dinheiro para fazer face às suas despesas.

VII. Acresce, ainda, o facto de o arguido ser consumidor de produtos estupefacientes e ingerir bebidas alcoólicas em excesso, e não ter tido a capacidade de se reabilitar, sempre com o sistema imunitário bastante deficiente.

VIII. O cumprimento da pena de prisão aplicada levará o arguido ao confronto e permanência com um meio que irá afetar-lhe negativamente,

IX. A pena aplicada ao arguido deverá ser suspensa na sua execução com a obrigação de o arguido comprovar estar internamento em clinica de reabilitação.

X. O cumprimento da pena de prisão aplicada levará o arguido ao confronto e permanência com um meio cujas recordações poderão afetar-lhe negativamente, pondo em risco tudo o que foi conseguido em termos de reabilitação.

XI. Na certeza de que o internamento, além de possibilitar a reabilitação do arguido, não deixará de operar como forma de prevenção geral e especial, a fim de evitar a prática de factos idênticos no futuro.

XII. Pelo exposto, o Tribunal a quo violou entre outros os Arts. 40°, n.º 2 e 43°, 58° e 71°, todos do Código Penal.

NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA:

SER A PENA DE PRISÃO APLICADA SUSPENA NA SUA EXECUÇÃO COM OBRIGAÇÃO DE COMPROVAR O INTERNAMENTO EM CLINICA DE REABILITAÇÃO.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA».
*
1.2.2. - O Ministério Público respondeu, sustentando que o recurso deve ser rejeitado por falta de indicação das normas legais violadas e, caso assim não se entenda, defendendo a improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

Lavrou as seguintes conclusões:
«1) O recorrente não tomou posição sobre o sentido em que o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou, nem o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; também não suscitou qualquer erro na determinação da norma aplicável.

2) Tão-somente mencionou normas que, no seu entender, terão sido violadas, as quais surgem descontextualizadas do teor do recurso, pelo que parece ter havido lapso nesta parte, a saber:

- Os arts. 40.°, n." 2 ("em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa"), e 71.°, CP ("determinação da medida da pena").Porém, não reagiu contra a medida concreta da pena;

- o art. 43.°, do CP, que regula a substituição da pena de prisão aplicada em medida não superior a 1 ano, o que não é passível de discussão no caso em apreço, uma vez que foi aplicada a pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva e o recorrente não reagiu contra a medida concreta da pena; e

- o art. 58.°, do CP, que diz respeito à pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade, em caso de aplicação de pena de prisão aplicada em medida não superior a 2 anos, o que também não se encontra em discussão no caso em apreço, pelas mesmas razões.

3) Assim, o arguido não cumpriu as devidas formalidades legais para o recurso em matéria de Direito, porquanto violou o disposto no art. 412.°, n.º 2, als. a)-c), do CPP, pelo que o recurso por si interposto deverá ser rejeitado, nos termos do disposto no artigo 420.°, n.º 1, al. c), do CPP.

Caso assim não se entenda, e sem prescindir, entende o Ministério Público que não assiste razão ao recorrente, devendo o recurso ser julgado improcedente e, em consequência, confirmada a Douta Sentença recorrida, pelas razões que se explanarão de seguida.

4) Quanto à suspensão da execução da pena de prisão, o autor H. H. Jescheck elucida nos seguintes termos: "a prognose social favorável do arguido consiste na esperança que o condenado sentirá a condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum delito. Com razão, não se exige já a perspectiva de uma «vida ordenada e conforme com a lei, ( ... ) já que para o fim preventivo da suspensão basta que não volte a delinquir no futuro. Esperança que não significa certeza ( ... ). O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente, mas se existem dúvidas sérias sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa (…).

A prognose exige uma valoração total de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido. Estas circunstâncias são a sua personalidade (por ex., inteligência e carácter), a sua vida anterior (por exemplo, outros delitos anteriormente cometidos da mesma ou de outra natureza), as circunstâncias do delito (por exemplo motivações e fins), o seu comportamento depois de ter cometido o crime (por exemplo reparação do dano, arrependimento), as circunstâncias da sua vida (por exemplo, profissão, casamento e família) e os efeitos que se esperam da suspensão".

5) Não entende o Ministério Público como se possa prognosticar que a mera ameaça da prisão seja suficiente para impedir que o arguido cometa novos ilícitos criminais.

6) Desde logo, nada nos autos permite acreditar que a suspensão da execução da pena de prisão seja suficiente para que o arguido se predisponha a alterar o seu comportamento, que tem vindo a ser contrário ao Direito.

7) Com efeito, a personalidade do arguido manifestada nos ilícitos criminais que praticou, de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, e de propagação de doença, na forma tentada, em concurso efectivo, conforme consta da factualidade dada como provada, em particular, o retirar, com as mãos, a ligadura que tinha colocada à volta da cabeça a tapar o seu ferimento e esfregá-la, ensanguentada, na face do lado direito do enfermeiro DG, junto da orelha e do pescoço deste, ao mesmo tempo que dizia: "toma lá que eu tenho HIV", revela elevadas perversidade e perigosidade, e totais alheamento e indiferença para com bens jurídicos pessoais alheios, designadamente, a vida do enfermeiro.

8) Quanto às "condições da sua vida", o recorrente argumentou que "há já alguns meses tentava reabilitar-se, tentando restabelecer a sua vida profissional", não lhe assistindo razão.

9) Conforme entendeu, e bem, a Mma. Juiz de Direito, que formou a sua convicção, nesta parte, no relatório social de fls, 101-107, o arguido tem revelado uma adesão inconsistente ao tratamento especializado em relação à problemática aditiva (toxicodependência e alcoolismo), demonstrando dificuldade em aderir aos programas terapêuticos que lhe têm sido propostos, o que não tem contribuído para uma estabilização comportamental, existindo uma reduzida motivação para inverter o seu modo de vida.

10) O próprio arguido reconheceu, no recurso que interpôs, que não teve a capacidade para se reabilitar.

11) Relativamente à conduta anterior ao crime, temos que já por três ocasiões anteriores, o arguido beneficiou da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão:

i) no Proc. n. ° ---/08.3PBSTB, do 3. ° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, por decisão de 12.02.2010, transitada em julgado em 17.03.2010, por factos reportados a 21.12.2008, foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a medidas de dissuasão de consumo de estupefacientes e consumo excessivo de álcool”;

ii) no Proc. n, ° ----/09.7PBSTB, do 2. ° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, por decisão de 17.10.2011, transitada em julgado em 30.01.2012, por factos reportados a 24.07.2009, foi o arguido condenado pela prática de um crime de dano com violência, p. e p. pelos artigos 212° e 214°, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova e condição de se sujeitar a tratamento médico/acompanhamento pelo CAT de Setúbal/Hospital de S. Bernardo, com acompanhamento da DGRS quanto à dependência do álcool, bem como de não se aproximar do estabelecimento Cervejaria P., nem contactar com os proprietários ou funcionários desse estabelecimento;

iii) no Proc. nº ---/14.1PBSTB, do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal - Juiz 5, por decisão de 19.11.2015, transitada em julgado em 21.12.2015, por factos reportados a 29.07.2014, foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima.

12) Sublinho que em pleno decurso do período da suspensão da execução da pena de prisão aplicada no âmbito do processo referido em ii), o arguido cometeu o ilícito criminal referido em iii), o que é demonstrativo que a ameaça da prisão, já na altura da condenação no âmbito do proc, referido em ii), não se apresentou adequada ou suficiente.

13) Prosseguiu o arguido com o seu percurso delituoso, com a prática dos factos pelos quais foi julgado e condenado nos presentes autos, no dia 24 de janeiro de 2015, em pleno decurso dos períodos de suspensão da execução das penas de prisão aplicadas no âmbito dos processos referidos em ii) e iii), o que comprova, em definitivo, que a suspensão da execução da pena de prisão não seria adequada, justa ou suficiente.

14) O arguido manifesta totais alheamento e indiferença para com as regras de vida em sociedade, porquanto ignorou por completo as sanções anteriores que lhe foram impostas e que se revelaram inadequadas a afastá-lo da criminalidade.

15) Em suma, não só a segurança da comunidade impõe a privação da liberdade do arguido, preservando o "limite mínimo de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico", como o mesmo expõe carências elevadas de ressocialização não aptas a serem ultrapassadas em comunidade.

16) Não é possível emitir um juízo de prognose favorável à reinserção do arguido na sociedade, mostrando-se injusta, insuficiente e inadequada a aplicação da pena de substituição invocada pelo recorrente (suspensão da execução da pena de prisão) para cumprir as finalidades da punição.

17) Com efeito, a substituição da pena de prisão deverá estar vedada no caso em apreço, porquanto só com a aplicação da pena de prisão efectiva se evitarão perniciosos sentimentos de insegurança - uma eventual substituição se traduziria numa incompreensível indulgência, afectando a confiança da comunidade na validade do Direito e na administração da Justiça.

18) Assim, em face das exigências, que são prementes, de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso em apreço, entende o Ministério Público que a Douta Sentença recorrida aplicou o Direito de forma correcta, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos, e o arguido cumprir a pena única de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva.

Termos em que, e no mais que V. Exas. doutamente suprirem, deve manter­-se na íntegra a Douta Sentença objecto de recurso.

V. Exas. farão a habitual Justiça!».

1.2.3. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o art.º 416.° do C.P.P., sufragando a posição defendida pelo Ministério Público na 1ª Instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

1.2.4. - Cumprido o disposto no artigo 417.°, n.º 2, do C.P.P., sem resposta, procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do mesmo C.P.P..

II – FUNDAMENTAÇÃO

2. 1. - Questão Prévia
Sustenta o Ministério Público que o recurso deve ser rejeitado nos termos do disposto no art.º 420.°, n.º 1, alínea c), do C.P.P. por incumprimento do disposto no art.º 412.º, n.º 2, alíneas a)-c), do C.P.P., já que o recorrente não indicou as normas legais violadas pela decisão recorrida, nem explicou qual o sentido em que as normas aplicadas pelo Tribunal a quo deveriam ter sido interpretadas.

Pensamos que não lhe assiste razão.

Com efeito, o recorrente afirma que o Tribunal a quo violou, entre outros, os art.ºs 40.°, n.º 2, 43.°, 58.° e 71.° todos do Código Penal.

É certo que os art.ºs 43.º e 58.º não correspondem à suspensão da execução da pena única de prisão requerida pelo arguido, o que provavelmente se deverá a lapso de escrita - lapso que o Ministério Público acaba também por admitir verificar-se - mas não deixa de indicar, com clareza, qual o sentido do seu recurso e a pena que entende dever ser aplicada (pena de prisão com execução suspensa sujeita a obrigação).

Por outro lado, estando em causa recurso que põe em causa a pena concreta aplicada – pena de prisão efectiva – a referência aos art.ºs 40.º e 71.º não se mostra desajustada.

Nestes termos, considerando que não existe qualquer dúvida quanto ao objecto do recurso e que o lapso existente na indicação das normas legais violadas não integra qualquer das situações de rejeição de recurso previstas no n.º 1 do art.º 420.º do C.P.P., conhecer-se-á do recurso interposto.

2. 2. – Objecto do Recurso
Dispõe o artigo 412º, nº 1, do C.P.P, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

E no nº 2 do mesmo dispositivo legal determina-se também que versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.

Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, in www.stj.pt).

No que respeita aos vícios previstos no nº 2 do artº 410º do C.P.P., de conhecimento oficioso, no caso, nem o recorrente invoca a sua existência, nem, ex officio, se vislumbra a verificação de qualquer deles.

Por outro lado, centrando o recorrente a sua dissidência relativamente ao julgado em matéria de direito, assim demarcando o objecto do recurso, tem-se por definitiva a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se a pena única de prisão que foi aplicada deverá ser suspensa na sua execução.

2. 3. – Da Decisão Recorrida
Na sentença proferida pela 1ª Instância foram dados como provados e não provados os seguintes factos:

«2.1 Factos provados
Discutida a causa e produzida a prova, resultaram assentes os seguintes factos, com interesse para a decisão:

a) No dia 24 de janeiro de 2015, em hora não concretamente apurada, mas cerca das 21h30m, o arguido dirigiu-se no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, pertencente ao Centro Hospitalar de Setúbal, EPE, sito na Rua Camilo Castelo Branco, em Setúbal, para receber assistência médica devido a um ferimento que tinha na cabeça.

b) Nesse local, foi atendido pela enfermeira M que o acompanhou à sala de pequena cirurgia indicando-lhe que ali devia aguardar a chegada de um Médico para suturar o ferimento.

c) Quando a enfermeira M segurou o braço do arguido para o ajudar a sentar numa cadeira ai existente, este em ato contínuo e sem que nada o fizesse prever desferiu-lhe um soco na face do lado esquerdo, ao mesmo tempo que disse “tu a mim não me tocas que eu tenho carne de cão”, só não continuando as agressões por ter sido segurado por um familiar de utente que ali se encontrava.

d) Em consequência da conduta do arguido, M sentiu dor na parte do corpo atingida.

e) Nesse momento, o enfermeiro DG, que passava junto da sala de pequena cirurgia, ao ouvir a sua colega Marisa a gritar por ajuda foi de imediato em seu auxílio.

f) De imediato dirigiu-se ao arguido que tentava agarrar a enfermeira M e segurou-o sentando-o na cadeira.

g) Nesse momento, o arguido retirou com as mãos a ligadura que tinha colocada à volta da cabeça a tapar o ferimento e esfregou a ligadura ensanguentada na face do lado direito do enfermeiro DG, junto da orelha e pescoço deste, ao mesmo tempo que dizia “toma lá que eu tenho HIV”.

h) Devido ao arguido ter retirado a ligadura da cabeça, local onde tinha um ferimento, este começou a sangrar abundantemente, escorrendo sangue pelo seu pescoço e braços que também alcançou os braços do enfermeiro DG que continuava a segurar o arguido, até á chegada dos elementos de segurança do Hospital.

i) O arguido é portador do vírus HIV1 e HCC (genótipo 1a), doença infecto-contagiosa, o que sabia.

j) No dia 26.01.2015 DG tomou medicação anti-retroviral, tendo sido acompanhado na unidade de infecciologia, durante o período de 6 meses, tendo os resultados das análises sido negativos.

k) Ao agir do modo acima descrito o arguido previu e quis molestar o corpo e saúde de M o que fez, motivado por a mesma ser Enfermeira no Centro Hospitalar de Setúbal e por causa das funções desempenhadas pela mesma.

l) Com a sua conduta, o arguido quis contaminar o enfermeiro DG com o vírus HIV do qual é portador e que bem sabia, o que não conseguiu por razões alheias à sua vontade.

m) Sabia que o HIV/SIDA não tem, por ora, cura e se fosse contaminado o ofendido DG corria perigo de vida e podia morrer.

n) Agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou

o) O arguido iniciou o consumo de substâncias estupefacientes aos 17 anos de idade, tendo aos 30 anos de idade realizado a primeira tentativa de tratamento à toxicodependência.

p) O arguido realizou várias tentativas de tratamento à toxicodependência, tendo revelado grande dificuldade de adaptação às regras inerentes aos programas de tratamento das comunidades por onde passou, abandonando-as sem completar os respetivos programas.

q) A partir dos 40 anos de idade, o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, substância que facilitava a adoção de comportamentos violentos e desequilibrados por parte do arguido, o que este sabia.

r) No ano de 1998, o arguido tomou conhecimento que era portador de doença infetocontagiosa de caráter irreversível, que lhe determinou dois internamentos hospitalares, um ocorrido em 2004 (durante 6 semanas) e outro em 2007 (durante 1 mês).

s) O arguido encontra-se a ser acompanhado pela DGRSP desde 08.04.2010, tendo sido inicialmente encaminhado por esta entidade para a comunidade terapêutica “Vale D´Acor”, onde deu entrada no dia 03.05.2010, abandonando o arguido a referida comunidade 15 dias depois da sua admissão, por não se adaptar às regras e ao programa de tratamento da mesma, regressando a casa da progenitora.

t) Posteriormente, ainda naquele âmbito, o arguido aderiu a acompanhamento ambulatório na Unidade de Alcoologia de Lisboa do Instituto da Droga e da Toxicodependência (antigo CRAL) como forma de tentar recuperar da problemática aditiva, acompanhamento esse que veio a ser transferido, em março de 2011, para a Equipa de Tratamento de Setúbal do Instituto da Droga e da Toxicodependência, a pedido do arguido.

u) O arguido revela acentuada apatia em relação a iniciativas que promovam a sua reinserção social, revelando ainda dificuldade em abandonar o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, que potencia o seu descontrole comportamental.

v) O arguido evidencia um estado depressivo, baixa autoestima e uma postura passiva e conformada com a sua condição, mantendo-se desocupado e na grande parte do seu quotidiano permanece na casa da sua (falecida) progenitora, onde já não dispõe de energia elétrica e de fornecimento do gás.

w) O arguido tem revelado uma adesão inconsistente ao tratamento especializado em relação à problemática aditiva, demonstrando dificuldade em aderir aos programas terapêuticos que lhe têm sido propostos, o que não tem contribuído para uma estabilização comportamental, existindo uma reduzida motivação para inverter o seu modo de vida.

x) O arguido tem uma irmã, com que não priva, nem convive.

y) O arguido beneficia da atribuição de € 180 mensais de rendimento social de inserção e tem recebido apoio a nível alimentar através do “CATI”.

z) O arguido possui antecedentes criminais:

- no Proc. nº ---/08.3PBSTB, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, por decisão de 12.02.2010, transitada em julgado em 17.03.2010, por factos reportados a 21.12.2008, foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a medidas de dissuasão de consumo de estupefacientes e consumo excessivo de álcool;

- no Proc. nº ---/09.7PBSTB, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, por decisão de 17.10.2011, transitada em julgado em 30.01.2012, por factos reportados a 24.07.2009, foi o arguido condenado pela prática de um crime de dano com violência, p. e p. pelos artigos 212º e 214º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova e condição de se sujeitar a tratamento médico/acompanhamento pelo CAT de Setúbal/Hospital de S. Bernardo, com acompanhamento da DGRS quanto à dependência do álcool, bem como de não se aproximar do estabelecimento Cervejaria P., nem contactar com os proprietários ou funcionários desse estabelecimento;

- no Proc. nº ----/14.1PBSTB, do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal – Juiz 5, por decisão de 19.11.2015, transitada em julgado em 21.12.2015, por factos reportados a 29.07.2014, foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, e na pena acessória de proibição de contacto com a vítima.

2.2 Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, nenhum facto ficou por provar.».

2. 4. – Apreciando e decidindo
Pugnando pela suspensão da execução da pena única de prisão que lhe foi fixada, sustenta essencialmente o recorrente que o cumprimento da pena de prisão aplicada levará o arguido ao confronto e permanência com um meio cujas recordações poderão afectá-lo negativamente, pondo em risco tudo o que foi conseguido em termos de reabilitação, sendo que o internamento tendo em vista o tratamento das suas dependências tóxicas, além de possibilitar a reabilitação do arguido, não deixará de operar como forma de prevenção geral e especial, a fim de evitar a prática de factos idênticos no futuro.

Na resposta, o Ministério Público sustentou que, perante as anteriores condenações do arguido em penas de prisão cuja execução foi suspensa e cometimento dos crimes em causa nestes autos em plenos períodos de suspensão daquelas penas, não é possível efectuar qualquer juízo de prognose favorável quanto à reinserção do arguido na sociedade, mostrando-se injusta, insuficiente e inadequada a aplicação da pena de substituição invocada pelo recorrente (suspensão da execução da pena de prisão) para cumprir as finalidades da punição, concluindo pela manutenção da pena de prisão efectiva que lhe foi aplicada.

Vejamos.

O Tribunal a quo fundamentou a determinação da medida da pena nos seguintes termos:

«2.5 Determinação da medida da pena
Qualificados juridicamente os factos e operada a sua subsunção aos preceitos legais incriminadores, importa agora determinar a medida da pena.

O crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 41º, nº 1, 143º, nº 1 e 145º, nº s 1, al. a) e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, al. l), todos do Código Penal, é punido com pena de prisão de um mês a quatro anos, e o crime de propagação de doença, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 41º, nº 1, 73º, nº 1, als. a) e b) e 283º, nº 1 alínea a), do Código Penal, é punido com pena de prisão de um mês a cinco anos e quatro meses.

A aplicação de uma pena visa a proteção de bens jurídicos (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Na determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites abstratos definidos na lei, há que ponderar todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, sendo aquela pena limitada pela culpa deste, revelada nos factos, e tendo a mesma que se demonstrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial (cfr. artigos 40º, nºs 1 e 2 e 71º do Código Penal).

No caso dos autos, há que apreciar as exigências de prevenção especial a acautelar (que se situam num patamar elevado, dada a existência de antecedentes criminais e ausência de demonstração de interiorização do desvalor das suas condutas) e as exigências de prevenção geral (que se mostram intensas, face à natureza dos bens jurídicos protegidos).

Definida a moldura de prevenção, importa determinar a moldura da culpa.

Assim, e nos termos do disposto no artigo 71º, nº 2 do Código Penal, na determinação da medida da pena, há que considerar vários fatores, que infra se ponderam.

O dolo do arguido reveste a forma de dolo direto, tendo querido agir nos moldes dado como provados e com consciência da ilicitude dos seus comportamentos.

Quanto ao grau de ilicitude, há que ponderar o modo de atuação do arguido (que deferiu um murro em M), as zonas do corpo molestadas (a face); a natureza das lesões (dor na zona atingida), sem incapacidade conhecida.

No que respeita ao ofendido DG, o modo como o arguido atuou (esfregando a ligadura ensanguentada na face daquele), a doença infecto contagiosa que o arguido é portador - vírus HIV1 e HCC (genótipo 1 a) –, doença essa que inexiste cura, que ataca o sistema imunológico, destruindo as células defensoras do organismo, permeável a outras doenças, suscetível de conduzir ao seu decesso.

No caso em apreço, não se pode olvidar a natureza da profissão do aqui ofendido DG, enfermeiro, que tem como função prestar assistência e cuidados a terceiros, na área de saúde, e foi precisamente no exercício da sua profissão, que o arguido, enquanto utente, carecendo de cuidados de saúde, atuou sobre o ofendido, pondo risco a saúde deste, resultado que só não alcançou por razões totalmente alheias à sua vontade.

Mais se pondera que o ofendido DG além de ter tomado medicação anti-retroviral, foi acompanhado na unidade de infecciologia, pelo período de 6 meses (com a necessária angústia de durante esse período desconhecer se teria sido infetado com o vírus HIV).

Releva, ainda, para a determinação da medida da pena, a conduta anterior e posterior à prática dos factos constantes nos presentes autos, sendo que o arguido tem demonstrado um comportamento desviante ao Direito, porquanto já foi julgado e condenado por três crimes, sendo dois de violência doméstica e um de dano com violência – ou seja, todos eles praticados contra a integridade física das pessoas, e por factos reportados em momento anterior aos aqui em discussão - no Proc. nº ---/08.3PBSTB, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, por decisão de 12.02.2010, transitada em julgado em 17.03.2010, por factos reportados a 21.12.2008; no Proc. nº ---/09.7PBSTB, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, por decisão de 17.10.2011, transitada em julgado em 30.01.2012, por factos reportados a 24.07.2009; e no Proc. nº ----/14.1PBSTB, do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal – Juiz 5, por decisão de 19.11.2015, transitada em julgado em 21.12.2015 (esta proferida em momento posterior aos factos destes autos).

É manifesto que o crime aqui verificado não se tratou de um episódio isolado na vida do arguido, porquanto, não só o mesmo em momento anterior a estes factos já havia cometido crimes (em número de três), como revelou com as suas condutas a não interiorização do desvalor das suas ações.

O arguido não se mostra profissional, nem familiarmente inserido, evidenciando um estado depressivo, baixa autoestima e uma postura passiva e conformada com a sua condição, mantendo-se desocupado e na grande parte do seu quotidiano permanece na casa da sua (falecida) progenitora, onde já não dispõe de energia elétrica e de fornecimento do gás.

O arguido revela acentuada apatia em relação a iniciativas que promovam a sua reinserção social, revelando ainda dificuldade em abandonar o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, que potencia o seu descontrole comportamental.

Tudo visto e ponderado, e atendendo aos aludidos critérios, considera-se adequada:

- a pena de oito meses de prisão, pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada; e

- a pena de dois anos de prisão, pela prática do crime de propagação de doença, na forma tentada.

2.6 Cúmulo jurídico
Dispõe o artigo 77º, nº 1 do Código Penal que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, devendo ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

E acrescenta o seu nº 3 que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

Ora, atendendo que os crimes praticados pelo arguido, e em apreciação nos presentes autos, se encontram numa relação de concurso, mostram-se verificados os respetivos pressupostos para se proceder ao cúmulo jurídico das penas.

No caso sub judice, a moldura abstracta tem como limite máximo a pena de 2 anos e 8 meses de prisão – correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – e como limite mínimo a pena de 2 anos de prisão – correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Assim, ponderando no seu conjunto os factos praticados pelo arguido, conjugada com a personalidade do arguido, revelada nesses mesmos factos, denotando uma personalidade desviante, alheadora das regras legais e sociais que nos regem, com propensão para atingir a integridade física/saúde e até a vida de terceiros, o número de vítimas atingidas, procede-se ao cúmulo jurídico das penas impostas ao arguido nos presentes autos e determina-se a pena única de 2 anos e 4 meses de prisão.

2.6 Substituição da pena de prisão
Tendo o arguido sido condenado em pena de prisão fixada em 2 anos e 4 meses de prisão, impõe-se ponderar as penas substitutivas de prisão legalmente previstas e suscetíveis de serem aplicadas ao caso sub judice.

No dizer da Prof. Fernanda Palma, “A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral” – “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal (1998), AAFDL, pp. 25-51, e in Casos e Materiais de Direito Penal (2000), Almedina, pp. 31-51 (32/33).

Da suspensão da execução da pena
Resulta do disposto no artigo 50º do Código Penal, que o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo o período de suspensão ser fixado em igual prazo da pena aplicada nunca inferior a um ano.

Para que o Tribunal decida suspender a execução da pena, importa que face à prova resultante dos autos, e atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento e se convença que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, acompanhadas ou não da imposição de deveres, bastarão para o aproximar do cumprimento da norma.

No caso em apreço, não se pode olvidar que o arguido beneficiou da suspensão da execução da pena de prisão, no âmbito dos processos nº ---/08.3PBSTB, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, e nº ---/09.7PBSTB, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, transitadas em julgado, respetivamente, em 17.03.2010 e 30.01.2012 – onde foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, e posteriormente condenado pela prática de um crime de dano com violência, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova e condição de se sujeitar a tratamento médico/acompanhamento pelo CAT de Setúbal/Hospital de S. Bernardo, com acompanhamento da DGRS quanto à dependência do álcool, bem como de não se aproximar do estabelecimento Cervejaria P., nem contactar com os proprietários ou funcionários desse estabelecimento.

Contudo, não obstante tal ameaça de prisão, o arguido veio a cometer, em pleno período da suspensão da execução da pena de prisão no âmbito do aludido processo nº ---/09.7PBSTB - cujo período perdurou entre 30.01.2012 e 30.01.2017 - os factos aqui em apreciação (a 24.01.2015), bem como em 29.07.2014, o crime de violência doméstica, onde veio a ser julgado e condenado no Proc. nº ----/14.1PBSTB, do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal – Juiz 5.

Pese embora, os juízos de prognose favorável que foram sendo sucessivamente formulados, o arguido reincide na atividade delituosa, cometendo os ilícitos que se conhecem.

Afigura-se-nos manifesto que a ameaça de prisão não surtiu, nem surte, qualquer efeito dissuasor, voltando o arguido a delinquir e mesmo durante o respetivo período da suspensão, revelando que as finalidades de reprovação e de prevenção que têm estado subjacentes às suspensões da execução das penas de prisão não puderam, por via delas, serem satisfeitas.

Acresce que se provou que o arguido iniciou o consumo de substâncias estupefacientes aos 17 anos de idade, tendo aos 30 anos de idade realizado a primeira tentativa de tratamento à toxicodependência. O arguido realizou várias tentativas de tratamento à toxicodependência, tendo revelado grande dificuldade de adaptação às regras inerentes aos programas de tratamento das comunidades por onde passou, abandonando-as sem completar os respetivos programas. A partir dos 40 anos de idade, o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, substância que facilitava a adoção de comportamentos violentos e desequilibrados por parte do arguido, o que este sabia.

O arguido encontra-se a ser acompanhado pela DGRSP desde 08.04.2010, tendo sido inicialmente encaminhado por esta entidade para a comunidade terapêutica “Vale D´Acor”,onde deu entrada no dia 03.05.2010, abandonando o arguido a referida comunidade 15 dias depois da sua admissão, por não se adaptar às regras e ao programa de tratamento da mesma, regressando a casa da progenitora. Posteriormente, ainda naquele âmbito, o arguido aderiu a acompanhamento ambulatório na Unidade de Alcoologia de Lisboa do Instituto da Droga e da Toxicodependência (antigo CRAL) como forma de tentar recuperar da problemática aditiva, acompanhamento esse que veio a ser transferido, em março de 2011, para a Equipa de Tratamento de Setúbal do Instituto da Droga e da Toxicodependência, a pedido do arguido.

O arguido revela acentuada apatia em relação a iniciativas que promovam a sua reinserção social, revelando ainda dificuldade em abandonar o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, que potencia o seu descontrole comportamental.

O arguido evidencia um estado depressivo, baixa autoestima e uma postura passiva e conformada com a sua condição, mantendo-se desocupado e na grande parte do seu quotidiano permanece na casa da sua (falecida) progenitora, onde já não dispõe de energia elétrica e de fornecimento do gás.

O arguido tem revelado uma adesão inconsistente ao tratamento especializado em relação à problemática aditiva, demonstrando dificuldade em aderir aos programas terapêuticos que lhe têm sido propostos, o que não tem contribuído para uma estabilização comportamental, existindo uma reduzida motivação para inverter o seu modo de vida.

Entende-se que nenhum elemento existe no processo que demonstre que o arguido, e de forma efetiva, interiorizou o desvalor das suas ações, de modo que o Tribunal conseguisse formular um juízo de prognose positivo, bem pelo contrário.

Sem olvidar que no relatório social elaborado pela DGRP, a 15.03.2017, foi extraída a conclusão de que “Neste momento e depois do recente falecimento da progenitora [02.02.2017], consideramos que JV se confronta com maiores dificuldades de subsistência e de ajustamento social e que se acentuou a postura apática e descrente na sua capacidade de mudança, posicionamento que poderá agravar a problemática de consumo abusivo de bebidas alcoólicas, sendo muito difícil motivá-lo para uma mudança noutros eixos enquanto este não estiver devidamente equilibrado/superado, sendo que subsistem dúvidas sobre se a necessária reabilitação terá sucesso em meio comunitário” (fls. 107).

Os comportamentos anteriores recidivos do arguido e as manifestações antissociais da sua conduta atual revelam uma nítida falta de preparação da sua personalidade, associados aos seus consumos excessivos de bebidas alcoólicas, para se comportar licitamente, em sociedade e em liberdade.

Afigura-se-nos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não bastará para aproximar o arguido do cumprimento da norma.

Pelo exposto, entende-se que uma (nova) suspensão da execução da pena não satisfaz as necessidades de reprovação e prevenção, antes se mostra justificada a necessidade de cumprimento efetivo da pena de prisão.»

Perante o teor do excerto transcrito, é manifesto que nenhuma censura merece a decisão recorrida quer no que respeita à medida da pena fixada, quer no afastamento da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ora recorrente.

Na verdade, o passado criminal do arguido, por crimes contra as pessoas, bem como o não aproveitamento das penas de substituição que lhe foram aplicadas (suspensão da execução das penas de prisão) são reveladores de enorme indiferença por parte do arguido quer quanto às normas jurídicas, quer quanto às penas que já sofreu, de tudo resultando que as advertências resultantes das condenações de que foi alvo e a ameaça das penas de prisão que lhe foram fixadas não constituíram qualquer contra-estímulo a que o arguido prosseguisse na prática delituosa, não tendo logrado impedi-lo de cometer novos ilícitos criminais.

Por outro lado, a postura adoptada pelo arguido em julgamento, refugiando-se num alegado desconhecimento sobre o que efectivamente aconteceu e justificando os seus comportamentos com uma suposta ingestão de substância desconhecida em circunstâncias que nem sequer concretiza com rigor, evidencia igualmente que o arguido não interiorizou a gravidade e desvalor dos seus comportamentos, revelando elevada incapacidade de auto-censura e, consequentemente, a inexistência de mecanismos interiores que refreiem os seus impulsos e o impeçam de adoptar condutas violadoras dos direitos de terceiros, designadamente da saúde e integridade física das pessoas que com ele contactam.

A forma como o arguido tem encarado o seu problema de toxicodependência, iniciando diversos tratamentos nos quais revelou grande dificuldade de adaptação às respectivas regras, vindo a abandonar tais programas sem os completar, e agravando ainda o seu problema aditivo quando, a partir dos 40 anos de idade, passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso, substâncias que facilitavam a adoção de comportamentos violentos e desequilibrados por parte do arguido, mostra igualmente que o mesmo não tem revelado qualquer empenhamento nas iniciativas que visaram promover a sua reinserção social, desaproveitando as oportunidades que lhe foram concedidas, espelhando uma postura passiva e conformada com a sua condição, com enorme dificuldade em abandonar o consumo abusivo das substâncias que potenciam o seu descontrole comportamental, que não desconhece.

Ora, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 50.º do C.P.P., o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo que, de harmonia com o disposto no nº 5 do mesmo dispositivo legal, o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito da decisão.

A suspensão da execução da pena não depende, assim, de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos legais.

Por outro lado, a suspensão da execução da pena de prisão não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa, com vista à realização, de forma adequada, das finalidades da punição, isto é, da protecção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º, n.º 1, do C. Penal), devendo ser decretada se se mostrar adequada para afastar o delinquente da prática da criminalidade, ainda que este, anteriormente, já tenha sido condenado em penas de prisão (cfr. Ac. do STJ de 30.09.1999, Proc. n.º 578/99 - 5.ª, SASTJ, www.stj.pt)

E, como se refere no Ac. do STJ de 10.11.1999, Proc.º n.º 823/99, 3.ª, in SASTJ, www.stj.pt:

«Não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas».

Subjacente à suspensão está assim a possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro arguido no sentido de se entender que a condenação em causa constitui para si uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, acreditando-se que, nas concretas condições em que se encontra, é razoavelmente de acreditar que a sua ressocialização se poderá fazer ainda em liberdade.

Importa, por fim, notar que, tratando-se de um juízo de prognose, não se impõe que tal juízo assente necessariamente numa “certeza”, bastando uma “expectativa” fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido (cfr., neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2003, in CAJ do STJ, ano XXI, tomo II, 2003, p. 221).

Como referem LEAL-HENRIQUES E SIMAS SANTOS, in Código Penal Anotado, I, pág. 444, o Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza.

Com efeito, não podendo nunca assegurar-se que um arguido, a quem foi suspensa a execução de uma pena de prisão, não venha a cometer novo crime, haverá sempre que correr algum risco, embora um risco calculado, impondo-se no entanto que existam bases de facto capazes de suportarem tal juízo com alguma firmeza (cfr. Ac. do STJ de 14.12.2000, Proc. n.º 2769/00, 5.ª, in SASTJ, www.stj.pt).

Para tanto, deverá o Tribunal considerar os elementos referidos no citado art.º 50.º, n.º 1, do C. Penal, ou seja, a personalidade do agente, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, sendo que, se da ponderação de todas essas circunstâncias, concluir favoravelmente sobre o comportamento futuro do arguido no sentido de admitir como muito provável que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar da prática da criminalidade e para satisfazer as demais finalidades da punição (protecção dos bens jurídicos), deverá, em tal caso, suspender a execução da pena aplicada.

O juízo de prognose a realizar pelo tribunal partirá assim da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida do arguido, da conduta anterior e posterior ao crime adoptada pelo mesmo e da sua revelada personalidade, análise que permitirá concluir, ou não, pela viabilidade da sua socialização se fazer em liberdade.

No caso sub judice, o quadro factual a que acima se aludiu evidencia quão elevadas são as necessidades de prevenção especial, sendo manifesto que o arguido revela um profundo desrespeito pelas condenações anteriores, que em nada o impeliram a mudar o seu comportamento desviante, não tendo as suspensões da execução das penas de prisão que lhe foram aplicadas logrado impedi-lo de voltar a delinquir, vindo o mesmo a cometer os presentes factos precisamente durante o período de suspensão da execução de uma daquelas penas.

E do que se apurou quanto às condições pessoais do ora recorrente, não ressalta também qualquer facto que permita concluir que o arguido sentirá a presente condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão.

Assim, sendo de realçar a insensibilidade manifestada pelo recorrente aos repetidos juízos de censura emitidos pelas sentenças condenatórias de que foi alvo e às penas que ali lhe foram fixadas, que não o impediram de praticar os presentes ilícitos criminais em pleno período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, não tendo ainda o arguido evidenciado em julgamento interiorização do desvalor das condutas que adoptou, não se afigura possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, de tudo resultando uma clara impossibilidade de a ressocialização do arguido se poder fazer ainda em liberdade.

E não seria a imposição da obrigação de o arguido se sujeitar a internamento em clínica de reabilitação - obrigação que necessitaria sempre do seu consentimento, nos termos previstos no art.º 52.º, n.º 3, do C. Penal - que o impediria de, de novo, delinquir, já que os diversos tratamentos que iniciou tendo em vista o tratamento dos seus problemas aditivos vieram a ser por ele repetidamente incumpridos e abandonados.

Inexistem, assim, quaisquer factos que, com alguma firmeza, suportem um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido e à possibilidade de a sua ressocialização se poder fazer ainda em liberdade.

Nestes termos, mostrando-se devidamente fundamentada a determinação da pena concreta, pena que se afigura justa e equilibrada e suportada pela culpa do arguido, sem qualquer violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, bem como correctamente afastada a hipótese de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, já que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena de prisão não são suficientes para afastar o arguido da prática da criminalidade, nenhuma censura merece a douta decisão recorrida.

Improcede, pois, o recurso interposto pelo arguido.

2. 5. – Das Custas
Quanto à responsabilidade por custas do arguido, estabelece o n.º 1 do art.º 513.º do C.P.P. que só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.

Assim, tendo decaído integralmente, é o recorrente responsável pelo pagamento das respectivas custas, impondo-se por isso a sua condenação no pagamento daquelas, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs (art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III ao mesmo anexa).

III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido JV, confirmando-se integralmente a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs (quatro unidades de conta) - (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III ao mesmo anexa).
*
Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)

Évora, 10 de Outubro de 2017

Maria Leonor Botelho

Gilberto da Cunha