Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1218/06-3
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
ACIDENTE DE TRABALHO
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 07/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO O AGRAVO
Sumário:
I – Se um trabalhador vítima de acidente de trabalho, imputável a culpa de terceiro, não demandar esse terceiro responsável, o que frequentemente acontece, por inércia ou por já ter sido (o sinistrado) entretanto ressarcido pelo empregador e pela seguradora deste, no âmbito da acção de acidente de trabalho, nada obsta que a entidade patronal ou a seguradora que pagaram a indemnização pelo acidente exerçam o direito de regresso, em acção cível, contra os terceiros responsáveis, tal como prevê o n.º 4 do artigo 31º da Lei dos Acidentes de Trabalho.
II – O pedido deve ser deduzido no âmbito da acção comum de responsabilidade civil aquiliana, para cujo conhecimento são competentes os Tribunais de Competência Especializada Cível ou Mista, se os houver ou não no caso contrário aos de Competência Genérica e não os Tribunais de Trabalho
Decisão Texto Integral:
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Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:



Proc.º N.º 1218/06-3
Agravo
3ª Secção
Tribunal Judicial da Comarca de Coruche

Recorrente:
Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, SA.
Recorrida:
Ocidental Companhia Portuguesa de Seguros, SA., Aegeon Union Asseguradora SA e Pontofresco Supermercados, SA.

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A Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, SA., intentou contra a R. Ocidental Companhia Portuguesa de Seguros, SA., e Pontofresco, Supermercados SA, a presente acção de condenação, com processo sumário, alegando, em síntese, que tendo celebrado um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a Tegael- Teleconumicações, Gaz e electricidade SA, para cobertura dos riscos provenientes de acidentes de trabalho dos trabalhadores desta, teve de suportar despesas e encargos com o tratamento e pagamento das indemnizações legais devidas a José Manuel Jesus Garcia, empregado desta e que sofreu um acidente de trabalho quando se deslocava a pé para o seu local de trabalho. Afirma que tal acidente se deveu a culpa exclusiva da R. Pontofresco, que esta tinha a responsabilidade civil decorrente da sua actividade, transferida para a R. Ocidental e portanto são responsáveis pelo reembolso das despesas e indemnizações que pagou ao sinistrado, por ter direito de regresso contra elas nos termos do disposto no art.º 31º da Lei n.º 100/97 e por estar sub-rogada nos direitos daquele sinistrado nos termos do art.º 592º do CC e 411 do Cod. Comercial.
Contestou a R. Ocidental alegando que é seguradora da R. Pontofresco mas no âmbito de um contrato de co-seguro, juntamente com A Mundial Confiança Sa., entretanto fundida na A., com A Global Seguros SA e a Aegeon Union Asseguradora SA. Excepcionou a sua ilegitimidade, por estar desacompanhada das demais co-seguradoras. Também impugnou parte da factualidade articulada pela A.
Respondeu a A., reconhecendo a excepção e deduzindo por isso incidente de intervenção principal das demais seguradoras e reduzindo o pedido na proporção da sua própria responsabilidade no contrato de co-seguro.
Admitido o incidente as intervenientes fizeram seu o articulado da R. Ocidental.
Findos os articulados o Sr.º Juiz proferiu despacho saneador e sem que qualquer das partes tivesse suscitado a questão, entendeu que o tribunal não era materialmente competente para apreciar o pleito, por se tratar de matéria respeitante a um acidente de trabalho e assim decidiu em conformidade excepcionando a incompetência do Tribunal da Comarca e atribuindo-a ao Tribunal do Trabalho de Santarém.
Inconformada veio a A. interpor recurso de agravo, tendo nas suas alegações formulado as seguintes
conclusões:
« a) O Tribunal “ a quo" decidiu que em face da causa de pedir e do pedido, estaria em causa averiguar a ocorrência de um acidente de trabalho de onde emergiram os valores pagos pela Recorrente e que esta pretendia ver ressarcidos na acção através do direito de regresso invocado.
b) Ora, analisando a causa de pedir e o pedido verifica-se que a posição tomada pelo Meritíssimo Juiz lia quo" é redutora daqueles. Pelo contrário, a Recorrente alega factos para demonstrar que o direito de regresso que invoca, nos termos do disposto no artigo 31° da Lei n° 100/97, de 13 de Setembro, procura apurar, tendo na sua génese, a responsabilidade civil por facto ilícito de terceiro.
c) O artigo 31 ° da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, ao abrigo do qual a Recorrente alegou o seu direito de regresso, prevê as situações de confluência de responsabilidades quando ocorrem acidentes de trabalho causados por outros trabalhadores ou terceiros.
d) Revestindo nesse caso a dupla natureza de acidente de trabalho e de acidente por facto ilícito de outrém. Havendo responsabilidade objectiva da entidade empregadora, que pode ser ou não transferida para uma seguradora, e a responsabilidade por factos ilícitos (que até pode ser criminal) quando os causadores do acidente tenham culposamente causado o mesmo.
e) Atendendo aos factos alinhados na causa de pedir da acção, pretendia-se demonstrar a existência dum facto ilícito e de quem é o responsável e, como ta, a questão a averiguar não é emergente do acidente de trabalho.
f) Só implicitamente está em causa o acidente de trabalho mas não é este que tem de ser averiguado quanto à sua existência ou não.
g) Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm defendido que " ... Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a entidade patronal ou seguradora que queira exercitar o direito de regresso ... tem de intentar a acção nos tribunais comuns." - vide AC. RC de 28/09/2000 in http:/www.dgsi.pt.
h) Tendo em conta o disposto na alínea C) do artigo 85° e alínea A), do n.º 1, do artigo 77° da Lei n° 3/99, de 13 de Setembro, conjugados com a matéria que integra a causa de pedir e o pedido da acção, será o Tribunal comum, de competência genérica, o competente uma vez que a questão não está incluída na competência dos Tribunais do Trabalho.
i) Assim, o douto Despacho ora posto em crise violou o disposto na alínea A), do n.º 1, do artigo 77° da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro e os artigos 101 ° e 102° do Código de Processo Civil.
j) Devendo o mesmo ser substituído por outro que considere o Tribunal recorrido o competente em razão da matéria para apreciar e decidir a presente acção».
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Sintomaticamente não houve contra-alegações.
O Sr. Juiz, manteve o despacho recorrido.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente [1] , os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) [2] , salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Das conclusões de recurso decorre que a única questão a decidir, consiste em saber se o Tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer do pedido ou se será o Tribunal de Trabalho.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
A competência material do Tribunal determina-se tomando em conta o pedido do autor e considerando os termos em que a acção foi proposta, fixando-se no momento da propositura da acção.
Consoante as matérias das causas que lhes são atribuídas distinguem-se os Tribunais de primeira instância em tribunais de competência genérica, a quem compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal e tribunais de competência especializada simples ou mista que decidem apenas determinadas matérias jurídicas, como é o caso dos tribunais de trabalho, artigos 64, nº 2 e 77, nº 1, alínea a) e 78, alínea d) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
De acordo com o disposto no artigo 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99 de 13 de Janeiro) são da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, sendo nesse diploma atribuída a competência em razão da matéria entre os Tribunais Judiciais, estabelecendo as causas que competem aos tribunais de competência específica.
O artigo 85º da lei em referência estabelece as questão da competência material dos Tribunais do Trabalho e no que pode interessar ao caso sub judicio, importa destacar o que dispõe nas suas al. c) e o).
Diz-se aí que compete aos tribunais de trabalho conhecer em matéria cível:
……..
c- das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
………..
o) das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência e o pedido se cumule com outro para o qual o Tribunal seja directamente competente;
Como se sabe a “competência do tribunal em razão da matéria, no confronto do tribunal de trabalho e do tribunal de competência genérica ou da vara, do juízo cível ou do juízo de pequena instância cível é determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvido pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas substantivas aplicáveis”. [3]
O Tribunal recorrido entendeu que a causa cabia na previsão da al. c) do citado art.º 85º.
A competência dos Tribunais do Trabalho nas acções especiais emergentes de acidente de trabalho restringe-se ao reconhecimento dos pressupostos dos direitos estabelecidos na lei especial reparadora dos acidentes de trabalho que o autor (sinistrado ou beneficiário legal) invoca na petição inicial e à determinação e subsequente condenação da entidade responsável pela reparação, nos termos em que aquela lei especial perspectiva a obrigação reparadora. O objecto da acção especial emergente de acidente de trabalho consiste em averiguar quem são as entidades responsáveis pelas obrigações prescritas na lei especial reparadora dos acidentes de trabalho, obrigações estas cujos sujeitos são os identificados nesta lei - a entidade patronal (ou a seguradora para quem aquela tenha transferido a sua responsabilidade) [4] .
Ora na petição inicial não está pedida a apreciação ou decisão de qualquer destas questões e nem sequer qualquer relação de trabalho entre a A. e qualquer dos RR. ou intervenientes, consequentemente nunca a causa poderia enquadrar-se nesta previsão normativa da al. c) do art.º 85º da LOFTJ.
Como se do próprio texto, a alínea o) do Art.º 85º alarga a competência dos tribunais de trabalho aos casos em que se trate de uma relação entre um dos sujeitos da relação de trabalho e um terceiro quando emergentes de relação conexa com a relação de trabalho por acessoriedade, complementaridade ou dependência e o pedido se cumule com outro para o qual seja competente directamente o Tribunal de Trabalho.
Com base neste preceito seria eventualmente possível ver todos os intervenientes na presente acção a intervir numa acção de acidente de trabalho, no Tribunal de Trabalho. Mas isso só poderia ocorrer se a A. tendo aí sido demandada pela vítima do acidente de trabalho, tivesse requerido a intervenção dos aqui réus no processo nos termos previstos nos artigos 129, nº 1, alínea b) do Código do Processo de Trabalho e 330 e seguintes do Código de Processo Civil . [5]
Nas situações, como a que é descrita na petição inicial, em que determinado acidente, qualificado ou qualificável como de trabalho é imputáveis a título culposo a terceiros, sejam eles trabalhadores da empresa ou pessoas a ela estranhas, como sucede no caso (relativamente frequente) em que os acidentes sejam simultaneamente acidentes de trabalho e de viação, o sinistrado pode demandar directamente o responsável nos termos gerais da responsabilidade civil extracontratual, tal como preceitua o artigo 31º, n.º 1, da LAT . Neste caso, pagando o terceiro responsável a indemnização devida pelos danos causados, será essa prestação descontada na reparação que incumbe ao empregador, que pagará apenas a diferença (artigo 31º, n.º 3).
Mas se o trabalhador lesado não demandar o terceiro responsável, o que frequentemente poderá suceder, até por inércia, por o sinistrado ter sido entretanto ressarcido pelo empregador e pela seguradora deste, no âmbito da acção de acidente de trabalho, nada obsta que a entidade patronal ou a seguradora que pagaram a indemnização pelo acidente exerçam o direito de regresso, em acção cível, [6] contra os terceiros responsáveis, tal como prevê o n.º 4 do artigo 31º, mas no âmbito da acção comum [7] de responsabilidade civil aquiliana, para cujo conhecimento são competentes os Tribunais de Competência Especializada Cível ou Mista, se os houver ou não no caso contrário aos de Competência Genérica.
Deste modo e pelo exposto é evidente a competência material do Tribunal recorrido para conhecer da causa .
Concluindo

Assim acorda-se em conceder provimento ao agravo e revoga-se o despacho recorrido, declarando o Tribunal da Comarca de Coruche o competente em razão da matéria para conhecer do pleito e ordenando aí o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida a final.
Registe e notifique.
Évora, em 13 de Julho de 2006.
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( Bernardo Domingos – Relator)

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( Pedro Antunes – 1º Adjunto)

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(Assunção Raimundo– 2º Adjunto)




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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado.
Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida.
Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil).
Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa -1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra - 2000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 2004 in http://www.dgsi.pt....
[4] A jurisprudência do STJ é uniforme quanto a esta questão. Vejam-se por todos o Ac. do STJ de 30/9/04, proc. n.º 03S3775, in http//www.dgsi.pt/jstj..
[5] E dizemos eventualmente, porquanto não é pacífico o entendimento da possibilidade de accionar o disposto no artigo 330 do Código de Processo Civil no âmbito do processo especial emergente de acidentes de trabalho. Aliás estamos em consonância com a jurisprudência, maioritária, senão mesmo uniforme do STJ, que vai exactamente no sentido contrário, ou seja de nem sequer admitir a intervenção de terceiros contra quem os RR. possam vir a exercer o direito de regresso. Neste sentido vejam-se por todos o Ac. do STJ citado e ainda o AC. do STJ de 11/5/05, proc.º n.º 05S1041, in http://www.dgsi.pt/jstj..
[6] Neste sentido, o acórdão do STJ de 13 de Maio de 2004, Revista n.º 252/04.
[7] Cfr. Ac. do STJ de 11/5/05, proc.º n.º 05S1041, in http://www.dgsi.pt/jstj..