Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
464/14.5TAFAR.E1
Relator: MARIA FERNANDA PALMA
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
CRIME DE INJÚRIA
Data do Acordão: 07/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: Deve ser pronunciada pelo crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, ambos do CP, a arguida que num processo de promoção e protecção, a correr termos em tribunal e referente a uma filha menor daquela, juntou um requerimento dirigido à Mma. juiz titular dos autos, onde escreveu, entre o mais, “seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte”.
Decisão Texto Integral: Processo nº 464/14.5TAFAR.E1


Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora


Nos presentes autos de Instrução que com o nº 464/14.5TAFAR correm seus termos na 2ª Secção de Instrução Criminal de Portimão – J1, da Comarca de Portimão, datada de 01 07-2015, o Mmº Juiz proferiu a seguinte decisão Instrutória:
“I. Relatório.
1. Na sequência da dedução de acusação pública onde se imputa a prática, em autoria material, de um crime de injúria agravada, ilícito p. e p. pelos artigos 181.°, nº 1 e 184º, ambos do Código Penal, veio a arguida BB, requerer a abertura de instrução para, por via dela, obter a prolação de um despacho de não pronúncia em relação ao ilícito de que vem acusada.
2. Recebido o requerimento, foi declarada aberta a instrução, a arguida prestou declarações e, por fim, teve lugar o debate instrutório, onde o Ministério Público sustentou a prolação de despacho de pronúncia nos precisos termos de facto e de direito que constam da acusação e a arguida, ao invés, pugnou pela prolação de despacho de não pronúncia.
II. Saneamento.
Inexistem nulidades ou quaisquer outras questões prévias que importe conhecer e que tenham sobrevindo à apresentação do requerimento de abertura da instrução.
III. Das finalidades da instrução.
A instrução, quando requerida pelo sujeito processual arguido, como aqui sucede, visa a obtenção da comprovação judicial negativa da decisão de acusar, em ordem, ao invés, a lograr a não submissão da causa a julgamento, vd. os artigos 286.°, nº 1 e 287.°, nº 1, al. b) e 2, ambos do Código de Processo Penal.
Para tanto, haverá de, finda a fase da instrução, ser possível realizar um juízo de controlo negativo no que concerne à verificação dos pressupostos necessários à submissão da causa a julgamento.
O objectivo prosseguido pode, assim, ter na sua base, tanto o estrito plano da factualidade (sua indiciação suficiente ou não; sua relevância típica, etc.) como, pressuposta a aptidão da factualidade, enraizar-se, antes, no plano da regularidade processual da decisão final que, perante aquela, foi tomada pelo Ministério Público, ou ainda reconduzir-se a patologias de cariz processual que possam relevar no propósito último pretendido pelo arguido: a não submissão a julgamento.
É assim, a instrução, quando requerida pelo sujeito processual arguido, uma fase que se caracteriza, no direito positivo vigente, como um puro momento de controlo sobre a decisão do Ministério Público de exercer a acção penal, mediante a dedução do despacho de acusação.
IV. Da factualidade. Discussão. Consequências.
1. Factualidade.
Trata-se da seguinte factualidade:
«BB é mãe de CC, nascida em …, em relação à qual correu termos, no Tribunal de Família e Menores de Faro, processo de promoção e protecção com o nº …, 2.° Juízo, vindo-lhe a ser aplicada a medida de acolhimento institucional.
No dia 26 de Fevereiro de 2014, a arguida dirigiu-se àquele tribunal, sito na Rua Antero de Quental, em Faro, onde deu entrada, naqueles serviços, de uma exposição escrita, que dirigiu à Juíza do citado processo, DD.
Na referida exposição, além de manifestar o seu desagrado em relação à instituição onde a filha se encontrava acolhida, dirigiu à referida Juíza, com o propósito concretizado de ofender a sua honra, consideração e brio profissional enquanto magistrada o seguinte:
"Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte".
Ao agir nos termos descritos, a arguida visou ofender a honra e consideração da Juíza, DD e, bem assim, pôr em causa a sua competência e brio profissional, o que logrou concretizar.
A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, mesmo sabendo que incorria na prática de um crime».
2. Discussão. Parâmetros da regularidade da decisão de acusar.
2.1. Da falta da indicação áa(s) norma(s) jurídica(s) aplicável(eis) aos factos vertidos na acusação.
Na feliz expressão do Exm, Sr. Juiz Desembargador Cruz Bucho «os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado» .
Ora, os factos vertidos na acusação foram articulados com a convocação dos artigos 181.°, nº 1 e 184º do Código Penal.
Porém, como resulta desses mesmos factos, não foram proferidas palavras ou formulados juízos orais na presença da Sr.a Juíza, para os termos do nº 1 do artigo 181º do Código Penal.
Foi, isso sim, apresentado um requerimento sob a forma escrita razão porque à factual idade vertida na acusação corresponde, sob pena de atipicidade, a norma de extensão p. no artigo 182°, do Código Penal.
Esta norma não foi indiciada no despacho de acusação.
Doutra banda, pese embora se faça referência ao artigo 184º, do Código Penal, nada mais se se aduz.
Ora, tal artigo contém uma norma de remissão interna (para o artigo 132.°, nº 2, al. l), do CP) e dois incisos, dos quais, ante os factos, poderia relevar o que diz «no exercício das suas funções ou por causa delas».
Não vemos, por isso, a correcta concretização da norma.
Que dizer?
Ocorrerá a nulidade p. no artigo 283.°, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal?
A resposta é afirmativa pois omitiu-se, na acusação pública, a norma fundamental para que ocorresse a necessária «articulação» dos factos (como pedaços de vida) com a disposição legal (por aqueles convocada),os «factos normativamente entendidos» e a norma omitida é a prevista no artigo 182º do Código Penal.
Só, e precisamente, a norma que «alarga as margens da punibilidade (. . .) dos tipos legais de crime de difamação e injúria», nas palavras do Sr. Prof. Faria Costa, ou seja, quando o comportamento que alegadamente traduz a injuria não é levado a cabo por via oral mas antes por escrito (como na presente situação), gesto, imagens ou qualquer outro meio de expressão.
Ou não impõem as garantias de defesa também a concreta indicação das normas, isto é, das disposições legais aplicáveis?
Cremos bem que sim. Aliás, sobre o carácter decisivo da indicação das disposições aplicáveis, cf. o ensino do Sr. Prof. Germano Marques da Silva quando sustenta:
«Entendemos ser da maior importância a indicação das disposições legais aplicáveis, pois é em função delas que se delimitam os factos e se formula o pedido de condenação.
Acresce que o conhecimento das disposições legais incriminadoras por parte do arguido é também objecto do julgamento e, por isso, que constituam também objecto da acusação e das fases subsequentes do processo».
Ora, haverá diferença material entre a falta pura e simples das disposições legais e a indicação de disposições legais, por ex., erradas?
Poderíamos ser tentados a dizer que sim. Que há. Pois na segunda situação está lá uma (qualquer) disposição legal.
Porém, a norma em causa não cinge apenas à mera indicação das disposições legais mas vai mais além e convoca, não a indicação de quaisquer disposições legais, mas das disposições legais aplicáveis.
Aplicáveis a quê? Atrevemo-nos, nós, a responder: ao "pedaço de vida" vertido na acusação!
Como assim, não é disposição aplicável ao "pedaço de vida", aquela que com ele não produz uma relação centrífuga de onde, em conjunto, só resulte uma análise dos «factos normativamente entendidos» de jeito ou cariz congruente.
Não fará sentido, julgamos, dizer que se houver "erro grosseiro" na indicação da norma efectuada, já haverá nulidade, mas se tal indicação for resultado de "erro não grosseiro", já não haverá qualquer nulidade, pois que, em caso algum, o legislador distinguiu as situações e, por sobre tudo, nem uma (a do erro grosseiro), nem outra (a do erro não grosseiro) constituem, em qualquer caso, as disposições legais aplicáveis aos factos vertidos na acusação e de onde resulte, como referido, uma visão de «factos normativamente entendidos» de jeito ou cariz congruente.
Posto isto.
Falta a indicação na acusação da norma p. no artigo 182º do Código Penal.
Tal consubstanciaria a nulidade p. no artigo 283º, nº 3, al. c), do CPP, nulidade, todavia, dependente de arguição que, no entanto, não foi ventilada seja em requerimento dirigido ao Ministério Público, seja no próprio requerimento de abertura da instrução, cf. artigo 120º, nº 1 e 3, al. c), do Código de Processo Penal.
Estará, por isso, sanada e, em consequência, impedido o seu conhecimento?
Cremos bem que não, por força da leitura conjugada dos artigos 308.°, nº 3 e 311.°, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.
De facto, quer se queira ou não, a prolação do despacho de pronúncia - como despacho que comprovaria o acerto de acusar e submeteria a causa a julgamento - pressupõe, obviamente, que tal patologia não ocorra, uma vez que, havendo instrução, já estas matérias escapam, ex vi legis, à actividade de saneamento do juiz do julgamento, cf. artigos 308.°, nº 3 e 311º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Tudo para significar, então, que as situações que possam levar à rejeição da acusação devem ser conhecidas na decisão instrutória nos termos do já referido artigo 308.°, nº 3, do Código de Processo Penal.
Sem, prejuízo do referido, não nos vamos quedar por aqui e reduzir (ou limitar) a decisão ao conhecimento desta questão de cariz processual (questão que, ademais, não adquiriu, ainda, "termos pacíficos").
2.2. Das exigências do tipo de ilícito objectivo.
O artigo 181.°, nº 1, do Código Penal, prescreve:
« 1- Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2- Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo anterior».
Por sua vez, o artigo 182º do Código Penal dispõe:
«À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão».
Respigando os factos vertidos na acusação, nesta extractou-se para a sua narração, do escrito de fls. 4, a seguinte (e única) afirmação:
"Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte".
É portanto esta afirmação que constitui o "núcleo duro" da imputação, em termos do tipo de ilícito objectivo, do crime de injúria.
2.1.1. Da indiciação da autoria do escrito.
Será indiciariamente a extractada afirmação da lavra da arguida?
A resposta é afirmativa .
A autoria do escrito de fls. 4, a sua entrega para junção ao processo.., a data em que tal ocorreu, e a quem era dirigido, são circunstâncias que, neste plano indiciário, podemos atribuir à arguida.
Com efeito, que a autoria pertenceu à arguida, que foi ela que o entregou para ser incorporado no processo referido e que o escrito se destinava à Juíza titular do referido processo, é o que se firma ante o simples exame do escrito junto a fls. 2 dos presentes autos.
De facto, esse escrito está assinado pela arguida que, aliás, nele se identifica.
Mais são perfeitamente perceptíveis os seus elementos de identificação bem como, a nota aposta pelo funcionário do tribunal relativa à identidade da pessoa que o apresentou (a arguida) com base na exibição do cartão de cidadão nº … (número idêntico ao que consta do documento de fls. 14) nele surgindo, também, o nº do processo em que deveria ser incorporado.
Também na instrução a arguida admitiu ser sua a autoria do escrito de fls. 2.
2.3. Da relevância em sede de tipo de ilícito objectivo da afirmação da arguida.
Já acima referimos que o "núcleo duro" para a imputação, em termos do tipo de ilícito objectivo, do convocado crime de injúria se cinge à afirmação "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte".
Do que se trata em sede objectiva do tipo p. nos artigos 181º e 182º?
Da imputação de um facto ou de um juízo?
Propendemos para a segunda.
Habitualmente, quando alguém diz que A é competente (ou incompetente) no exercício do seu múnus nada mais está a fazer do que a exteriorizar uma apreciação sobre o labor do A, ou seja, a formular ou a emitir um juízo valorativo ou apreciativo que fez sobre a actividade que percepcionou (o que soube) ter sido levada a cabo pelo A.
Nada mais. Mas também nada menos.
De palavras que transmitem um juízo falamos.
Todavia, o juízo veiculado por palavras (escritas) teria, para relevar jurídico-penalmente, de ser ofensivo da honra ou consideração de outra pessoa.
Com efeito, o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito p. no artigo 181.°, do Código Penal, é a honra como «bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior» nas palavras do Prof. Faria Costa.
É portanto esta "realidade ideal" que terá de ser "penetrada" pela acção do agente de modo a convocar a ofensa ao bem jurídico protegido.
Porém, lida e relida a acusação nada se lobriga que concretize, densifique, ou permita extrair uma qualquer direcção de sentido, sobre o ser "competente", ou sobre "o que eu tenho visto é incompetência da sua parte" e que afronte de forma decisiva o bem jurídico protegido.
Explicitando: não se aduziu, à míngua de melhor imaginação, e a título meramente exemplificativo:
"Só tenho visto é incompetência da sua parte" o que não me admira nada pois não lê os processos, não estuda as questões e gasta o tempo na conversa e no café ao invés de estar a tratar dos assuntos dos cidadãos;
"Só tenho visto é incompetência da sua parte" pois aligeira as decisões por preguiça em enfrentar as questões difíceis;
"Só tenho visto é incompetência da sua parte" pois está sempre a cortar a palavra para sair mais cedo e ir para a praia pescar,." etc., etc.
Com efeito, em qualquer dos três exemplos figurados segue-se à afirmação da incompetência algo que com ela se liga e de onde, a todas as luzes, brota ou se atribui um conjunto de qualidades desvaliosas, negativas, ofensivas da honra (aqui em ambas as vertentes interna e externa), do brio e da reputação profissional factualmente concretizadas.
Dizer-se, sublinhe-se, apenas e só, que alguém é incompetente, ou que de alguém só se tem visto incompetência é, pura e simplesmente, formular um mero juízo de valor sobre a valia do labor dessa pessoa de jeito seco.
Trata-se simplesmente da exteriorização de uma necessariamente subjectiva e seca apreciação que se faz sobre algo realizado por outra pessoa, mas cujo cerne não se revela ou diz.
Sublinhe-se, subjectiva e seca apreciação marcada, no caso, pela conclusão negativa, esta emergente de ser, também negativa a apreciação decorrente da observação que se fez sobre o que outra pessoa realizou, mas sem que, em momento algum, desnude, revele ou clarifique os pressupostos em que assenta essa apreciação.
Pela positiva, a palavra "competente" exprime a ideia de alguém que tem competência, apto, capaz.
Mas enquanto por aqui nos quedarmos - portanto na mera e simples "taxação" de competente/incompetente sobre outra pessoa - quedamo-nos, dizíamos, pela mera exteriorização de um juízo de valor sobre o mérito (ou falta dele) profissional (ou outro) de outra pessoa de jeito seco.
Julgamos, por isso, virem a propósito as palavras do Exmº Sr. Juiz Desembargador Fernando Monterroso Acórdão de 28/0272011, sobre a análise aí empreendida sobre a segunda frase vertida na acusação ali em causa, palavras que transcrevemos na íntegra:
«A segunda: nas alegações que elaborou o arguido afirma que, da parte do juiz, foi "manifesta a intenção de fazer improceder a acção".
Uma primeira nota: esta afirmação não contém um mero juízo, mas uma imputação de facto. Um facto do foro psicológico, mas facto.
Recorrendo a uma citação muito usada, "a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale. A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público" - prof. Beleza dos Santos RLJ, n° 3152, pago 164.
Para enquadrar o alcance daquela frase (foi "manifesta a intenção de fazer improceder a acção, socorramo-nos dum exemplo que todos compreenderão, especialmente o arguido que é advogado: alguém, necessitando de instaurar uma acção judicial, pergunta a um amigo sobre os méritos profissionais de determinado advogado. Nenhuma difamação existirá se o amigo disser que o advogado em causa é "inábil", "incompetente" e "pouco sabedor das matérias de direito". Estão em causa meros juízos de valor sobre o mérito profissional do advogado. Escreveu-se em sentença de 8 de Julho de 1986 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que "deve distinguir-se com precisão entre eteaos» e (duízos de valor». Se a materialidade dos primeiros pode ser provada, os segundos não podem em nenhum caso prestar-se a uma demonstração da sua exactidão". E, debruçando-se sobre a exigência da prova da verdade das imputações, como causa da não punibilidade da conduta (cfr. art. 180 nº 2 al. b) do nosso Cod. Penal), conclui que "é evidente que para os juízos de valor esta exigência é irrealizável e, em consequência, atentatória da liberdade de expressão, elemento fundamental do direito garantido no artigo 10 da Convenção" (sublinhados do relator).
A afirmação de que determinado advogado é inábil e incompetente contém meros ''juízos de valor'. Isso é próprio da natureza humana. Onde uns só vêm "competência" e "mérito", outros descortinam inabilidade e incompetência. Todos estes juízos, os elogiosos e os negativos, apenas formulam juízos de valor, os quais, como se diz na citada sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não são passíveis de uma demonstração da sua exactidão. Ou, como se escreveu em acórdão da Relação do Porto, "é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas.
Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. ( ... ) o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função" - ac. de 12-6-02, Recurso 332/02, de que foi relator o agora conselheiro Manuel Braz. Como é do consenso geral há alguns advogados, juízes, governantes ou sapateiros que são competentes e outros que são incompetentes.
Saber, em concreto, quais são uns e outros é juízo que decorre da subjectividade de cada um.
Porém, voltando ao exemplo acima dado, haverá grave atentado à honra se a pessoa a quem for pedida opinião sobre os serviços de determinado advogado disser que é hábito deste receber dinheiro da parte contrária para prejudicar os próprios clientes. Tal afirmação não contém um mero «juízo de valor», mas a imputação de um «facto» (o advogado recebe dinheiro da parte contrária para prejudicar os clientes). É um facto que, se for verdadeiro, tornará o advogado um profissional socialmente desprezível, por carecer das mínimas condições de natureza moral, que são consideradas essenciais para o exercício da profissão. Repetindo a ideia do prof. Beleza dos Santos, imputa-se ao advogado a ausência de um requisito que o expõe à falta de consideração e ao desprezo público.
Pois bem, afirmar-se que um juiz efectuou um julgamento com a "manifesta a intenção de fazer ímproceder a acção" é o correspondente à imputação de que um advogado se mancomunou com a parte contrária para prejudicar os seus clientes. O que mais profundamente atinge o núcleo das qualidades fundamentais exigíveis a um juiz é a imputação (ou a insinuação) de que ele transformou um julgamento numa mera encenação, pois tinha a "intenção de fazer improceder a acção". Como acima se disse, são muito amplas as possibilidades de censura à decisão e à competência e aos conhecimentos do juiz. Pode-se, inclusivamente, apontar-se-Ihe condicionalismos, subjectivos ou objectivos, que o impediram de ser isento e imparcial (o Código de Processo Penal prevê o incidente de recusa do juiz ... ). Mas não se pode afirmar, sem se provar o facto, que ele agiu com a intenção de não ser isento e de ser parcial. O juiz que agir dessa forma carecerá das condições mínimas de natureza moral para o exercício da função, porque violou deliberada e conscientemente a primeira das suas obrigações. Profissionalmente será uma pessoa desprezível. Tal como o advogado que, repete-se, se mancomunar com a parte contrária». [Fim de citação. Os negritos são nossos].
Vale então por dizer, em síntese, que a frase extractada para a narração da acusação, recorde-se, "seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte", não projecta nada de concreto ou factual que possa ser considerado ofensivo da honra de outra pessoa, no caso da Mm.a Juíza.
Traduz apenas a exteriorização de uma necessariamente subjectiva e seca apreciação da arguida sobre o mérito do trabalho daquela.
O que significa que, no plano do tipo de ilícito objectivo, as palavras não são idóneas a tê-lo por preenchido, pois não traduzem palavras ofensivas da honra e consideração de outra pessoa.
Serão palavras que não primam pela cortesia, pelo respeito, palavras que quase roçam a grosseria, por certo que sim. Serão palavras que causam mágoa, incompreensão, incómodo. Por certo que sim.
Mas não são palavras com um conteúdo significante que afronte o bem jurídico honra.
Com efeito, nas palavras do Sr. Juiz Desembargador Alberto João Borges no Acórdão de 20/05/2014:
«O que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo pais e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento»
Palavras, citando agora o Juiz Conselheiro Pires da Rosa no Acórdão de 25/02/2010 e adaptando-as à situação sob apreciação, em face das quais sempre se manteria "elevado" e incólume o "perfil profissional" da Mm.a Juiz.
Ainda pela pena do mesmo Juiz Conselheiro: «É preciso, aliás, pensar que a especial qualificação pessoal e profissional do autor [também Juiz de direito] conduz à necessidade de uma certa tolerância por quem eventualmente não tenha (ainda) atingido o mesmo patamar de rigor e competência» (O interpolado é meu).
Sem prejuízo, avancemos em outra direcção.
2.4. O horizonte de contextualização.
E por aqui?
Também por aqui a conclusão não será diversa.
A leitura do escrito de fls. 4 traduz uma manifestação de desagrado da arguida (mãe) sobre a forma como a filha (dela arguida) estaria a ser tratada/cuidada em uma instituição.
Exprime as eventuais queixas da filha (por ex., os furtos) e comunica-as ao tribunal.
Dá nota da revolta, do desabafo, do protesto, da crítica, da indignação sobre o que sucedeu à sua filha.
Não foi muito além disto - da revolta, do desabafo, da indignação - o que também na instrução a arguida disse.
No fundo, a arguida pretendia a sua justiça. De outro jeito: não se conformou com a justiça aplicada pelo tribunal, rectius, com a respectiva execução concreta.
Ora, neste horizonte de contextualização, ou seja, a pendência do processo de promoção e protecção, a filha institucionalizada (como aliás outros dois também o foram), o desconhecimento do modo como no mundo jurídico as situações se tratam, a circunstância de a jurisdição em causa (família e menores) ser atreita à emoção, ao descontrolo, do mesmo passo que facilita, pela proximidade, o esbatimento de barreiras formais entre o cidadão e o Tribunal (ou Juiz) como instituição formal, enfim, a estas luzes o escrito de fls. 4 e a frase dele extractada para a acusação em nada altera a conclusão acima referida (a da inaptidão da frase para preencher as exigências do tipo ode ilícito objectivo, cf. supra 2.1.2).
Sem prejuízo, avancemos, ainda, em outra direcção.
2.5. Da insignificância da conduta.
Figuremos, sem prejuízo de tudo o referido, que estariam suficientemente indiciados todos os factos vertidos na acusação pública.
Rigorosamente, ante análise efectuada supra ponto 2.1.1., os factos remanescentes seriam os vertidos no libelo para o lado das exigências do tipo subjectivo.
Poderíamos figurar, até por inferência extraída dos factos de natureza objectiva, a indiciação suficiente destes outros.
E agora?
A expressão "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte" é uma expressão, no mínimo, desabrida, desagradável, que sempre convoca algo de negativo, pois quando se diz de alguém que ele não é competente (ou que é incompetente), não se está, por certo, a atribuir uma qualidade boa ou valiosa. Pelo contrário.
E se atribui uma qualidade negativa segue-se que será de convocar, sem mais, a ofensa à honra?
Dito doutro jeito: o que aparentemente parece convocar o crime de injúria merecerá tal convocação?
Propendemos para a resposta negativa também convocando as ideias nucleares da insignificância e dignidade penal ou merecimento de pena.
Temos para nós que o dizer-se simplesmente "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte" não exprime nada mais do que isto: a arguida disse que a Mm.a Juiz tem sido incompetente.
Falta o resto, como acima referimos já, falta a revelação dos pressupostos dessa apreciação, a densificação, o colorido, afinal, o porquê de se dizer o que se disse, para, por esta via, podermos, ou não, concluir pelas projecções que daí derivasse para o bem jurídico honra.
Como ensina o Prof. Faria Costa:
«Em termos sintéticos poderá dizer-se que uma conduta é merecedora de pena sempre que seja considerada socialmente danosa e que, por isso mesmo, a comunidade lhe atribui o merecimento de pena».
Tal não será o caso, do nosso ponto de vista, na situação em apreciação onde, além do que se já referiu, também se descortina, na frase que a arguida escreveu, um recorte crítico, uma apreciação crítica, que não se projecta, seja em que momento for, sobre as qualidades intrínsecas e mais fundas do modo de ser e de estar da Mm. o Juiz, justamente porque nada concreto e profundamente desvalioso se aduz a este respeito.
Tomamos, também a aqui, a liberdade de transcrever as palavras da Exrn." Desembargadora Ana Barata Brito no acórdão de 7/12/2002, justamente a este propósito:
«Mas, o direito penal reveste natureza fragmentária, lide tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena" (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43).
Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito.
Assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos.
No caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural.
( ... )
Impõe-se, assim, avaliar se as expressões em causa, nas circunstâncias em que foram proferidas, atingiram a visada num quadro merecedor de tutela penal.
( ... )
Foi Roxin quem começou por teorizar a doutrina da insignificância penal Geringfügigkeitsprinzip), cuja ideia base já era, porém, conhecida no direito romano (minima non curat praetor).
Este princípio da insignificância intervém como uma máxima interpretativa do tipo, servindo para excluir condutas que formalmente ou externamente são típicas, mas que materialmente o não são.
A insignificância penal exclui, por isso, a tipicidade. E as condutas insignificantes não serão típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico.
Na conhecida expressão de Welzel, os bens jurídicos não são peças de museu em redomas de vidro; vivem no mundo e sofrem o desgaste da interacção social.
Pelo que se exige que o intérprete-aplicador do tipo deva estar atento a esta interacção, a fim de perceber se a conduta revela o sentido ofensivo ínsito à realização do tipo.
O tipo de ilícito não configura uma conduta neutra. Uma conduta tipica já é desvalorada pelo direito.
Também através da cláusula de inadequação social que o tipo contém, este efectua já uma selecção material de condutas de entre as que formalmente o realizam.
O tipo tem, portanto, uma axiologia própria. Mas, mesmo que não se aceite o pensamento da adequação, a ideia da insignificância mantém toda a sua validade.
Figueiredo Dias atribui ao principio da insignificância um carácter regulativa: ele não intervém só ao nível do tipo ou da culpabilidade, mas sim nas várias categorias da doutrina do crime - sem prejuízo de admitir que esta intervenção se dá sobretudo ao nível da tipicidade (Direito Penal, Parte Geral, I, 2004, 624-625).
Também Roxin, que rejeita a teoria da adequação social, aceita, como se referiu, o princípio da insignificância (Claus Roxin, Strafrecht - Allgemeiner Teil, I, 2006, § 10, n. m. 40)>>, [Fim de citação. Os negritos são meus].
Assim, considerando a conduta da arguida - a frase que escreveu no requerimento dirigido ao processo - extractada para a narração da acusação, relembre-se, o dizer apenas que só tem visto incompetência da parte da Mm,a Juiz, não preenche "materialmente" o crime de injúria p. nos artigos 181.°, nº 1 e 182.°, do Código Penal, pois não "não contraria o sentido social de valor contido no tipo", como se explicita no acórdão parcialmente transcrito, nem ultrapassa a crítica, ou a desaprovação, projectando ou referindo características ou notas profundamente desvaliosas sobre o modo de ser e de estar (em relação) da Mm.o Juiz no exercício da sua actividade profissional.
2. Consequências.
Em função da análise empreendida nos pontos antecedentes, obtém-se um juízo negativo sobre a decisão de acusar, que não se comprova e, em conformidade, a arguida não será submetida a julgamento, nos termos do artigo 308º, nºs 1e 3, do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, DECIDO:
NÃO PRONUNCIAR a arguida BB, como autora material de um crime de injúria agravada, ilícito que lhe foi imputado na acusação pública proferia a fls. 75-76.”

Inconformado com esta decisão, recorreu o Ministério Público, nos termos da sua motivação constante de fls. 193 a 204, concluindo nos seguintes termos:
1 - Constitui objeto do presente recurso a decisão instrutória proferida no processo n" 464/14.5TAFAR, na qual o Mmo. Juiz de Instrução decidiu não pronunciar a arguida BB pela prática do crime de injúria p. e p. nos arr's. 181°, n° 1 e 184°, ambos do Código Penal.
2 - O Ministério Público deduziu acusação contra a referida arguida imputando-lhe a prática de um crime de injúria p. e p. nos artºs. 181°, nº 1 e 184° do Código Penal, em virtude do facto de no dia 26.02.2014, a arguida BB, ter dirigido ao Processo de Promoção e Proteção n" …, que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Faro, um requerimento dirigido à Mma. Juiz titular de tais autos, Dra. DD, onde a arguida, com o propósito concretizado de ofender a honra, consideração e brio profissional da Mma. Juiz, escreveu "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte".
3 - Em sede de requerimento de abertura da instrução a arguida BB, não colocando em causa a factualidade constante da acusação, defendeu que havia praticado os factos denunciados em estado de desespero, e sem intenção de ofender a honra e consideração da MIna. Juiz titular do Processo de Promoção e Proteção.
4 - Mais defendeu a arguida, no seu requerimento de abertura da instrução, a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, mediante a imposição de injunções e regras de conduta que o Tribunal considere adequadas.
5 - Em sede de instrução, o Mmo. Juiz "a quo", na douta decisão de não pronúncia, considerou, em súmula, que a acusação se encontrava ferida de uma nulidade, prevista no artº 283°, n° 3, alínea c) do Código de Processo Penal, uma vez que, na incriminação, o Ministério Público não fez referência à norma contida no artº 182° do Código Penal, norma que equipara a injúria cometida por escrito à injúria verbal, nulidade essa que, embora seja dependente de arguição, e essa não tenha sido aduzida nem em requerimento dirigido ao Ministério Público, nem no requerimento de abertura de instrução, deve ser conhecida pelo Juiz de Instrução na decisão.
6 - Mais considerou o Mmº. Juiz a quo que a expressão "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte", não contém palavras com um conteúdo significante que afronte o bem jurídico honra, motivo pelo qual "a arguida não será submetida a julgamento, nos termos do artigo 308º nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal.
7 - O Ministério Público não concorda com a douta decisão do Mmº. Juiz de Instrução, de considerar que a acusação está ferida de uma nulidade, e muito menos concorda com o Mmo. Juiz de Instrução, quando defende que a expressão "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte" é uma expressão com um conteúdo insignificante.
8 - Dispõe a alínea c) do nº 3 do artº 283° do Código de Processo Penal que "A acusação contém, sob pena de nulidade: (...) A indicação das disposições legais aplicáveis; (. . .)". Ora, resulta da acusação deduzida a fls. 75 e seguintes dos autos que o Ministério Público, fez constar da mesma que a arguida BB "incorreu, assim, na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúrias agravada, p. e p., pelo artigo 180º, n° 1 e 184° do Código Penar, tendo, pois, sido indicadas na acusação, as disposições legais aplicáveis.
9 - A mera omissão da referência ao disposto no artº 182° do Código Penal, não constitui uma nulidade dependente de arguição - e mesmo que assim se considerasse, atente-se, que não foi invocada, nem perante o Ministério Público, nem no requerimento de abertura de instrução - mas tão só uma irregularidade, sanável, a todo o tempo, nos termos do disposto no artº 123° nº 2 do Código de Processo Penal.
10 - Dispõe o n° 1 do artº 181 ° do Código Penal que "1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.".
11 - Citando o Senhor Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque "(... ) o bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, numa dupla conceção fáctica-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade, mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social".
12 - E citando ainda o Senhor Professor Doutor José de Faria Costa "(. . .) a honra é vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.".
13 - É inegável que a expressão "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte" é objetivamente ofensiva da honra e consideração da Mma. Juiz DD.
14 - A arguida sabia que o requerimento que dirigiu à Mma. Juiz DD iria ser lido por esta, que a mesma era a Juiz titular do Processo de Promoção e Proteção n° …, que corria termos no 2° Juízo do Tribunal de Família e Menores de Faro, e não concordando com as decisões proferidas nesses autos, resolveu apelidar a Mma. Juiz de "incompetente", pretendendo defini-la como inapta, incapaz ou inábil para proferir decisões em tais autos, ofendendo assim a Mma. Juiz no cerne da sua reputação e ofendendo o bom nome de que a Mma. Juiz goza na comunidade.
15 - O art° 26° nº 1 da Constituição da República Portuguesa consagra, entre vários direitos da personalidade, o direito "ao bom nome e reputação". A tutela penal desse direito é assegurada pelos artigos do Código Penal que punem os crimes contra a honra.
16 - O bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa. O seu conteúdo é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. O bem jurídico constitucional, assim delineado, apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundidos numa pretensão de respeito.
17 - Subjetivamente, está hoje ultrapassada a questão de considerar como elemento subjetivo dos tipos de crimes contra a honra o "animus diffamandi vel injuriandi". Jurisprudência e doutrina entendem, uniformemente, que o animus diffamandi não integra o tipo subjetivo do crime de injúria/difamação, sendo bastante para a sua realização o dolo genérico em qualquer das suas modalidades. Ora, é do conhecimento do homem médio que apelidar alguém de incompetente, é ofensivo para a sua honra e consideração, o que também era do conhecimento da arguida.
18 - A arguida BB emitiu um juízo de valor sobre a Mma. Juiz DD, o qual é claramente idóneo a desacreditar, desprestigiar e diminuir socialmente a Mma. Juiz no âmbito da sua atividade profissional.
19 - Não se compreende mesmo que o Mmo Juiz a quo tenha inventado - "à míngua de melhor imaginação" - argumentos para considerar que a expressão objeto de análise, apenas seria ofensiva se a arguida BB a tivesse completado com os motivos pelos quais considerava que a Mma. Juiz era incompetente, ou seja, tivesse fundamentado tal expressão com uma razão de ciência ...
20 - Não é pelo facto do Mmo. Juiz a quo dissertar longamente na sua douta decisão, sobre a "doutrina da insignificância penar' que pensaremos de forma diferente.
21 - Vivemos tempos conturbados, em que o respeito pela Justiça e seus intervenientes "caiu em desgraça". Decisões como a proferida pelo Mmo. Juiz a quo, objeto do presente recurso, em nada contribuem para a restauração desse respeito.
22 - Ao não pronunciar a arguida BB pela prática do crime de injúria, o Mmo. Juiz de Instrução a quo violou o disposto nos artigos 181° n° 1, 184° e 182°, do Código Penal, bem como o disposto nos artigos 307° e 308° nº l e 2 e 283° nº l e 2, todos do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto despacho ora recorrido e, em sua substituição, ser proferida decisão que determine que a arguida BB seja pronunciada pela prática do crime de injúria p. e p. nos art°s. 181°, nº 1, 182° e 184° do Código Penal, por referência ao disposto no art° 132°, nº 2, alínea 1) do mesmo diploma legal.
Decidindo assim, e com a competência que toda a comunidade jurídica lhes reconhece, farão Vossas Excelências justiça

A arguida respondeu, nos termos que constam de fls. 208 a 216, concluindo nos seguintes termos:
1 - Não conformado com a decisão de não pronúncia da arguida pelo crime de injúria agravada de que estava acusada, vem o Ministério Público recorrer de tal decisão entendendo, por um lado, que a acusação não padece de qualquer nulidade e, por outro, que a expressão que a arguida verteu no requerimento que apresentou no âmbito do processo n.º …, que então corria termos no referido 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Faro, a saber “seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte” é ofensiva da honra e consideração da Meritíssima Juiz desse Tribunal, razão pela qual deverá aquela ser submetida a julgamento pelo crime por que vinha acusada.
2 - Salvo o devido respeito, entende-se que não assiste razão ao recorrente e que a decisão de não pronúncia proferida não merece reparo.
3 - A acusação quanto às normas punitivas, menciona os artigos 181º, n.º 1 e 184º do Código Penal, referentes a injúrias perpetradas através de palavras ou de formulação de juízos orais, sendo omissa no que diz respeito à norma do artigo 182º do CP, que é precisamente a que faz a equiparação àquelas das injúrias perpetradas por escrito.
4 - Além disso, conquanto na acusação se mencione o artigo 184º do Código Penal, a concretização de tal norma não foi suficientemente densificada, não sendo expressa quanto à circunstância de a pretendida qualificação advir de a vítima ser uma das pessoas previstas no artigo 132º, nº 2, al. l) do mesmo Código, estando no exercício das suas funções ou por causa delas.
5 - O Tribunal a quo aflorou e bem tal nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 308º, n.º 3 do CPP, embora não se tenha quedado por esta questão meramente formal para proferir despacho de não pronúncia.
6 - Sendo certo que, padecendo a acusação de qualquer nulidade, não cabe ao juiz de instrução ordenar a sanação da mesma, nem saná-la diretamente, porquanto qualquer uma das soluções violaria aquela estrutura acusatória do processo penal constitucionalmente estabelecida.
7 - Na segunda parte do seu recurso, aduz o recorrente as razões pelas quais considera que a arguida, ao escrever num requerimento que dirigiu ao extinto 2º juízo do Tribunal de Família e Menores de Faro, a saber, “Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte”, deverá ser submetida a julgamento pelo crime de injúria.
8 - No entanto, entende a arguida que bem andou o Tribunal a quo ao entender que através da referida frase, a mesma não imputou à Mm. Juiz do Tribunal de Família e Menores de Faro de nenhum facto desvalioso do seu trabalho, tendo formulado somente um juízo que, podendo ser grosseiro ou deselegante, motivado por razões emocionais, não é, do ponto de vista jurídico-penal, ofensivo da honra ou consideração.
9 - Como bem se decidiu na decisão recorrida, “A frase extractada para a narração da acusação, não projecta nada de concreto ou factual que possa ser ofensivo da honra ou consideração de outra pessoa, no caso da Mmª. Juiz. Traduz uma exteriorização de uma necessariamente subjectiva e seca apreciação da arguida sobre o mérito do trabalho daquela”.
10 - Por fim, considerou ainda o Tribunal a quo que, mesmo que prima facie estivessem verificados indícios da comissão do crime em causa pela arguida, sempre a sua tipicidade estaria excluída pela sua insignificância penal, não sendo, por isso, o seu comportamento punível.
11 - Concordando-se inteiramente com esse entendimento, entende-se que bem andou o Tribunal ao quo ao proferir uma despacho de não pronúncia, não o qual não viola qualquer norma jurídica.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir:

Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respectivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objecto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão ao Ministério Público, ora recorrente, no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso, quais sejam:
- A inexistência da nulidade aludida na decisão de não pronúncia;
- A subsunção da expressão em causa nos autos, e que considera injuriosa, à previsão do tipo legal de crime contido no artigo 181º do Código Penal.

Vejamos, então:

Conforme dispõe o artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
No caso em apreço, a abertura da instrução foi solicitada pelo Ministério Público, na sua qualidade de parte acusadora, já que o Mmº Juiz de Instrução se decidiu pela prolação de decisão de não pronúncia.
Conforme acabou de se referir, realizado que foi o debate instrutório, o Mmº Juiz de instrução proferiu despacho de não pronúncia, entendendo que, para além da acusação se encontrar ferida de nulidade, por carência de indicação de norma incriminatória, a expressão escrita pela arguida não possui dignidade suscetível de justificar uma reação criminal, isto é, não constitui o aludido crime de injúria.
É esta decisão que ora está em causa, cumprido avaliar da sua correção.
Trata-se de um despacho de não pronúncia por insuficiência dos indícios da verificação do crime, proferido nos termos do disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, já que foi entendido que até ao encerramento da instrução não foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança.
Sobre o que sejam indícios suficientes preceitua o artigo 283º, nº 2, do citado diploma adjectivo, considerando-os como tal, sempre que dos mesmos resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Conforme acentuam a doutrina e a Jurisprudência dominantes sobre a matéria, a lei não exige para a pronúncia a prova, no sentido da certeza, da existência do crime, mas sim meros sinais que possam induzir no comum das pessoas a convicção da existência de uma razoável possibilidade de determinado arguido haver incorrido na prática de determinados factos, estes qualificados como crime.
"A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação" - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 179.
Assim, e como entendeu o Ac. desta Relação de Évora, de 18.12.74, BMJ - 243 - 337, citado na obra referida "As expressões indícios bastantes de culpabilidade e prova indiciária significam o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado pelo crime que lhe imputam".

Comecemos por decidir da primeira questão posta à nossa consideração, atento o objeto do presente recurso.
Antes de mais, cumpre referir que a acusação deduzida pelo Ministério Público, constante de fls. 75 e 76 dos autos, contém a identificação da arguida, a narração dos factos que fundamentam a aplicação à mesma de uma pena, incluindo, o lugar e o tempo destes, bem como a indicação de disposições legais aplicáveis, quais sejam, os artigos 181º, nº 1 e 184º, ambos do Código Penal.
Mais contém a indicação da prova, encontrando-se o despacho datado e assinado, a final.
Assim sendo, a acusação em causa contém as menções a que alude o artigo 283º do Código de Processo Penal, tendo o Ministério Público legitimidade para a prolação desta acusação dada a natureza do crime em apreço.
Porém, no caso em apreço, a expressão dita injuriosa dirigida à Mmª Juiz, foi apresentada por escrito, destinando-se a ser junta a um processo pendente em tribunal.
Como tal, aquelas palavras dirigidas à Mmª juiz encontravam-se escritas.
Ora, o artigo 182º do Código Penal, sob a epígrafe «Equiparação», vem dispor que à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito.
Trata-se, como indica a epígrafe do preceito, de uma mera equiparação, já que o conduta típica “o dirigir palavras, isto é, expressões injuriosas”, consta do tipo aludido no artigo 181º do mesmo diploma.
E tanto assim é, que foi em relação a este preceito, e logicamente à conduta subsumível ao mesmo, que a arguida organizou a sua defesa, requerendo, desde logo, a abertura da instrução.
Não se lhe suscitou qualquer dúvida.
Entende-se que a falta da menção deste dispositivo legal na acusação não a fere de nulidade, tanto mais que tal não obstou ao exercício do contraditório, podendo, em sede futura, ser comunicada a sua adição, com recurso ao dispositivo a que alude o nº 3, do artigo 358º do Código de Processo Penal.

No que respeita à segunda questão suscitada, qual seja a qualificação da expressão dirigida à Mmª Juiz como injuriosa, já que atentatória (ou não) da sua honra profissional, temos a referi o seguinte:
Louva-se o trabalho de pesquisa e exposição efetuado pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal ao longo de toda a sua explanação que constitui a presente decisão de não pronúncia.
Trata-se, efetivamente, de um meritório exercício intelectual.
O entendimento do Mmº Juiz a quo, o qual conduziu à decisão de não pronúncia, encontra-se plasmado, em suma, nas suas seguintes considerações:
“Temos para nós que o dizer-se simplesmente "Seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte" não exprime nada mais do que isto: a arguida disse que a Mm.a Juiz tem sido incompetente.
Falta o resto, como acima referimos já, falta a revelação dos pressupostos dessa apreciação, a densificação, o colorido, afinal, o porquê de se dizer o que se disse, para, por esta via, podermos, ou não, concluir pelas projecções que daí derivasse para o bem jurídico honra.”
“Vale então por dizer, em síntese, que a frase extractada para a narração da acusação, recorde-se, "seja uma juíza há maneira competente porque o que eu tenho visto é incompetência da sua parte", não projecta nada de concreto ou factual que possa ser considerado ofensivo da honra de outra pessoa, no caso da Mm.a Juíza.”
Mais considera o Mmº Juiz a quo que, “nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos.”
“Serão palavras que não primam pela cortesia, pelo respeito, palavras que quase roçam a grosseria, por certo que sim. Serão palavras que causam mágoa, incompreensão, incómodo. Por certo que sim.
Mas não são palavras com um conteúdo significante que afronte o bem jurídico honra.”
No caso em apreço, está em causa a honra e consideração profissionais devidos à Mmª Juiz daquela processo.
Por honra entende-se “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale.”
E por consideração, “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público" - prof. Beleza dos Santos RLJ, n° 3152, pago 164.(citado no despacho recorrido).
Por outro lado, concorda-se inteiramente que ao Direito Penal apenas compete a tutela dos valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, “obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito.”
Concorda-se, igualmente, com o que é dito pelo Sr. Juiz Desembargador Alberto João Borges no Acórdão de 20/05/2014:
«O que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo pais e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento».
Ora, é certo que a frase em causa não imputa à Mmª Juiz a prática de quaisquer factos concretos que colidam com a sua honra profissional ou com a consideração que a esse respeito lhe é devida.
Porém, a frase em si, no contexto em que foi escrita, dirigindo-se à atividade profissional daquela juíza em concreto, naquele concreto processo, não pode deixar de ser considerada ofensiva da honra e consideração profissionais devidas à mesma.
Neste caso, não se trata de uma mera grosseria, nem de uma bagatela não justificativa de uma reação criminal.
O comum cidadão, que se dirija ao Tribunal de Portimão a fim de dirimir os seus conflitos, bem como todos os que aí prestam serviço, não ficarão certamente indiferentes a esta ocorrência, pelo que reclamarão a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento.
Tanto mais, como acima se disse, que não é referido nenhum facto concreto elucidativo da dita incompetência da Magistrada, por forma a que esta o possa contraditar.
É lançado o labelo negativo sobre a sua atuação profissional, suscetível de denegrir o seu empenho como juíza aos olhos de terceiros, isto em relação à globalidade do seu trabalho, mesmo que ao nível de um único processo, sem mais.

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da relação de Évora, em conceder provimento ao recurso, ordenando que a decisão recorrida seja substituída por outra que pronuncie a arguida nos termos da acusação deduzida contra a mesma pelo Ministério Público.
Sem tributação.

Évora, 05-07-2016
Maria Fernanda Palma (relatora)
Maria Isabel Duarte