Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1365/03-2
Relator: MARIA ALEXANDRA MOURA SANTOS
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
Data do Acordão: 03/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
I - A ordem jurídica portuguesa reconhece designadamente através do artº 70º do C. Civil o direito geral de personalidade onde se integram o direito ao repouso, à tranquilidade a ao sono que são aspectos do direito à integridade pessoal.

II - Viola ilicitamente os direitos de personalidade dos moradores de um prédio a conduta do vizinho que mantém na sua fracção dois cães permitindo que os mesmos ladrando e ganindo quer de dia (de que passam parte sozinhos), quer de noite, produzam ruídos que prejudicam o repouso, a tranquilidade e o sono daqueles.
Decisão Texto Integral:
PROCESSO Nº 1365/03
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
“A”, “B”, “C” e “D” intentaram contra “E”, a presente acção com processo sumário pedindo que fossem estes condenados a retirar da fracção onde moram e do prédio, os dois cães de que são proprietários bem como a pagarem, a título de indemnização por danos morais, aos primeiros AA. a quantia de Esc. 300.000$00 a cada um, aos segundos a quantia de 200.000$00 a cada um e à terceira A. a quantia de 20.000$00, tudo acrescido dos juros à taxa legal, contados desde a data da citação e até integral pagamento.
Fundamentam, em síntese, no facto de habitarem há alguns anos num prédio constituído em propriedade horizontal, onde habitam igualmente os RR. que detêm na sua fracção dois cães de porte médio que provocam intensos ruídos durante o dia e de noite, afectando o repouso dos AA., com reflexos na sua saúde, vida pessoal e profissional, sendo que, além disso, os cães fazem as suas necessidades nas escadas interiores do prédio e no hall de entrada, o que tudo fez com que os primeiros AA. procurassem uma nova casa, situação que os deixou tristes e desgostosos, sendo tais factos ofensivos dos seus direitos de personalidade.
Citados, contestaram os RR. impugnando os factos invocados pelos AA. e concluindo pela improcedência da acção.
Foi proferido o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, que não foi objecto de reclamação.
Realizada a audiência de julgamento, o tribunal respondeu à matéria de facto pela forma constante de fls. 236/239, que não sofreu reclamação.
Foi, por fim, proferida a sentença de fls. 241 e segs. que julgando a acção parcialmente procedente condenou os RR. a retirarem da fracção onde moram e do prédio, os dois cães de que são proprietários, bem como a pagarem aos AA. “A”, “B” e “C”, a cada um, o montante de Esc. 40.000$00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, que actualmente se cifra em 7% ao ano, a contar da data da presente decisão até integral pagamento, absolvendo-se os RR. do demais peticionado pelos AA.
Inconformados, apelaram os RR. alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - Consideram aqui os apelantes, não ter sido feita prova concludente e suficiente da causa efeito entre os barulhos mencionados na douta sentença e a venda das fracções por parte de dois dos AA., a mesma é elucidativa ao concluir que apenas contribuíram, mas existiram outra ou outras causas que foram, essas sim, determinantes.
2 - Os aqui apelantes não praticaram qualquer acto ilícito que fosse alvo de responsabilidade civil extra contratual e como tal incorrerem numa indemnização por danos não patrimoniais. Não ficou provado a existência de nexo de causalidade, logo não devem os RR. ser condenados a pagar indemnização à qual foram condenados.
3 - Aliás, para os aqui apelantes, existe contradição na própria sentença que considera como provados todos ou quase todos os factos alegados pelos AA no que se refere aos incómodos e depois reduz, sem qualquer fundamentação, o valor de indemnização a ser paga pelos aqui recorrentes. Cabe então perguntar, se foram ou não sofridos tais prejuízos e se estão realmente em causa os direitos absolutos de personalidade dos AA., ou se estamos apenas e só perante incómodos provenientes da relação de vizinhança.
4 - Os aqui recorrente consideram também inadequado a condenação de “retirada” dos animais em questão para evitar a consumação de mais danos tanto mais que dos três AA., apenas um está a viver no referido prédio. Existindo um grave desequilíbrio entre os direitos protegidos dos AA. e os que são atacados por parte dos RR.

Os RR. contra-alegaram nos termos de fls. 297 e segs. concluindo pela confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Como é sabido, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas (artº 690º nº 1 do C.P.C.).
Do que delas decorre verifica-se que a única questão a decidir é a de se saber se em face da factualidade provada se justifica a condenação dos RR. nos termos constantes da decisão recorrida.
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São os seguintes os factos que foram tidos por provados na 1ª instância:

a)- Na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., encontra-se inscrita a favor da A. “B”, a aquisição por compra da fracção designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao 2º andar do prédio urbano designada por lote ..., situado na Rua ..., nº ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº nº ... - al. A) da matéria assente.
b) - Na 2ª C.R.P. de ..., encontra-se inscrita a favor da A. “C”, a aquisição por compra da fracção designada pela letra ..., destinada a habitação, correspondente ao r/c do prédio urbano designado por lote ..., situado na Rua ... nº ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº nº ... - al. B) da matéria assente.
c) - Na 2ª C.R.P. de ... encontra-se inscrita a favor da A. “D”, a aquisição por partilha subsequente ao divórcio da fracção designada pela letra ..., correspondente ao 1º andar do prédio urbano designado por lote ..., situado na Rua ..., nº ... em ..., freguesia de ..., concelho de .., inscrito na respectiva matriz sob o artº nº ... - al. C) da matéria assente.
d) - Por escritura lavrada a 03 de Março de 2000, no 2º Cartório Notarial de ..., F... e mulher F... declararam vender aos RR. “E” e estes declaram aceitar, pelo preço de 17.800.000$00, a fracção autónoma designada pela letra ..., correspondente ao 2º andar letra B do prédio urbano designado por lote ..., situado na Rua ..., nº ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº nº ... - al. D) da matéria assente.
e) - Por escritura pública lavrada a 28/04/1994 no Cartório Notarial de ..., F..., na qualidade de legal representante de F..., declarou vender à A. “A” e esta declarou aceitar, pelo preço de Esc. 6.000.000$00, a fracção autónoma designada pela letra ... correspondente ao 1º andar, para habitação, do prédio urbano designado por lote ..., situado na Rua ..., nº ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº nº ... - al. E) da matéria assente.
f) - Do assento de nascimento nº 126, lavrado na Conservatória do Registo Civil de ... a 03/02/1998, consta declarado o nascimento de F..., ocorrido a 28/01/1998, como filho de “A” - al. F) da m.a.
g) - Do assento de nascimento nº 1547, lavrado na C.R.C. de ... a 14/12/2000, consta declarado o nascimento de F..., ocorrido a 08/12/2000, como filha de “B” - al. G) da m.a..
h) - Do assento de nascimento nº 342, lavrado na C.R.C. de ... a 16/03/2001, consta declarado o nascimento de F..., ocorrido a 11/03/2001, como filha de “C” - al. H) da m.a..
i) - Os RR. mudaram-se para a fracção referida em d) em Março de 2002 - al. I) da m.a..
j) - Levando consigo um cão de raça “Bichon Maltez” e uma cadela perdigueira - al. J) da m.a..
l) - Que já tinham consigo, o primeiro desde há seis anos e a segunda desde há nove anos - al. M) da m.a..
m) - A fracção referida em e) fica situada por baixo da fracção referida em d) - al. M) da m.a..
n) - A “A” permaneceu na fracção referida em e) desde Abril de 1994 até ao final de Outubro de 2001 - al. N) da m.a..
o) - E o A. “A” permaneceu nessa mesma fracção desde Dezembro de 1994 até ao final de Outubro de 2001 - al. O) da m.a.
p) - Aí pernoitando, fazendo as suas refeições, recebendo amigos e correspondência - al. P) da m.a.
q) - Por escritura pública lavrada a 19/10/2001, a “A” declarou vender a F... e estes declararam aceitar, pelo preço de Esc. 15.000.000$00, a fracção autónoma designada pela letra ... correspondente ao 1º andar B, para habitação, do prédio urbano designado por lote ..., situado na Rua ..., nº ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artº ... - al. Q) da m.a..
r) - Os AA. “B” dormem na fracção referida em a) desde Março de 1999 - al. R) da m.a..
s) - Aí confeccionam e tomam as suas refeições - al. S) da m.a..
t) - Recebem os seus familiares e amigos - al. T) da m.a..
u) - Bem como a correspondência que lhes é destinada - al. U) da m.a..
v) - É na mesma fracção que a A. “B” permanece todo o dia cuidando da (filha), desde Dezembro de 2001 - al. V) da m.a..
x) - A A. “C” dorme na fracção referida em b) desde Novembro de 1998 - al. X) da m.a..
y - Aí confeccionando e tomando as suas refeições - al. Y) da m.a..
z) - Recebendo familiares amigos e a sua correspondência - al. Z) da m.a..
aa) - É na mesma fracção que desde o início do ano de 2002 a A. permanece todo o dia, cuidando de (filha) e dos afazeres do lar - al. AA) da m.a..
bb) - A A. “D” dorme permanentemente na fracção referida em c) desde Julho de 1997 - al. BB) da m.a..
cc) - Aí fazendo as suas refeições - al. CC) da m.a..
dd - Recebendo familiares e amigos - al. DD) da m.a..
ee) - E ainda a sua correspondência - al. EE) da m.a..
ff) - Na reunião de condóminos de 05/01/2001, a “A” foi nomeada administradora do prédio referido em a) - al. FF) da m.a..
gg) - O prédio não dispõe de elevadores - al. GG) da m.a..
hh) - Os cães referidos em j) ladram durante o dia e durante parte da noite - resp. artº 1º da b.i.
ii) - Começando a ladrar de manhã por volta das 7.00 horas - resp. artº 2º.
jj) - Durante parte do dia ficam sozinhos em casa - resp. artº 3º.
ll) - Os cães por vezes apenas só sossegam de madrugada, por volta da 1h30m/2h00 e só depois de a Ré mulher ir com os animais à rua, por volta dessa hora, após chegar do trabalho - resp. artºs 4º e 5º.
mm) - Descendo os cães as escadas ladrando e causando intensos ruídos - resp. artº 6º.
nn) - Incomodando os condóminos - resp. artº 8º.
oo) - Os cães, além de ladrarem, ganem durante o dia e a noite - resp. artº 9º.
pp) - Afectando o repouso de todos os vizinhos - resp. artº 10º.
qq) - Dificultando-lhes o dormir - resp. artº 11º.
rr) - Uns trabalham de noite necessitando de dormir de dia - resp. artº 12º.
ss) - Outros só conseguem dormir de madrugada, quando os cães deixam de ladrar - resp. artº. 13º.
tt) - Também F... via o seu sono e repouso diariamente afectados pelos ruídos causados pelos cães - resp. artº 14º.
uu) - Tais ruídos dificultavam aos AA. “A”, quando regressavam a casa do descanso depois de findo um dia de trabalho - resp. artº 15º.
vv) - E aos fins de semana impedia-os de dormirem até mais tarde - resp. artº 16º.
xx) - A situação supra descrita deixou os AA. desesperados - resp. artº 17º.
yy) - Sentindo-se cansados, nervosos e sob stress - resp. artº 18º.
zz) - Os barulhos e ruídos descritos contribuíram para que os AA. “A” procurassem outra casa - resp. artº 19º.
aaa) - O facto de terem de sair da fracção referida em e) deixou os AA. tristes e desgostosos - resp. artº. 21º.
bbb) - Até à chegada dos RR. ao prédio referido em e), o mesmo era sossegado e os vizinhos davam-se bem - resp. artº 22º.
ccc) - Os barulhos produzidos pelos cães contribuíram para que a A. “B” não pudesse descansar, a qual sentiu ansiedade e irritabilidade - resp. artº 23º.
ddd) - O que ocorreu durante a gravidez - resp. artº 24º.
eee) - Após o nascimento de F..., os ruídos provocados pelos cães contribuíram para que aquela não dormisse - resp. artº 25º
fff) - E perturbavam o repouso da A.- resp. artº 26º.
ggg) - Frequentemente a criança acordava com aqueles ruídos, acabando por quebrar o repouso da A. - resp. artº 27º.
hhh) - Tal situação deixava a A. desesperada e angustiada - res. artº 28º
iii) - O que prejudicava os afazeres de cada dia e o sossego de ambas - resp. artº 29º.
jjj) - Tais ruídos afectavam o descanso semanal dos AA. “B”, bem como os seus tempos livres - resp. artº 30º.
lll) - Sentindo-se ambos prejudicados física e intelectualmente no exercício das suas actividades profissionais por não conseguirem descansar convenientemente - resp. artº 31º.
mmm) - Apresentando queixas de ansiedade, nervosismo e irritabilidade - resp. artº 32º.
nnn) - Os barulhos e ruídos descritos contribuíram para que a A. “B” procurasse uma nova casa para habitar na companhia (do marido) - resp. artºs 33º e 34º.
ooo) - Os barulhos e ruídos provocados pelos cães fizeram com que a A. “C” sentisse nervosismo e angústia - resp. artº 35º.
ppp) - Depois do nascimento de F..., os ruídos dos cães afectavam o descanso do bébé - resp. artº 36º.
qqq) - Assim como a tranquilidade da A. - resp. artº 37º.
rrr) - A criança revela ainda uma agitação anormal e uma grande dificuldade em adormecer - resp. artº 38º.
sss) - A criança acorda frequentemente com aqueles barulhos, quebrando-se-lhe o descanso - resp. artº 39º.
ttt) - Facto que deixa a A. angustiada e desesperada - resp. artº 40º
uuu) - Perturbando o seu descanso em casa e os seus momentos de lazer - resp. artº 41º.
vvv) - A A. tem manifesto cansaço e nervosismo - resp. artº 42º.
xxx) - Em resultado dos ruídos dos animais, a A. “C” sentiu-se prejudicada física e intelectualmente no seu serviço diário - resp. artº 43º.
yyy) - Tais ruídos afectavam o descanso da A. quando regressava a casa depois de um dia de trabalho - resp. artº 44º.
zzz) - Os cães referidos em j) fizeram por vezes as suas necessidades nas escadas interiores do prédio - resp. artº 45º.
aaaa) - E no hall de entrada - resp. artº 46º.
bbbb) - Sem que os RR. procedam depois à sua remoção - resp. artº 47º.
cccc) - Tais factos provocam mau cheiro no imóvel - resp. artº 48º.
dddd) - Os dejectos dos animais só são retirados quando o pessoal de limpeza se desloca ao prédio três vezes por semana - resp. artº 49º.
eeee) - A administração do condomínio teve já que substituir o tapete do hall de entrada do prédio - resp. artº 50º.

Estes os factos.

Antes de mais, importa referir que não obstante a impugnação que os apelantes fazem no corpo da sua alegação quanto à matéria de facto provada relativamente aos efeitos do comportamento dos cães na saúde dos AA. concluindo que não foi feita prova relativamente aos mesmos, tem-se por definitivamente assente a matéria de facto descrita.
É que, como é sabido, a reapreciação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto pelo Tribunal da Relação apenas pode ter lugar nos casos previstos no artº 712º nº 1 do C.P.C. o que manifestamente não ocorre no caso em apreço.
São, pois, irrelevantes os considerandos feitos na alegação dos apelantes a respeito da matéria de facto considerada provada atinente às consequências na saúde psíquica dos AA.
Insurgem-se os apelantes contra a sentença recorrida, fundamentalmente, por entenderem que a factualidade provada não é suficiente para configurar qualquer ilícito que os constitua na obrigação de indemnizar, além de não existir nexo de causalidade entre tais factos e os danos invocados.
Vejamos.
Nos termos do artº 483º do C. Civil, a responsabilidade civil por factos ilícitos tem como requisitos: o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade.
Como refere A. Varela “facto voluntário significa, apenas (...) facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade.
Para fundamentar a responsabilidade civil basta a possibilidade de controlar o acto ou omissão; não é necessária uma conduta predeterminada, uma acção ou omissão orientada para certo fim (uma conduta finalista). Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas ...” (Das Obrigações em Geral, vol. I, p. 537).
Por outro lado, “há-de tal facto voluntário, revestir um carácter de ilicitude, de contrariedade por parte do lesante com os comandos que lhe são impostos pela ordem jurídica, ou seja, a infracção de deveres jurídicos, quer de abstenção, quer, em determinados, de acção. Violando o seu dever de abstenção face à personalidade física ou moral de outrém, o lesante pratica um facto positivo ou uma acção ilícita.
Desrespeitando o seu dever de acção para com a mesma personalidade, .... o lesante pratica um facto negativo ou uma omissão ilícita. No direito civil a que nos atemos, mormente no campo das relações de personalidade, o dever jurídico emerge quer da necessidade de respeitar um contraposto direito de personalidade alheio, como da obrigatoriedade de cumprimento da lei que proteja interesses alheios de personalidade, embora não outorgue direitos subjectivos a tais interessados (cfr. Capelo de Sousa, o Direito Geral de Personalidade, 1995, p. 435).
A ordem jurídica portuguesa reconhece, designadamente através do artº 70º do Código Civil o direito geral de personalidade, compreendendo, complexivamente, a personalidade física e a personalidade moral.
O direito ao sono e ao repouso inserem-se nos direitos de personalidade, de protecção da saúde e a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, constituindo a sua violação facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar o lesado.
O lar de cada um é o local normal de retempero das forças físicas e anímicas desgastadas pela vivência no seio da comunidade, mormente nos grandes centros urbanos como se refere no Ac. do STJ de 13/3/86 citado na sentença recorrida.
Ora, face à abundante matéria de facto provada não existe dúvida que tais direitos dos apelados foram violados pela conduta dos apelantes.
Com efeito, dispensando-nos aqui de reproduzir a ampla matéria provada reveladora de tal violação, basta referir-se que ficou provado que os apelantes levaram, em Março de 2002 e mantêm na sua fracção, dois cães que ladram e ganem durante o dia e durante a noite, que ficam sozinhos em casa parte do dia, que só sossegam, por vezes, quando a apelada após chegar do trabalho os leva à rua por volta da 1h30m/2h00, que descem as escadas ladrando e causando intensos ruídos, sendo ainda que, por vezes, os cães fizeram as suas necessidades nas escadas interiores do prédio e no hall de entrada sem que os apelantes procedam à sua remoção, causando mau cheiro no imóvel e que os dejectos dos animais apenas são retirados quando o pessoal de limpeza se desloca ao prédio três vezes por semana.
Os factos descritos afectam o repouso de todos os seus vizinhos, que trabalham uns de dia outros de noite, dificultando-lhes o dormir, mesmo aos fins-de-semana, sendo que os ruídos e barulhos provocados pelos cães perturbam o sono dos bébés filhos dos AA. “A”, “B” e “C” que acordam com aqueles ruídos quebrando-lhes o repouso e descanso.
Como consequência de tais ruídos, os AA. (e sem necessidade de aqui destacar cada um deles), sentem-se, em suma, cansados e nervosos, desesperados e angustiados, apresentando irritabilidade e stress e prejudicados física e intelectualmente no exercício das suas actividades profissionais, por não conseguirem descansar convenientemente.
De todo o exposto, resulta à saciedade, a violação ilícita por parte dos apelantes, do direito à integridade física e moral, à saúde e ao repouso dos AA., isto é, a violação do seu direito de personalidade, causadora de danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito (artºs 483º e 496º do C. Civil)
Referem os apelantes que existe contradição na sentença ao considerar, por um lado provada quase toda a matéria alegada pelos AA. e, por outro, a redução das indemnizações pedidas.
Na verdade, face ao elenco factual provado e a inquestionável gravidade dos incómodos sofridos, quer pelos AA. que se viram obrigados a procurar outra casa (sendo irrelevante a expressão “contribuíram”), quer pela A. que lá continua a residir, afiguram-se-nos deficientemente fixados, por defeito, os montantes indemnizatórios, pelo que, a serem alterados, só o poderiam ser para mais. Mas processualmente, isso está-nos vedado.
Por fim, também não tem qualquer razão de ser a pretensa inadequação à ordem de retirada dos animais do prédio o facto de, dos AA. da acção, apenas ali permanecer a viver a A. “C” e sua filha F..., pois a verificada afectação do seu direito de personalidade não depende da permanência ou não dos seus co-autores no prédio.

Por todo o exposto, improcedem, in totum, as conclusões da alegação dos apelantes, extraindo-se que:
- A ordem jurídica portuguesa reconhece designadamente através do artº 70º do C. Civil o direito geral de personalidade onde se integram o direito ao repouso, à tranquilidade a ao sono que são aspectos do direito à integridade pessoal.
- Viola ilicitamente os direitos de personalidade dos moradores de um prédio a conduta do vizinho que mantém na sua fracção dois cães permitindo que os mesmos ladrando e ganindo quer de dia (de que passam parte sozinhos), quer de noite, produzam ruídos que prejudicam o repouso, a tranquilidade e o sono daqueles.
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DECISÃO

Nesta conformidade, acordam os Juizes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes