Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
124/14.7T8STC.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Age com abuso de direito a parte que, após incumprimento da outra parte lhe continuou a fornecer café, criando neste a convicção na manutenção da relação contratual e veio a celebrar outro contrato para fornecimento de café, na sequência de um outro que a outra parte não logrou cumprir, sabendo que a outra parte – seu agente já há 7 anos - não conseguia consumir as quantidades mínimas de café, face ao seu volume de negócio, pois impunha-se pelo menos que, aquando da renegociação do contrato, fosse discutido entre as partes os valores adequados de consumo mínimo e não como aconteceu, que os termos do contrato fossem definidos sem que a outra parte tivesse interferência ou possibilidade de definição do seu conteúdo, designadamente ao nível das sanções e dos consumos.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:


1 – Relatório.

Em 24.10.2014, na Secção da Instância Local Genérica (“J2”) do Tribunal Judicial da, “AA, S.A.” (A) intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB (R), pedindo o reconhecimento da resolução por incumprimento do R do contrato celebrado entre as partes e a condenação do R no pagamento à A da quantia de € 32.350,47, acrescida de juros de mora calculados desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que celebrou com o R um contrato de fornecimento de café durante 60 meses, pelo qual o R se obrigou a adquirir mensalmente a quantidade mínima de 29 kg de café, ininterruptamente, até perfazer 1.740 kg.
Em tal contrato, o R declarou-se devedor à A da quantia de € 8.287,00, consubstanciando este valor a contrapartida pela obrigação de exclusividade que o R concedeu à A.
Alegou ainda a A que o R incumpriu os consumos mínimos a que estava adstrito, tendo sido interpelado pela A para consumir as quantidades acordadas, sob pena de resolução contratual, o que o R não fez.
Na contestação, o R invocou a exceção de não cumprimento do contrato por parte da A, uma vez que esta deixou de fornecer o café acordado.
Alegou que a A não lhe comunicou nem explicou o clausulado do contrato, designadamente no que respeita ao incumprimento e que estava impossibilitado de cumprir o acordado relativamente ao consumo mínimo de café, o que era do conhecimento da A em data anterior à celebração do contrato.
Concluiu no sentido da absolvição do pedido.
Em sede de audiência prévia, a A impugnou o alegado pelo R.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento da causa.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu o R do pedido formulado pela A.
A A recorreu, formulando a seguintes conclusões:
1ª) O Tribunal a quo julgou totalmente improcedente a acção interposta pela agora Recorrente, absolvendo o Réu, agora Recorrido, de todos os pedidos contra si formulados, com fundamento exclusivo no abuso de direito invocado pelo Réu, pelo que, forçosamente irá o presente recurso apenas incidir sobre o invocado instituto e sobre a sua errada, cremos, aplicação.
2ª) O instituto do abuso de direito, consagrado no artigo 334.º do Código Civil, conforme vem sendo entendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
3ª) Conforme ensina o Prof. Almeida Costa (in RLJ, ano 129º), trata-se da tutela da confiança, que pressupõe a verificação de três requisitos, a criação de uma situação objectiva de confiança, em que alguém pratica um facto que, em abstracto, é apto a determinar outrem a expectativa de adopção, no futuro, de um comportamento coerente com aquele primeiro e que, em concreto, gera tal convicção, o investimento da confiança, no sentido em que a situação concreta dá lugar a que o destinatário do facto tome disposições ou faça mudança de vida que evidenciam as expectativas e revelam os dano e a boa-fé de quem confia.
4ª) Não bastando que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
5ª) Na sua vertente de “venire contra factum proprium”, o instituto do abuso de direito pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa-fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio.
6ª) Assim, apenas existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
7ª) Atenta a prova produzida e os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, dúvidas não restam que pelas partes foi, em 01.08.2011, celebrado um contrato que o Réu nunca viria a cumprir.
8ª) Tal contrato foi celebrado em consequência do incumprimento contratual, pelo Recorrido, de um outro contrato, que vigorou entre as partes desde 30.08.2006, destinando-se aquele a anular e substituir o acordo celebrado anteriormente.
9ª) Com efeito, a Recorrente, atento o incumprimento, pelo Recorrido, do primeiro acordo celebrado e para evitar as consequências, para o Recorrido, da resolução de tal acordo, dispôs-se a celebrar com o Recorrido um outro contrato, cujos termos este aceitou.
10ª) O Tribunal a quo, para fundamentar a aplicação do instituto do abuso de direito e, assim, decidir absolver o Réu de todos os pedidos formulados pela Autora, entendeu, como imprescindível, que se atente, “não só no contrato cuja resolução se aprecia, como os seus antecedentes”, sendo, portanto, estes os antecedentes a que se devem atender, ou seja, ao incumprimento, pelo Recorrido, de um anterior contrato de fornecimento de café (nos termos do qual, inclusivamente, recebeu da Recorrente a quantia de €.9.750,00, a título de contrapartida pela obrigação de adquirir, em exclusivo, café à Recorrente) e à aceitação da Recorrente em renegociar com o Réu e celebrar um novo contrato, para evitar as consequências que para o Recorrido adviriam da resolução do mesmo.
11ª) Não obstante o incumprimento do primeiro contrato ser única e exclusivamente imputável ao Réu e a postura da Recorrente em nada beliscar os ditames da boa-fé, que, aliás, devem sempre pautar os contraentes em qualquer negócio, pois que esta apenas aceitou renegociar o contrato em causa por assim o quis, entendeu o Tribunal a quo que foi tal conduta a fundamentar o abuso de direito com que julgou ter a Recorrente agido, porquanto considera que foi essa mesma conduta - não conseguimos entender nem como, nem por que motivo - que começou a criar no Recorrido a confiança que o contrato não seria nunca resolvido.
12ª) Mais tendo o Tribunal a quo entendido que tal confiança se alicerçou também no facto de a Recorrente nunca ter alertado o Recorrido, durante a vigência do primeiro contrato, para as diferenças de consumo.
13ª) Da matéria dada como provada não resulta, por qualquer forma, que a Recorrente nunca tenha alertado o Recorrido para as diferenças de consumo, durante a vigência do primeiro contrato, pelo que, não poderia, assim, o Tribunal a quo fundamentar a sua decisão em tal facto.
14º) Por outro lado, o Tribunal a quo não atribuiu, nesta matéria, qualquer relevância ao facto dado como provado sob o Ponto 26, ou seja, a especial relação do Recorrido com a Recorrente.
15ª) Conforme resultou provado, o Recorrido foi agente da Recorrente desde, pelo menos, 2006 até Março de 2013, o que naturalmente implicou que a relação comercial mantida entre as partes não fosse, de todo, uma mera relação de Fornecedor/ Cliente.
16º) Dúvidas não podem restar que o Recorrente em muito beneficiou por ser simultaneamente Agente e Cliente da Recorrente, pois que sempre manteve esta uma atitude de manifesta tolerância, que se traduziu no facto de ter dado todas as condições ao Recorrido para que este, primeiro, aumentasse os consumos, não tendo resolvido prontamente o primeiro contrato, e, depois no facto de ter aceitado renegociar o mesmo e acordar a celebração de um novo contrato.
17ª) Atenta a sua especial ligação com a Recorrente, não poderia o Réu deixar de conhecer não só os termos em que se obrigou perante a Recorrente, como as consequências que para si adviriam do não cumprimento do acordado com esta.
18º) O Tribunal a quo fundamentou ainda a sua decisão no facto de o Recorrido, já na vigência do segundo contrato, ter recebido “carta em Maio de 2013 a alertá-lo para a falta de consumos e, durante o ano seguinte, o contrato mantém-se em vigor sem que nada mais aconteça.”
19ª) O que facilmente também se explica pela especial relação que existia entre as partes, mas que não pode servir de fundamento à expectativa alegadamente criada no Recorrido pela Recorrente de que não resolveria o contrato.
20ª) Pois que tanto assim é que, como resultou provado, logo que recepcionou tal missiva o Recorrido diligenciou junto da Autora para tentar resolver a questão, nomeadamente renegociando novamente o contrato, o que não se revelou possível, como, aliás, foi julgado provado - Ponto 12 da matéria de facto.
21ª) Assim, ao contrário do que resulta da sentença recorrida, atenta a prova produzida, não corresponde à verdade que nada mais tenha acontecido.
22º) O que, efectivamente sucedeu é que, por várias razões, não lograram as partes chegar a qualquer novo acordo, o que não poderá, certamente, apenas imputar-se à Recorrente.
23ª) Sendo certo que, nada obrigava a Recorrente a celebrar novo acordo, como de resto já havia sucedido com o primeiro contrato, pois que, atento o reiterado incumprimento do Recorrido, reunia a mesma todas as condições, nos termos contratualmente estabelecidos pelas partes e que o Recorrido bem conhecia, para resolver imediatamente o contrato.
24ª) Atenta à matéria dada como provada, nomeada e essencialmente nos Pontos 5, 6, 8, 10, 11, 12, 14, 15 e 26, dos factos provados, bem como o Ponto B) dos factos não provados, inexiste fundamento para que o Tribunal a quo decidisse nos moldes em que o fez, pois que não se encontram preenchidos os requisitos de que depende a aplicação do instituto do abuso de direito.
25º) A Recorrente nunca aceitou que o Recorrido permanecesse em incumprimento, nem nunca incutiu no mesmo que nunca resolveria o contrato, o que, de resto, atento que a Recorrente é uma sociedade comercial que, enquanto tal, exerce a sua actividade comercial com exclusivo intuito lucrativo, não seria todo razoável.
26ª) A Recorrente manteve sempre a mesma conduta, tendo apenas em vista a venda dos produtos por si comercializados, mas sempre dentro dos limites contratuais acordados com o Recorrido, que este sistematicamente incumpriu.
27ª Pela Recorrente foi, aliás, efectuado, aquando da celebração do primeiro contrato, um avultado investimento, que se traduziu na atribuição ao Recorrido de uma contrapartida em dinheiro, de que não obteve retorno, tendo, assim, o Réu, injustificadamente enriquecido à sua custa.
28ª) Inexistiu, assim, uma qualquer inversão da conduta da Recorrente, pois que manteve sempre esta o propósito único de ver cumprido os contratos celebrados com o Recorrido.
29ª) A Recorrente apenas resolveu o contrato celebrado em último lugar por considerar que nada mais poderia fazer que obstasse a tal resolução, pois que já havia, no âmbito do primeiro contrato, aguardado, por vários anos, que o Recorrido aumentasse os consumos, depois aceitou renegociar e celebrar novo contrato com aquele e, posteriormente, ainda aguardou, durante toda a execução do segundo, que pudesse existir um aumento na aquisição do café, o que nunca veio a suceder.
30º) Tudo tendo em atenção a especial relação que mantinha com o Recorrido, que, conforme resultou provado, ia para lá da habitual relação que mantém com os seus clientes, o que foi entendido pelo Tribunal a quo, mal no nosso entender, como violação de “legítimas expectativas criadas”.
31º) Da conduta da Recorrente, não se pode inferir, de forma alguma, ter a mesmo agido de má-fé, com abuso de direito, nem há motivos para se entender que criou a mesma no Recorrido, com a sua conduta, expectativas e confiança que depois se frustraram com a resolução do contrato, abusando do seu direito, na vertente da sub-figura “venire contra factum proprium”.
32ª) Nenhuma das situações invocadas pela Meritíssima Juiz na sentença recorrida pode ser entendida ou, sequer, indicia abuso de direito, designadamente na vertente do “desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
33ª) Essa sucessão de condutas não caracteriza abuso de direito, tal como ele se mostra gizado no artigo 334.º do Código Civil, e, como tal, nunca tal instituto poderia servir de fundamento à absolvição do Réu.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão que julgue totalmente procedente a acção interposta pela agora Recorrente e, em consequência, condene o Recorrido em todos os pedidos (…).”
O R contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
a) A resolução operada pela recorrente não se enquadra numa atuação de boa-fé – conforme artigo 762.º, n.º 1 do Código Civil – porquanto destruiu a confiança que o recorrido, motivadamente, fez na sua conduta;
b) Atuou a recorrente com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium ao resolver o contrato, a um mês do seu termo, com fundamento em incumprimento na aquisição das quantidades mínimas de café, quando durante cerca de oito anos nunca reagiu ao facto de os consumos mensais do recorrido se cifrarem bem abaixo do mínimo a que se vinculara;
c) A recorrente tinha perfeito conhecimento dos hábitos de consumo do recorrido, mormente no que tange as quantidades de café mensalmente adquiridas e o seu desfasamento por reporte ao contratualmente previsto;
d) A recorrida permitiu a vigência de dois contratos, na íntegra, constituindo manifesto abuso de direito a resolução operada tendo havido tolerância e aceitação no incumprimento contratual por parte do recorrido durante oito anos;
e) Quando a recorrente resolveu agir contraditoriamente com a sua conduta inicial, passando a considerar infrator aquilo que durante oito anos não considerara, traiu a expectativa do recorrido de que a sua atuação não seria considerada por aquela como violadora do contrato;
f) A inércia da recorrente, que desde o início do primeiro contrato soube que o recorrido nunca adquiriu a quantidade mínima de café a que se obrigara, o mesmo sucedendo no segundo contrato, criou razoavelmente neste a convicção que tal violação contratual não revestia gravidade suficiente para justificar a resolução do contrato, assim sedimentando nele a legitima expectativa que o contrato não seria resolvido por este fundamento;
g) A douta Sentença em crise não merece qualquer reparo quanto à sua fundamentação e conclusão, devendo a apelação apresentada merecer total improcedência.
Destarte, [deve manter-se] a decisão a quo (…).”
Factos dados como provados na 1ª instância:
1. A Autora dedica-se à produção, torrefação, comercialização, distribuição e venda de cafés e outras atividades conexas.
2. O Réu é comerciante e explora um estabelecimento comercial denominado “Bar”, com horário de funcionamento das 20:30h às 02:00h, com exceção das sextas e sábados, em que encerra às 04:00h.
3. No exercício das suas atividades, a Autora e o Ré celebraram em 1.08.2011 acordo denominado “Contrato n.º 2011-BOG/111”, pelo qual a primeira se obrigou a fornecer ao segundo, que se obrigou a adquirir, café, descafeinado e açúcar.
4. O Réu obrigou-se também a não adquirir a terceiros tais produtos e a não publicitar outras marcas de café e produtos análogos.
5. O Réu obrigou-se ainda a adquirir, durante 60 meses, a quantidade mínima mensal de 29 kg de café, lote Selection, marca AA, perfazendo o total contratual de 1.740 kg, sendo tidos em consideração, para este efeito, os consumos realizados desde 21.06.2011.
6. O acordo mencionado em 3 destinava-se a anular e substituir o acordo celebrado em 30.08.2006 entre o Réu e a CC, S.A. (atualmente com a designação de AA, S.A.), constante de fls. 65 e que se dá por integralmente reproduzido.
7. A aquisição de café, descafeinado e açúcar pelo Réu destinava-se a revenda no seu estabelecimento comercial “Bar”.
8. Pelo acordo mencionado em 3 o Réu declarou-se devedor à Autora da quantia de € 8.287,00, IVA incluído à taxa em vigor, resultante da diferença entre a contrapartida cedida pela Autora no acordo celebrado em 30.08.2006 e os quilos efetivamente consumidos durante a vigência de tal acordo, funcionando este valor como contrapartida da obrigação de exclusividade que o Réu concede à Autora.
9. No âmbito do acordo referido em 3 a Autora entregou ao Réu, para sua utilização na qualidade de fiel depositário:
a. Uma máquina de café Rancilio COMPRA E VENDA, no valor de € 1.500,00;
b. Um moinho de café MD 50 AT, no valor de € 250,00;
c. Uma máquina de lavar chávenas Rancilio, no valor de € 800,00.
10. Desde 30.06.2011 até 30.05.2014 o Réu adquiriu à Autora 127 kg de café.
11. A Autora remeteu ao Réu carta datada de 10.04.2013, alertando para a necessidade de o Réu proceder aos consumos acordados contratualmente no prazo de 15 dias, findo o qual procederiam à resolução do contrato por incumprimento definitivo.
12. Nessa sequência, o Réu encetou contactos com a Autora no sentido de proceder à renegociação das cláusulas contratuais, designadamente no que tange às quantidades mínimas de café a consumir, negociações que se revelaram infrutíferas.
13. Depois da mencionada carta, a Autora continuou a fornecer café ao Réu, o que criou neste a convicção na manutenção da relação contratual.
14. A Autora remeteu ao Réu carta registada com aviso de receção, datada de 2.06.2014, na qual refere que o Réu não tem adquirido a quantidade mínima mensal acordada e violou a proibição de publicitar outras marcas, acrescentando que deverá retomar a aquisição da quantidade mensal acordada no prazo de 15 dias sob pena de o seu comportamento constituir fundamento para a resolução contratual, a qual dará lugar ao pagamento da quantia total de € 32.346,21.
15. Por carta registada e com aviso de receção, datada de 2.07.2014, a Autora comunicou ao Réu a resolução do contrato aludido em 3, concedendo-lhe o prazo de 8 dias para pagamento da quantia de € 32.479,63.
16. A partir de Agosto de 2014 a Autora deixou de fornecer café ao Réu e não aceitou encomendas de café feitas pelo Réu.
17. O Réu, por meios alternativos, continuou a adquirir e vender no seu estabelecimento exclusivamente o café da Autora.
18. O Réu não conseguia consumir as quantidades de café acordadas, face ao seu volume de negócio, situação que era do conhecimento da Autora.
19. O acordo referido em 3 foi elaborado pela Autora sem que o Réu tivesse interferência ou possibilidade de definição do seu conteúdo, designadamente ao nível das sanções e dos consumos.
20. A Autora não explicou ao Réu o conteúdo das cláusulas constantes do acordo, nem as suas implicações.
21. O Réu assinou, em 28.07.2011, documento no qual declarou que, após análise da minuta do contrato mencionado em 3, que lhe foi fornecida pela Autora, autoriza tal redação, concordando com todas as suas cláusulas, as quais lhe foram devidamente explicadas, encontrando-se interessado em proceder à sua assinatura.
22. Desde há cerca de um ano e meio a afluência do estabelecimento do Réu diminuiu.
23. O Réu procurou atrair clientela para o estabelecimento identificado em 2, proporcionando noites temáticas e outros eventos potenciadores da frequência.
24. Não obstante, o consumo de café no estabelecimento do Réu sofreu uma redução.
25. Os equipamentos mencionados em 9 foram cedidos ao Ré no âmbito do acordo celebrado em 30.08.2006 entre o Réu e a Unicer – Distribuição de Bebidas, S.A.
26. O Réu foi agente da Autora desde, pelo menos, 2006 até Março de 2013.
Factos Não Provados
A. O constante de 16 ocorreu em data anterior a 4.07.2014.
B. O constante de 6 e 18 fez sedimentar no Réu o sentimento de que os consumos indicados eram meramente indicativos e não vinculativos.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.


2 – Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, pelo que a questão a decidir reside em saber se a A agiu com abuso de direito.


3 - Análise do recurso.

A recorrente insurge-se contra a sentença na medida em que a mesma defende a existência de abuso de direito.
O R, na contestação, invocou tal excepção por considerar que a Autora/Recorrente sabia que o contrato celerado entre ambos não iria ser cumprido por si, no que respeita às quantidades mínimas mensais de café a consumir e por a A ter permitido a execução do contrato durante mais de dois terços da sua vigência, sabendo que o R não estava a cumprir o acordado.
Vejamos:
A sentença conclui que a A agiu com abuso de direito já que:
Celebrou com o R, em 30.08.2006, um contrato de fornecimento de café, pelo qual este se obrigou a adquirir 35 kg de café mensalmente, para revenda no estabelecimento “Nox Bar”, contrato que foi anulado e substituído pelo que está em causa nos autos (por já se verificar que o R não havia adquirido as quantidades de café acordadas), o que demonstra que a A sabia, desde 2006, que o R não efetuava as aquisições de café nas quantidades contratualmente fixadas e, apesar disso e durante os 5 anos de vigência do primeiro contrato, a A nunca resolveu o contrato com o R ou sequer o alertou para tais diferenças de consumo, tendo antes agido sempre como se o R cumprisse o acordo celebrado.
E, chegado o final do primeiro contrato e considerando as grandes diferenças necessariamente existentes entre a quantidade de café que deveria ter sido consumida e aquela que efetivamente o foi, a A, mais uma vez, não resolveu o contrato e, ao invés, celebrou um novo contrato, estipulando uma quantidade de café a consumir pouco inferior àquela que havia sido fixada no primeiro contrato e que superava em muito a que habitualmente era consumida pelo R.
Conclui a sentença recorrida que, ao adotar tal conduta, a A incutiu no R a confiança de que o incumprimento de tais consumos não a levaria a resolver o contrato celebrado.
É este o raciocínio subjacente à sentença, com o qual não podemos deixar de concordar.
Com efeito, resulta dos factos provados que o contrato agora em causa já foi celebrado na sequência de um outro que o R não logrou cumprir e a A sabia que o R não conseguia consumir as quantidades de café acordadas, face ao seu volume de negócio.
O R foi agente da A desde 2006 até 2013 – durante 7 anos - e só em 2013 é que a A alertou o R para a necessidade de cumprir o consumo mínimo.
Ora, face à duração do relacionamento contratual anterior com o conhecimento por parte da A de que o R não conseguia consumir as quantidades de café acordadas, face ao seu volume de negócio (facto provado n.º 18), impunha-se, pelo menos, que, aquando da renegociação do contrato em 2011, fossem discutidos entre as partes os valores adequados de consumo mínimo a que o R se obrigaria e não, como aconteceu, que o acordo fosse elaborado pela A sem que o R tivesse interferência ou possibilidade de definição do seu conteúdo, designadamente ao nível das sanções e dos consumos (facto provado n.º 19).
Note-se, aliás, que esta situação confere à A uma posição dominante através de um contrato que sabe que dificilmente poderá ser cumprido.
Por outro lado, a A, perante o incumprimento antes evidenciado, renegociou outro contrato, ou seja, permitiu anteriormente que o R incumprisse o estabelecido, mantendo a relação comercial – note-se que o contrato assinado em 01.08.2011 resultou da renegociação do anteriormente celebrado entre as partes e que o R não conseguiu cumprir - sendo por isso legítimo concluir que não seria relevante o cumprimento dos consumos mínimos estabelecidos.
Repare-se que é a A que impõe as quantidades de consumo em causa, recusa-se a dialogar sobre as mesmas quando tal lhe é pedido e utiliza os termos em causa para pôr fim ao contrato.
Não nos parece que esta conduta seja aceitável em termos de boa-fé contratual.
Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumem ou pelo fim social ou económico desse direito.
Este preceito adotou uma conceção objetiva do abuso de direito, não sendo, por isso, necessária a consciência por parte do titular do direito do excesso referido na mencionada disposição, bastando que tal excesso se verifique.
Contudo, a consideração de fatores subjetivos pode assumir relevância para aferir da existência de abuso de direito, designadamente no que respeita à intenção do titular do direito - neste sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume I, 4.ª edição, página 298.
Conforme ensina Almeida e Costa (in RLJ, ano 129.º), em causa está a tutela da confiança, que pressupõe a verificação de três requisitos:
I - a criação de uma situação objectiva de confiança, em que alguém pratica um facto que, em abstracto, é apto a determinar outrem a expectativa de adopção, no futuro, de um comportamento coerente com aquele primeiro e que, em concreto, gera tal convicção;
II - o investimento da confiança, no sentido em que a situação concreta dá lugar a que o destinatário do facto tome disposições ou faça mudança de vida que evidenciam as expectativas e revelam os danos;
III - a boa fé de quem confia.
Como refere Jorge Coutinho de Abreu (in “Do Abuso de Direito”, página 43), “[h]á abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”. No mesmo sentido, referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, página 300), que “[a] nota típica do abuso do direito reside ... na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.”
Por outro lado, Cunha de Sá (in “Abuso do Direito”, Almedina, 2005, página 101) escreve que “abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever". Mais escreve (página 103), analisando a noção legal de abuso de direito, que o mesmo se traduz “num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido.”
O abuso de direito pode revestir várias modalidades, entre elas, a de “venire contra factum proprium”, que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
Pode, efectivamente, configurar uma situação de abuso de direito na referida modalidade, aquela em que o titular do direito se deixa cair numa longa inércia sem exercitar o seu direito, susceptível de criar na contraparte a fundada convicção de que esse direito não será mais exercido e que a sua posição jurídico-substantiva se encontra já consolidada, vindo, posterior, a agir.
Não tendo a A, ao longo de anos, com conhecimento da situação, reagido por qualquer forma ao incumprimento contratual repetido que se foi verificando no que respeita à aquisição das quantidades de café contratadas, actua em abuso de direito por ter só agora, ao fim desse tempo, resolvido o contrato com aquele fundamento, isto é, por não estarem a ser adquiridas as quantidades contratadas, mas quantidades inferiores.
Por isso, não tem razão a recorrente ao concluir que o R não podia deixar de saber que os valores de consumos mínimos não eram indicativos e constituíam uma obrigação dos clientes da A, face às funções de agente da A que exercia.
É justificada a confiança do R de que, apesar do incumprimento do contrato por falta de consumo das quantidades acordadas, este não seria resolvido com tal fundamento, tanto mais que, já no âmbito do segundo contrato celebrado em 01.08.2011, o R recebeu uma carta, em Maio de 2013, a alertá-lo para a falta de consumos e, durante o ano seguinte, o contrato mantém-se em vigor sem que mais nada aconteça.
Não se trata de a recorrente ser obrigada a aceitar indefinidamente o incumprimento contratual do R mas impunha-se o diálogo e a análise das circunstâncias, pelo menos aquando da renovação do contrato.
Tanto mais que, a A tinha perfeito conhecimento que, face ao volume de negócio do R, este não iria consumir mais café do que aquele que vinha adquirir ao longo de quase 6 anos. Esta passividade da A tem relevo porque perdura no tempo e, assim, quando esta resolveu o contrato, agiu, contraditoriamente com a sua conduta inicial, passando a considerar infracção aquilo que antes não considerara, o que constitui abuso de direito. (neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.05.2005, proferido no processo n.º 0552581, disponível em www.dgsi.pt).
A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
Em suma:
Conclui-se que a resolução contratual operada pela Autora constituiria um abuso de direito ou seja, como acentuava Manuel de Andrade, que o direito seria exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça e por isso não se permite tal exercício, confirmando-se a sentença recorrida.
Nesta medida, é o presente recurso improcedente.

Sumário:
Age com abuso de direito a parte que, após incumprimento da outra parte lhe continuou a fornecer café, criando neste a convicção na manutenção da relação contratual e veio a celebrar outro contrato para fornecimento de café, na sequência de um outro que a outra parte não logrou cumprir, sabendo que a outra parte – seu agente já há 7 anos - não conseguia consumir as quantidades mínimas de café, face ao seu volume de negócio, pois impunha-se pelo menos que, aquando da renegociação do contrato, fosse discutido entre as partes os valores adequados de consumo mínimo e não como aconteceu, que os termos do contrato fossem definidos sem que a outra parte tivesse interferência ou possibilidade de definição do seu conteúdo, designadamente ao nível das sanções e dos consumos.


4 - Dispositivo.

Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e consequentemente manter a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Évora, 05.05.2016

Elisabete Valente

Bernardo Domingos

Silva Rato