Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
163/13.5GBELV.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
Data do Acordão: 05/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
1. Estando em causa crime de injúria (art. 181º, nº1, do CP) é indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, apreciando se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada num quadro merecedor de tutela penal. A honra e o bom nome são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade.

2. A afirmação ''és uma bruxa, uma gorda popota", dita pelo arguido à assistente que sofria de obesidade, no decurso de uma toada ofensiva que incluiu ainda a asserção "se esta precisava de dinheiro que fosse ter com ele ao monte", é expressão ofensiva e cruel que, nas circunstâncias de modo apuradas, reveste dignidade penal. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No processo comum singular nº 163/13.5GBELV da Comarca de Portalegre foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido LF, como autor de um crime de injúria do art. 181º, nº1, do CP, na pena de 50 dias de multa a € 10,00/dia e em € 700,00 de indemnização por danos não patrimoniais.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1. A prova produzida, e em especial por ter sido apenas a prova resultante das declarações da assistente e do seu marido, não consente a conclusão de que o arguido praticou os factos de que vem acusado;

2. Ainda que assim não se entenda, o certo é que as expressões dadas como provadas não têm relevância penal que permita a condenação do arguido;

3. Na verdade, ainda que possam ser consideradas desrespeitosas ou grosseiras, as mesmas não têm a gravidade e intensidade que permitam considerá-las como ofensivas da honra ou consideração seja da assistente, seja de outro destinatário.

4. A subjectividade inerente a este tipo legal de crime tem de ser mitigada com uma apreciação objectiva pois só “são crime as injúrias que, pela sua natureza e circunstâncias, sejam tidas na comunidade por graves.”

5. A douta sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 181º nº1 do CP.

6. A douta sentença recorrida interpretou e aplicou erradamente o disposto nos artigos 494º e 496º do CC.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação da sentença e concluindo:

“1.O Ministério Público concorda integralmente com a douta sentença condenatória proferida nos presentes autos pela Meritíssima Juiz a quo, a qual nenhuma censura merece.

2. O recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, com vista à modificação da sentença recorrida.

3. O artigo 127º do Código de Processo Penal consagra o princípio da livre apreciação/valoração da prova, nos termos do qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

4. A convicção assenta numa valoração global crítica, conjugada e racional, ligada a máximas do conhecimento científico, a regras de experiência ou a juízos lógico-dedutivos, e que permitem ao julgador objectivar a apreciação dos factos, o que se torna imprescindível para actuar o direito ao recurso e sindicar a motivação da decisão.

5. Ora, o Tribunal a quo inquiriu todas as testemunhas arroladas, formulou-lhes as perguntas que entendeu convenientes à luz do princípio da descoberta da verdade material, atendeu à junta aos autos, e, analisando a globalidade da prova produzida de acordo com as máximas do conhecimento científico, as regras de experiência e juízos lógico-dedutivos, formulou um juízo de aceitabilidade dos factos à luz dos resultados probatórios, tendo chegado às conclusões constantes da decisão sobre a matéria de facto e, no que ora releva, dos pontos 1 a 7 da mesma.

6. Na verdade, o Recorrente, mediante a interposição do presente recurso, pretende que a sua conduta seja totalmente desculpabilizada e justificada.

7. Ora, atenta a globalidade da prova produzida em julgamento, conclui-se que a versão dos factos acolhida pelo Tribunal a quo mostra-se sustentada, sendo que a sentença, no que toca à motivação da matéria de facto, encontra-se devidamente fundamentada e não se mostra contrariada pelas regras da experiência comum.

8. Da matéria de facto dada como provada a fls. 142, Pts. 1 a 3, consta que o arguido telefonou à Assistente, dizendo-lhe “és uma bruxa, uma gorda popota”.

9. E, da fundamentação de direito da douta sentença proferida, consta muito bem explicitado o significado de tais expressões a fls. 150, o qual se dá por integralmente reproduzido.

10. O Recorrente pretende, apenas, em sede recursiva, que o seu comportamento seja totalmente desculpabilizado e justificado, pretendendo, pois, garantir uma situação de impunidade que lhe permita, de ora em diante, no futuro e sempre que lhe apeteça, dirigir-se a outrem e chamar “gorda” a pessoas que não são propriamente magras, ou chamar-lhes “popota”, pese embora a popota não seja assim tão gorda, ou chamar-lhe “bruxa”, as quais são uma personagem do nosso quotidiano, senão real, pelo menos televisivo – excertos estes retirados das alegações do Recorrente.

11. Ora, as finalidades da punição são, face ao Código Penal e atento o estipulado no artigo 40º, nº1, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

12. Na dosimetria da pena, devem ser consideradas as funções de prevenção geral e especial das penas, bem como a culpa do agente, que funcionará como limite inultrapassável da pena.

13. A fixação da pena em 50 dias de multa não é excessiva.

14. A pena aplicada é adequada e proporcional ao caso concreto, revelando-se absolutamente necessária para a protecção da comunidade e para a estabilização contra-fáctica das normas.

15. Em face do exposto, o presente recurso deve ser considerado totalmente improcedente, mantendo-se desta forma e integralmente o sentido da douta decisão recorrida.”

A assistente respondeu ao recurso, concluindo:

“A) Atenta a prova produzida nos autos, considerou, e bem, a Meritíssima Juíz do Tribunal a quo, provado que o arguido dirigiu à assistente as expressões “És uma bruxa, uma gorda popota” (ponto 3 dos factos provados).

B) Tais expressões são de teor claramente ofensivo e, por isso, susceptíveis de causar ofensa e tristeza a que são dirigidas, bem como são susceptíveis de lesar a honra e a consideração de qualquer ser humano, tal como sucedeu com a assistente.

C) Nessa medida, remetemo-nos para a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, com a qual concordamos em absoluto.

D) Dúvidas não subsistem de que estão preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de injúrias, previsto e punido pelo art. 181º, do Código Penal.

E) Nesta medida, atenta a fundamentação explanada na Douta Sentença recorrida, deverão V. Exa. manter, na íntegra, a decisão aí proferida, e, em consequência, negar provimento ao recurso interposto.”

Neste Tribunal, a Sr. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se também no sentido da confirmação da sentença. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se provados os seguintes factos:

1 - No dia 25 de Setembro de 2013, cerca das 17 horas, a assistente recebeu no seu telemóvel uma chamada telefónica do arguido através do telefone com o número 96...

2 - No telefonema referido em 1 - o arguido disse à assistente que "se esta precisava de dinheiro que fosse ter com ele ao monte".

3 - No decurso da referida conversação telefónica o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões ''És uma bruxa, uma gorda popota".

4 - O arguido agiu voluntária e conscientemente, sabendo que ao proferir tais palavras ofendia a honra e consideração da assistente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

5 - A assistente é pessoa educada e sensível.

6 - Em consequência das expressões proferidas pelo arguido a assistente sentiu-se ofendida, desgostosa, triste, humilhada e perturbada, sentimentos que se reflectiram no seu ambiente familiar.

7 - Durante algum tempo, cuja duração não foi possível apurar com precisão, a assistente evitou encontrar-se com o arguido, nomeadamente num café da localidade onde ambos vivem e que ambos frequentavam, com receio de que o arguido voltasse a praticar factos semelhantes àqueles supra descritos.

8 - O arguido é empresário agrícola e aufere um rendimento mensal, a título de salário, de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros), para além dos dividendos que recebe por conta de ser titular de participações sociais em sociedades agrícolas.

9 - Vive com a sua mulher em casa própria, pagando a quantia mensal de 950,00 € a título de amortização de empréstimo bancário contraído para a respectiva aquisição.

10 - A sua mulher é funcionária pública, auferindo um vencimento mensal de 820,00 €.

11 - Tem o 9° ano de escolaridade.

12 - É pessoa respeitada e considerada pelos seus pares, reconhecido como benemérito no seio da comunidade em que se insere, mantendo-se afastado de conflitos.

13 - O arguido não tem antecedentes criminais.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são (a) o erro notório da apreciação da prova, (b) o erro de subsunção, (c) a pena e a indemnização.

(a) Do erro notório da apreciação da prova

Relativamente à anunciada discordância da matéria de facto, na motivação do recurso expende-se apenas o seguinte: “Foi o arguido condenado nos presentes autos por ter proferido as seguintes expressões, dirigindo-as à assistente:

- “És uma bruxa, uma gorda popota”. (vd. Ponto 3 da matéria de facto provada)

- Tal matéria de facto foi considerada provada tão-somente com fundamento nas declarações da própria assistente e do seu marido, uma vez que a única outra testemunha arrolada na acusação, Teolinda Matos, declarou não se recordar do arguido “ter chamado nomes” à queixosa.

- Abstraindo da questão da valoração da prova – não obstante, e com o devido respeito, considerarmos que, no contexto global da sua produção em sede de julgamento, a mesma não consente a conclusão a que o douto Tribunal a quo chegou quanto à prática do crime pelo arguido, até porque o arguido não proferiu as expressões de que vem acusado – pretende o ora recorrente trazer à apreciação desta Relação, a questão de apurar se as expressões que foram consideradas como provadas são ofensivas da honra e consideração da assistente.”
Depois, já nas conclusões, adita-se o seguinte: “1. A prova produzida, e em especial por ter sido apenas a prova resultante das declarações da assistente e do seu marido, não consente a conclusão de que o arguido praticou os factos de que vem acusado”.

No que respeita a uma impugnação da matéria de facto, é tudo o que se pode ler no recurso.

Resulta claro que o recurso apresentado, a ser considerado como da decisão da matéria de facto por via ampla ou impugnação nos termos do art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, seria de rejeitar face ao nítido incumprimento dos ónus de impugnação.

Como se sabe, a impugnação da decisão da matéria de facto na sentença pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada (interessa agora o erro notório na apreciação da prova), e por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

O sujeito processual que discorda da “sentença de facto” e dela recorre pode optar pela invocação ou de um erro notório de facto, que é o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida ou de um erro não notório (de facto) que a sentença, por si só, não demonstre.

No primeiro caso, a discordância deve traduzir-se na invocação de um vício da sentença e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de se socorrer de provas produzidas ou examinadas em audiência.

Mas quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (cf. AFJ nº 3/2012).

O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto. Mais do que de uma eventual penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma verdadeira impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

No caso, o recorrente não procedeu, nem ao enunciado dos “pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, nem à especificação das concretas provas em que funda a impugnação (pois não transcreveu as concretas passagens, nem as indicou por referência ao consignado na acta, não valendo como especificação a remessa para a totalidade de depoimentos e declarações sem precisar quais os excertos ou as concretas passagens cuja reapreciação se pretende).

Consideram-se, assim, claramente incumpridos os ónus legais de impugnação, omissão que atravessa toda a peça processual. O incumprimento das especificações prejudica o conhecimento do recurso da matéria de facto, pois essas especificações visam viabilizar o próprio recurso de facto, como se disse.

Restaria sindicar a sentença por via da análise do seu texto, perscrutando se enferma de erro notório na apreciação da prova que, eventualmente, possa ter condicionado a demonstração dos factos provados. Mas também este erro não foi sequer alegado, o que não impede que o tribunal dele conheça oficiosamente, se detectável e detectado.

O erro notório é um erro evidente, facilmente detectado, resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. Consiste em considerar-se provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum. Seria uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).

Sucede que todos os enunciados descritos na sentença como “factos provados” ou como “factos não provados” resultam da leitura das provas produzidas ou examinadas em julgamento e avaliadas correctamente segundo um princípio da livre apreciação (art. 127º do CPP).

Esta livre apreciação não pode deixar de se conectar com o exame crítico da prova, sendo “liberdade de valoração” e “motivação de facto” como que verso e reverso de um mesmo desempenho processual.

A matéria de facto provada (a sua demonstração) encontra-se claramente explicada na sentença, ou seja, do texto da decisão retira-se, com toda a facilidade e clareza, como chegou o tribunal à formação da convicção de “provado” relativamente a todos os factos considerados como tal.

Aliás, a singeleza do episódio de vida em apreciação, a ausência de complexidade do real-concreto observado, não exigiriam maiores ou melhores explicações.

A prova dos factos provados, como a sentença desenvolve e o arguido refere em recurso, consistiu nas declarações da assistente e do seu marido, prestadas em sentido confirmativo dos factos provados e apenas destes. A credibilidade que mereceu esta prova encontra-se justificada no exame crítico da prova, onde pode ler-se, por exemplo, que a assistente “com louvável isenção, apesar de constar da acusação que o arguido lhe havia dirigido a palavra «puta», referiu que o arguido apenas lhe disse, na sequência de se mostrar zangado com um desentendimento ocorrido entre a assistente e a mulher daquele, que a mesma devia ir buscar dinheiro ao monte onde o arguido vive, chamando-a de bruxa e de gorda e mencionando o nome da personagem publicitária Popota”.

Os factos não confirmados pela assistente foram considerados como não provados. E à versão apresentada pela assistente em julgamento, corroborada ainda pelo seu marido, o arguido nada contrapôs.

É certo que não pode ser prejudicado por permanecer em silêncio, em julgamento. O arguido não presta declarações sobre os factos que lhe são imputados no exercício de um direito, consagrado nos arts. 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP e unanimemente considerado como de tutela constitucional implícita. O silêncio, mesmo que não o beneficie, não pode prejudicá-lo.

Mas o tribunal explicou em que consistiu a prova dos factos que considerou, na sentença, suficientemente demonstrados. Essa prova, valorada segundo um princípio da livre apreciação (art. 127º do CPP), mostra-se compreensivelmente suficiente para a demonstração dos factos provados. Esse juízo não se apresenta aqui como merecedor de censura. E o arguido não aponta qualquer razão válida que evidencie o alegado erro de julgamento. Limita-se, no fundo, a dizer que a prova dos factos da acusação não pode resultar de declarações de vítima e de pessoas ligadas a esta.

Sucede que nada impede que a prova por declarações da vítima possa conduzir, por si só, à condenação. Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125 do CPP) e inexiste, in casu, proibição legal.

Miranda Estrampes, na sua tese de doutoramento “A mínima Actividade Probatória em Processo Penal”, dá nota de que o Tribunal Supremo de Madrid, em reiteradas decisões, admite que a declaração da vítima constitui um elemento probatório adequado ou idóneo para formar a convicção do julgador e apto para poder destruir a presunção de inocência, incluindo naqueles casos em que seja a única prova existente” (loc. cit. p. 183).

Daqui não resulta que a vítima beneficie de estatuto especial que se repercuta na credibilidade das suas declarações. No confronto entre prova oral de sinal contrário – declarações do arguido versus as declarações da vítima – o tribunal não fica desobrigado de justificar a maior verosimilhança que estas eventualmente apresentem em julgamento e a justificar a maior credibilidade do depoimento.

E mesmo em casos de “silêncio do arguido”, como sucede no presente, o tribunal não fica desobrigado de explicar a credibilidade que o depoimento de vítima tenha merecido, explicação necessariamente acrescida na medida em que, à semelhança do que pode suceder com o arguido, também a vítima tem um interesse particular no desfecho do processo.

Mas essa explicação acrescida encontra-se na sentença, e a mera afirmação do recorrente de que “a prova produzida, e em especial por ter sido apenas a prova resultante das declarações da assistente e do seu marido, não consente a conclusão de que o arguido praticou os factos de que vem acusado” não põe em causa a decisão da matéria de facto na sentença.

Por tudo, não é visível que a sentença enferme de um erro de facto.

(b) Do erro de subsunção

O recorrente defende que as expressões “és uma bruxa” e “uma gorda popota” não integram o tipo de crime da condenação - crime de injúria do art. 181º, nº1 do CP.

São estas as expressões proferidas pelo arguido, dirigidas à pessoa da assistente, a que foi atribuída relevância penal na sentença.

Assim resulta da integração jurídica dos factos a que se procedeu, que foi a seguinte:

“A. O enquadramento jurídico-penal dos factos:

Para que o agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo. O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos de um tipo legal de crime.

O arguido vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de injúria. Comete tal crime, em conformidade com o preceituado no art." 181.0 do Código Penal, todo aquele que:

i) imputar a outra pessoa factos, ainda que sob a forma de suspeita, ou lhe dirigir palavras;
ii) ofensivos da sua honra ou consideração.

É entendimento pacífico que a honra se reporta, essencialmente, ao sentimento de auto-estima, de dignidade subjectiva ou, por outras palavras, à imagem que o indivíduo tem de si mesmo; enquanto que a consideração designa a reputação, a boa fama e a estima de que o indivíduo é merecedor por parte da comunidade na qual se insere (Nelson Hungria citado in Código Penal Anotado, Simas Santos e Leal-Henriques, Volume II, 1996, Lisboa, Rei dos Livros, página 317, em anotação ao artigo 180.°, mas aplicável mutatis mutantis ao crime de injúria).

A verificação dos elementos do crime em causa basta-se com o carácter objectivamente injurioso dos factos imputados ou das expressões proferidas pelo agente. Ou seja, é suficiente, para que o crime se tenha por verificado, que os factos imputados ou as expressões proferidas revistam carácter injurioso, nos termos acima delineados, atentas as regras de experiência comum e de normalidade social.

Da análise hermenêutica do tipo legal previsto pelo art. 181º do Código Penal, resulta encontrarem-se compreendidas duas realidades objectivas distinta, muito embora equiparadas quanto à punição que a lei lhes reserva. Assim e por um lado, temos a imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, e, por outro lado, a expressão de palavras, exigindo-se e pressupondo-se, para uma e outra situação, o carácter ofensivo inerente à correspondente actuação. A distinção quanto às situações compreendidas numa ou noutra realidade, assume particular revelo pelas incidências que produz quanto às qualificativas agravantes previstas pelo art.° 183.º do Código Penal.

Nalguns casos, a definição da fronteira entre aquilo que representa a imputação de factos, mesmo que sob a forma de suspeita, e a prolação de palavras ofensivas não oferece grandes dúvidas. Noutros casos, porém, essa distinção não se afigura tão simples. Assim ocorre quando as palavras proferidas comportem ou possam comportar a atribuição de comportamentos desonrosos ou ofensivos. A qualificação, contudo, do comportamento, como pertinente à imputação de factos a prolação de palavras ofensivas, Vai depender do contexto factual concretamente apurado.

Do ponto de vista subjectivo, o crime de injúria surge configurado como um crime doloso, não se exigindo, todavia, uma especial intenção de injuriar mas apenas a consciência, por parte do agente, de que os factos imputados ou as expressões proferidas são ofensivos da honra e consideração da pessoa visada ou objectivamente idóneos a produzir esse resultado (cfr art.°s 181.° e 14.° do Código Penal).

No caso dos autos resultou provado ter o arguido proferido o palavras "bruxa" e "gorda popota" dirigidas à assistente. Tais expressões, referindo-se a que a assistente será, por um lado, uma mulher que faz bruxarias, malefícios, maquinações, é feia ou antipática (vide definição do vocábulo "bruxa" in www.• briberam .• bt) e, por outro lado, que o seu corpo seria gordo como o da boneca "Popota", conhecida figura publicitária de uma cadeia de hipermercados que e a personificação de um hipopótamo, animal reconhecidamente corpulento, são indiscutivelmente susceptíveis de causar ofensa e tristeza a quem são dirigidos.

Não obstante a frequência com que expressões como estas ou semelhantes estão a ser usadas no quotidiano na vida social portuguesa, constituem, efectivamente, injúria causadora de vexame e vergonha a quem é dirigida.

O arguido bem sabia que ao proferir tais expressões ofendia a dignidade da assistente e, mesmo assim, quis fazê-lo, o que determina que se considere estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de lícito criminal em causa, impondo-se a sua condenação.”

Reconhece-se que a expressão em apreciação, grosseira e indelicada, é certo, pode não assumir relevância penal se vista isoladamente e fora do contexto. No entanto, adianta-se também, não é de considerar incorrecta a integração jurídica dos factos a que se procedeu na sentença.

O tipo legal em apreciação assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº1 da CRP), conceitos muito debatidos na doutrina e na jurisprudência.

Recorde-se apenas que a “honra” é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, rectidão, carácter. A “consideração” é o valor atribuído por alguém ao juízo do público, isto é, do apreço ou, pelo menos, da não desconsideração que os outros tenham por ele (Beleza dos Santos, RLJ 3152-142). E que o Código Penal adopta uma concepção dual de honra (concepção normativa-pessoal de honra) segundo a qual esta é vista como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

De referir também que o direito penal reveste natureza fragmentária, “de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revele digna de pena” (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43). Tutela os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade, imanentes ao Estado de Direito.

Assim, e no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural.

Na lição antiga, mas actual, de Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).

Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).

A contextualização das expressões proferidas é indispensável ao juízo sobre a tipicidade.

Impõe-se, assim, olhar a expressão em apreciação, não isoladamente, mas no contexto e circunstâncias em que foi proferida, e apreciar se, nesse contexto, atingiu a visada num quadro merecedor de tutela penal. Pois à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente com o tipo em presença, utilizando agora palavras de Cavaleiro de Ferreira, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade”.

Na avaliação sobre a tipicidade não pode deixar de relevar, pois, o contexto em que a expressão desagradável foi proferida, o que, no presente caso, integra ofensa ao bom nome e consideração da visada.

Na verdade, a expressão já considerada típica na sentença insere-se numa conversação telefónica, na sequência de chamada do arguido para a assistente, e é proferida no seguimento de uma outra expressão dita pelo arguido, também esta de sentido bastante grosseiro e até passível de agredir o mesmo bem jurídico.

Relativamente ao teor da conversa está provado que “no telefonema referido em 1 - o arguido disse à assistente que "se esta precisava de dinheiro que fosse ter com ele ao monte". No decurso da referida conversação telefónica o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões ''És uma bruxa, uma gorda popota".

A explicação do sentido ou o significado da expressão "se precisava de dinheiro que fosse ter com ele ao monte" descobre-se depois no exame crítico da prova. Ali se refere, em justificação da credibilidade que as declarações da assistente mereceram: “com louvável isenção, apesar de constar da acusação que o arguido lhe havia dirigido a palavra «puta», referiu que o arguido apenas lhe disse, na sequência de se mostrar zangado com um desentendimento ocorrido entre a assistente e a mulher daquele, que a mesma devia ir buscar dinheiro ao monte onde o arguido vive”.

A assistente terá referido em julgamento que o arguido “não lhe chamou puta”, tendo-lhe antes dito (apenas) que “se precisava de dinheiro que fosse ter com ele ao monte", expressão esta dada depois como provada. No entanto, no contexto em que foi proferida, não vemos que outro sentido ou significado possa ter tido, diferente daquele.

Estranhamente, a expressão não foi objecto de ponderação na sentença, e não se ajuizou da sua relevância típica. Não se deverá agora fazê-lo, apreciando-a qua tale (ou seja, como expressão já de si típica), atento o sentido do recurso.

Mas essa circunstância não invalida a possibilidade duma apreciação enquanto parte do contexto em que os termos considerados já como injurioso (na sentença) foram proferidos. Trata-se de matéria de facto toda ela provada, e a subsunção jurídica exige aqui a valoração das expressões injuriosas no quadro global de circunstâncias em que são proferidas.

Concretamente, as expressões “és uma bruxa, uma gorda popota” mostram-se proferidas na sequência da afirmação anterior “se precisas de dinheiro vem ter comigo ao monte”, e inserem-se numa toada ofensiva que visa atingir, e atinge realmente, a honra e a consideração da visada.

Em suma, mostram-se empregues em condições de atingir o bem jurídico-penalmente protegido.

Chamar “bruxa e gorda popota” - sendo aqui popota, um hipopótamo - a alguém que sofrerá até de alguma obesidade, é proferir expressão ofensiva e cruel que, nas circunstâncias de modo apuradas, reveste dignidade penal.

Que a assistente padecerá de alguma obesidade é um dado a retirar do recurso interposto, pois o próprio arguido refere-a, ao invocar, a seu favor mas a despropósito, a al. b) do nº 2 do art. 180º do CP. Esta alínea preceitua que a conduta não é punível quando o agente provar a verdade da imputação, sendo que se tratava aqui, não da modalidade típica “imputação de um facto”, mas da “formulação de um juízo”, e daí o despropositado desta alegação.

(c) Da pena e da indemnização
Embora a impugnação da pena seja matéria ausente das conclusões do recurso e também não se indique, nem nas conclusões nem na motivação, qual a norma jurídica que terá sido violada, não deixa de se avaliar a sentença nesta parte e de se consignar o acerto do processo de determinação da pena.

Na verdade, refere o recorrente que a conduta não tem “a gravidade suficiente para a aplicação de uma pena de multa que se aproxima de metade da pena máxima”, mas não se vislumbra na sentença o cometimento de qualquer incorrecção.

O crime de injúria é punido com prisão de 1 até 3 meses ou multa de 10 a 120 dias.

A determinação concreta da pena, como uma actividade judicialmente vinculada, exige que se percorram os passos os seguintes: 1º escolha da pena principal; 2º determinação da medida concreta da pena principal; 3º ponderação da aplicação de pena de substituição, sua escolha e determinação concreta (quando for caso disso).

Perante pena abstracta compósita alternativa – prisão ou multa – o tribunal afastou, justificadamente, a pena de prisão (art. 70º do CP). Atendeu depois, no processo de concretização da multa, aos critérios gerais de determinação concreta da pena (art. 47º, nº1 do CP).

Fixou-a em dois momentos, sendo no primeiro acto de fixação dos dias (de multa) que se atendeu à culpa e às exigências de prevenção (arts 71º, nºs 1 e 2 do CP).

Na aferição das exigências de prevenção, bem como do grau de culpa do arguido, atendeu-se adequadamente ao grau da ilicitude dos factos, ao modo de execução, às consequências deste na pessoa da assistente, tudo a pedir expressão na graduação da pena, tendo sobretudo em conta que essa pena é já a de multa (“já”, no sentido de se ter procedido previamente ao afastamento da pena de prisão e das circunstâncias de pendor atenuante terem sido também avaliadas no juízo desse afastamento).

Valoraram-se os factos pessoais, relevando favoravelmente a ausência de antecedentes criminais do arguido e a inserção social. Não se mostra desrespeitado o limite da culpa.

Atendeu-se, pois, adequadamente a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depunham a favor e contra o arguido, mostrando-se sopesadas as exigências de prevenção geral e especial. Pelo que se considera que os dias de multa se encontram bem determinados.

Também o quantitativo diário obedeceu à correcta ponderação da situação económico-financeira do condenado e aos seus encargos pessoais (art. 47º, nº2 do CP), já que, numa moldura legal tão ampla (de 5€ a 500€), a taxa se mostra fixada quase sobre o mínimo.

Recorde-se o ensinamento de Figueiredo Dias, de que “a pena de multa não pode representar uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que se não tem a coragem de proferir”, antes devendo representar “uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 119).

Em conclusão, não se detecta desconformidade legal no iter aplicativo da pena e o recorrente não adita razão susceptível de evidenciar um erro de direito na determinação dos dias de multa ou do seu quantitativo diário, sendo certo que, ao ter optado pela multa em detrimento da prisão, o tribunal não poderia deixar de acautelar, na fixação dos dias de multa, as exigências de prevenção, mormente a geral.

Por último, relativamente à indemnização, limita-se o recorrente a dizer, na motivação do recurso, que “a indemnização em que foi condenado se mostra excessiva”.

Sucede que o valor do pedido deduzido era de € 1.000,00 e o art. 400º, nº 2 do CPP preceitua que “o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada”.

Assim, o recurso da parte da sentença relativa à matéria civil é, no presente caso, inadmissível, já que não se verifica nenhum dos dois requisitos que a lei exige (cumulativamente) para a recorribilidade. O pedido formulado situa-se logo aquém do valor da alçada do tribunal recorrido, não sendo o recurso nesta parte admissível, pelo que não se conhece da questão suscitada em último lugar (arts. 420º nº 1 e 414º nº 2 do CPP).

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 10.05.2016

Ana Barata Brito

Leonor Vasconcelos Esteves


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[1] - Sumário elaborado pela relatora.