Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
614/12.6TBPSR-A.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: CONVERSÃO DA EXECUÇÃO
NORMA EXCEPCIONAL
Data do Acordão: 03/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A conversão da execução, consagrada no artigo 867º, n.º 1, do Código de Processo Civil é uma norma excecional; como tal, não admite aplicação analógica, nomeadamente, aos caos em que a coisa objeto da “execução especifica” tenha sido apreendida e entregue ao exequente, ainda que “vandalizada, inutilizada e desvalorizada”.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Relatório
Nos presentes autos de execução para entrega de coisa certa - veículo automóvel de matrícula ...-...-IL, “no estado em que o mesmo se encontra”-, fundados em sentença, em que são exequentes A... e B... e executado C..., indeferiu o Tribunal recorrido, liminarmente, a sua conversão para pagamento de quantia certa, nos termos do artigo 867º., nº 1 do Código de Processo Civil, a pretexto de não se encontrarem reunidos os pressupostos de aplicação deste normativo, uma vez que o veículo objeto da execução foi “penhorado e entregue aos exequentes”.

Inconformados com o decidido, recorreram os mencionados exequentes, com as seguintes conclusões[1]:

-encontrando-se o veículo “vandalizado, inutilizado e desvalorizado”, dúvidas não podem existir que a coisa não foi encontrada, nem lhes foi entregue;

-ainda que assim não se entendesse, sempre se aplicaria, por analogia, o artigo 867º., nº 1 do Código de Processo Civil;

-impunha-se a conversão da presente execução para execução de quantia certa;

-decidindo-se, como se decidiu, violou o Tribunal recorrido o disposto no citado normativo.


Contra-alegou o dito executado/recorrido, votando pela manutenção do decidido.

Face às mencionadas conclusões, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação da questão de saber se ocorrem ou não os pressupostos da pretendida conversão da execução.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentação

A - Despacho recorrido

“Vieram os Exequentes requerer a conversão da presente execução para entrega de coisa certa, para entrega de quantia certa, com a liquidação do respetivo valor do veículo automóvel Jeep Opel Frontera.

Para o efeito, alegam que o veículo Jeep Opel Frontera, que foi penhorado e apreendido nos presentes autos, se encontra totalmente vandalizado, inutilizado e desvalorizado, pelo que entendem que a “coisa” que lhe deveria ter sido entregue, não foi encontrada.

O executado veio opor-se ao incidente alegando a sua falta de fundamento legal (…).

(…)

De facto, compulsados os autos declarativos, constata-se que a sentença aí proferida, que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora (e, assim, transitou em julgado) condenou o aqui executado “a restituir o Jipe no estado em que o mesmo se encontra, conjuntamente com a declaração de venda apta a transferir a sua propriedade”, absolvendo-o de tudo o mais que foi pedido pelos exequentes, sendo que estes tinham pedido a restituição do automóvel no estado em que se encontrava à data do negócio e, subsidiariamente, em perfeito estado de funcionamento e completamente reparado.

Dos autos consta ainda que, realizado o registo de penhora do automóvel (fls. 12-13), foi o mesmo aprendido pela GNR em 9.6.2015 e procedeu-se à sua entrega ao exequente (auto de apreensão de fls. 18), sendo que, citado que foi o executado após a realização da penhora e remoção, não foi apresentada qualquer oposição à execução.

Deste modo, não só não resulta dos autos que a coisa não foi encontrada (pelo contrário, o veículo automóvel encontra-se já na posse dos exequentes), como atento o título executivo de que dispõem (sentença que ordena a entrega do automóvel no estado em que se encontra), os exequentes não podem pretender conseguir, através da execução, o que não lograram alcançar com a ação declarativa, ou seja receber o valor da coisa à data do negócio.

Daí que, sem necessidade de mais, e porque, tendo o automóvel objeto da execução sido penhorado e entregue aos exequentes, não estão reunidos os pressupostos de aplicação do disposto, no artigo 867ºº., nº 1 do CPC, indefere-se liminarmente o requerido incidente de conversão da execução.

(…)”.

B - O direito/doutrina

-“Diversamente da ação executiva para pagamento de quantia certa, a ação executiva para entrega de coisa certa não se traduz na efetivação de direitos sobre o património do devedor. Por ela, o credor faz valer, não a garantia patrimonial do seu crédito, mas sim a faculdade de execução específica, mediante a apreensão da coisa que o devedor está obrigado a prestar-lhe” [2];

-“Para realizar o direito exequendo, o tribunal procede à apreensão da coisa e à sua imediata entrega ao exequente, após efetivação das buscas e outras diligências que forem necessárias” [3];

-“Só se a coisa não puder ser entregue, se procederá à execução por equivalente, transformando-se a execução para entrega de coisa certa em execução para pagamento de uma indemnização pecuniária” [4];

- “Quer dizer, diante da impossibilidade de encontrar a coisa devida o órgão executivo não desarma, não capitula; desiste de conseguir para o exequente precisamente a prestação a que ele tinha direito, mas trata de lhe obter uma outra prestação, senão equivalente no aspeto económico, ao menos equivalente no aspeto jurídico. O exequente não recebe a coisa que lhe era devida, mas recebe a indemnização de perdas e danos pela falta de entrega da coisa, Frustrou-se o fim específico da ação executiva; inicia-se nova execução com outro fim: o de indemnizar o credor do prejuízo que sofreu” [5];

- A impossibilidade de “execução específica” pode verificar-se, “por algum dos seguintes motivos: a) a coisa ter deixado de existir, b) a coisa não ser encontrada, apesar de continuar a existir; c) sobre a coisa incidir direito de terceiro que, por oponível ao exequente, obsta ao investimento material ou jurídico na posse” [6];

- O campo de aplicação do artigo 10º. do Código Civil estende-se “a todos os ramos do direito. Se o caso for omisso, haverá que recorrer, em primeiro lugar, à norma reguladora dos casos análogos, sendo a analogia determinada, não pela simetria formal das situações, mas pela identidade substancial dos fundamentos da estatuição” [7];

- As normas excecionais não comportam aplicação analógica[8];

- “Uma norma diz-se excecional em relação a outra, quando o seu regime é, sob os mesmos pressupostos, distinto ou oposto ao que esta última estabelece”; “as normas em causa - a geral e a excecional - estabelecem regimes distintos, de tal modo que o regime da hipótese excecional se resolve na aplicação da norma excecional, com exclusão do regime fixado para as demais hipóteses do mesmo género pela norma geral” [9].

C - Aplicação do direito aos factos

A coisa - veículo automóvel Jeep Opel Frontera - objeto de “execução específica” foi encontrada e entregue aos recorrentes/exequentes A... e B….

Como tal, não se frustrando o fim da presente ação executiva para entrega de coisa certa, vedado está aos referenciados receber uma “indemnização de perdas e danos pela falta de entrega da coisa”.

Por outro lado, mesmo admitindo que o veículo automóvel a entregar foi “vandalizado, inutilizado e desvalorizado”, após o trânsito em julgado da sentença condenatória - título executivo -, esta circunstância não permite aos ditos recorrentes/exequentes iniciar uma nova execução, com o fim de os indemnizar pelos prejuízos sofridos, decorrentes, não já da falta de entrega, mas, sim, resultantes de danos causados, entretanto, na coisa a entregar.

Na verdade, a conversão da execução, consagrada no artigo 867º., nº 1 do Código de Processo Civil - desistir “de conseguir para o exequente precisamente a prestação a que ele tinha direito”, para “obter uma outra prestação, senão equivalente no aspeto económico, ao menos equivalente no aspeto jurídico” - contraria a regra geral de que não há execução sem prévio título, uma vez que é este que determina, nomeadamente, o seu fim.

Equivale isto a dizer, que o referido normativo é uma norma excecional, que, por isso, não comporta uma aplicação analógica.

Em síntese[10]: a conversão da execução, consagrada no artigo 867º, nº 1 do Código de Processo Civil é uma norma excecional; como tal, não admite aplicação analógica, nomeadamente, aos caos em que a coisa objeto da “execução especifica” tenha sido apreendida e entregue ao exequente, ainda que “vandalizada, inutilizada e desvalorizada”.

Decisão

Pelo exposto, decidem os Juízes desta Relação, julgando o recurso improcedente, manter o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes.

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Évora, 23 de Março de 2017
Sílvio José Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo
Manuel António do Carmo Bargado

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[1] Conclusões elaboradas por esta Relação, a partir das “conclusões” dos recorrentes.
[2] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva, 5ª edição, pág. 368 (cfr., ainda, Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, pág. 422)
[3] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva, 5ª edição, pág. 368, e artigo 861º., nº 1 do Código de Processo Civil.
[4] Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, pág. 422, e artigo 687º., nº 1 do Código de Processo Civil)
[5] Prof. Alberto dos Reis, in Processo de Execução, vol. II, 1985, pág. 546.
[6] Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, pág. 434 (cfr.,ainda, José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva, 5ª edição, págs. 379 e 380).
[7] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, págs. 44 e 45.
[8] Artigo 11º. do Código Civil.
[9] José Dias Marques, in Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1972, pág. 182.
[10] Artigo 663º., nº 7 do Código de Processo Civil