Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1706/05.3TBLLE.E1
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
DEVERES DOS ADMINISTRADORES
RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E GERENTES
Data do Acordão: 03/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I - O dever do administrador de cumprir todas as obrigações da sociedade para com terceiros, contraídas por quaisquer fontes admissíveis, não é uma obrigação pessoal mas um dever funcional.
II - Em regra não será o gerente ou administrador duma sociedade pessoalmente responsável para com os terceiros credores sociais.
III - Com uma excepção: a de ter havido da sua parte inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção dos credores e o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
IV - Esta responsabilidade é de natureza delitual ou extracontratual.
Decisão Texto Integral:






Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc.º N.º 1706/05.3TBLLE.E1
Apelação

Recorrentes:
Fernando ........................ e Maria Madalena ........................ .........................
Recorridos:
Avi....................... – Indústria e Comércio de Produtos Alimentares, S.A.


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"Avi....................... - Indústria e Comércio de Produtos Alimentares, S.A." veio intentar a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra Fernando Simôes Hipólito e mulher Maria Madalena Gago ........................ Simôes Hipólito, pedindo que, pela procedência da acção, sejam os réus condenados solidariamente a pagar-lhe "a quantia principal de €78.061,86, acrescida dos juros vencidos na data de hoje e que totalizam €29.384,82 e ainda dos juros vincendos até integral pagamento".
Para tal alegou, em suma, que os réus foram os sócios fundadores e os únicos gerentes da "Centeanes - Empreendimentos Turísticos, Lda." até Janeiro de 2003. No exercício do seu comércio, a autora vendeu, nos anos de 2000 e 2001 diversa quantidade de produtos alimentares, mas a "Centeanes" não pagou as facturas emitidas pela autora. Para pagamento dessas facturas e depois de negociação entre as partes, a Centeanes" aceitou letras de câmbio, sacadas pela autora. O réu Fernando actuou pessoalmente em representação da "Centeanes" na aceitação das letras. Mas a "Centeanes" não pagou as letras no seu vencimento. A autora não logrou obter pagamento em acção de execução ordinária (que correu termos no Tribunal da Comarca de Loulé) por não terem sido encontrados quaisquer bens da devedora e, por isso, a autora requereu a falência da "Centeanes" e esta foi declarada falida por decisão transitada proferida em 14/01/2005. Mas já em 2000/2001 a "Centeanes" tinha deixado de cumprir as suas obrigações e o seu activo era inferior ao passivo, mas os réus conhecedores dessa situação, nunca diligenciaram pela sua apresentação à falência. Também os réus não cumpriram o seu dever de prestar contas anuais. Os réus, enquanto gerentes, levaram a "Centeanes" a vender o hotel e deixar a sua exploração, ficando a empresa desprovida de meios para prosseguir a actividade que constituía o seu objecto social; em 1997 os réus levaram a "Centeanes" a assumir a exploração de um restaurante, actividade que está fora do objecto social da empresa e foi no exercício dessa actividade que a "Centeanes" comprou mercadorias à Autora e aceitou as letras. Depois os réus levaram a "Centeanes" a encerrar o restaurante, que era o único estabelecimento que a sociedade possuía, deixando a empresa totalmente inactiva até hoje. Por força dos actos praticados pelos réus, a sociedade ficou desprovida de património para satisfazer os seus credores, incluindo a autora. Apesar disso, no dia 13/0 I /2003, os réus cederam as suas quotas e renunciaram à gerência, mas não receberam qualquer valor pelas suas quotas e os pretensos adquirentes nada pagaram pelas mesmas. Por não ter bens ou actividade, no processo de execução a autora não logrou obter pagamento e no processo de falência igualmente não foram feitos quaisquer pagamentos aos credores, por inexistência de bens susceptíveis de apreensão no património da falida. O resultado, para a autora, dos actos dos réus foi o de não ter recebido o seu crédito sobre a "Centeanes".
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Os Réus vieram contestar (fls. 74 e ss.) dizendo, em suma, que a ré Maria Madalena não exerceu, na prática, quaisquer funções de gerente e, por outro lado, não existe qualquer elemento que possa suportar um juízo de culpa do gerente. Não estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil. Pugnam, assim, pela improcedência da acção.
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Saneado o processo, foram seleccionaram-se os factos provados e a provar.
Não foi apresentada reclamação.
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Realizada a audiência de Julgamento e produzidas as provas foi respondida à base instrutória, sem reclamações e por fim foi proferida sentença julgando a acção procedente por provada e condenando os réus a pagar à autora a quantia de €78.061,86 (setenta e oito mil. sessenta e um euros e oitenta e seis cêntimos) acrescida de juros de mora, contados à taxa supletiva legal (para obrigações civis), desde 1/01/2001 até efectivo e integral pagamento.
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Inconformados, vieram os RR. interpor recurso de apelação tendo rematado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:
« I
Os fundamentos da sentença proferida e sob recurso, merecem discordância dos Apelantes, na medida em que a prova (não) produzida, não permite suportar a decisão. Por outro lado, incorre em errada qualificação de actos como ilícitos e atribui-lhes consequências que os mesmos não podem merecer. Dai a discordância com o conteúdo da decisão.
II
Sustentar que a sociedade exercia actividade diversa do objecto, por explorar um restaurante (o que se encontra plenamente justificado conforme resposta ao quesito 16 e ponto 38 dos Factos Assentes, por forma a manter a empresa em funcionamento), quando a actividade é a exploração de empreendimentos turísticos, em violação de lei, é inaceitável por irrazoável. A exploração de um restaurante constitui actividade estruturalmente conexa ou afim da exploração de um empreendimento turístico, além de se poder integrar nesta, como seu aspecto complementar, na medida em que, a Hotelaria, sector de actividade económica onde a actividade da empresa gerida pelos Apelantes se insere, é largamente tributária da exploração de empreendimentos turísticos. A actividade de exploração de um restaurante, não é de modo algum estranha ao turismo e à exploração turística, inserindo-se estruturalmente na Hotelaria e no Turismo, actividades desenvolvidas pelos empreendimentos turísticos.
III
Não pode ter aplicação ao caso vertente, a disciplina do DL 167/94 de 4 de Julho, nem o mais recente DL 39/2008 de 7 de Março, pois que tais diplomas disciplinam apenas o regime jurídico da actividade de exploração de empreendimentos turísticos. É pretender ser "mais papista que o Papa", porquanto a actividade de exploração de um restaurante pode integrar-se na exploração de empreendimentos turísticos, sendo aliás de salientar que a exploração do restaurante teve por móbil a manutenção da empresa em funcionamento - ponto 38 da Fundamentação de Facto.
IV.
Aliás, se tal actividade em violação de lei tivesse acontecido, não poderá deixar de se dizer que nesse caso, teria acontecido com a total conivência da Autora aqui Apelada e com a sua estreita colaboração e no interesse dela, pelo que a Apelada ao invocar tal matéria, incorre em abuso de direito - art. 334 C. Civil.
V.
A maioria dos factos em que a Apelada alicerça a sua pretensão, releva de gestão de mérito; é assim quanto à venda do Hotel Cristal em 1991, quanto à exploração do mesmo estabelecimento, desenvolvida até Dezembro de 1996, quanto à decisão de explorar o Restaurante Farol desde ... até finais de 2000/inícios de 2001. E assim é também, a própria decisão de suspender a actividade ou de a cessar, em face das circunstâncias concretas e adversas em que a actividade vinha sendo exercida.
VI.
Os critérios adoptados pela gerência ou administração, não são em si mesmo, objecto de valoração ético jurídica, em termos de imputação de juízos de culpa, pois que o controlo jurídico a que se procede, é apenas e tão somente um controlo de legalidade e só nesses termos a gestão é relevante;
VII.
Mesmo que fosse possível tal controlo ou tal sindicância, em termos jurídicos, mesmo assim, tais actos não são ilícitos, nem se inserem numa estratégia "perversa" ou dolosa que os Apelantes devessem alegadamente adoptar em ordem à provocação de prejuízos à A.
VIII.
Os actos de gestão em análise, norteados por critérios de oportunidade e de mérito, não podem configurar a prática de actos ilícitos, nem se pode sustentar que em qualquer momento violaram a Lei ou os Estatutos societários, pelo que inverificado está o elemento "ilicitude" do acto, base de toda a responsabilidade civil.
IX.
Com todo o devido respeito, os quesitos 4º, 5º e 6º deveriam ter sido respondidos, "não provado", sendo que, a forma corno foram redigidos tais quesitos, eivada de censura ético jurídica, inculca a ideia desde logo, de urna actuação dirigida à provocação de prejuízos patrimoniais e com essa intenção, dolosa e culposa da parte dos Apelantes enquanto gerentes, viciadora da decisão, sobre que não foi produzida qualquer prova;
X
Os Apelantes consideram assim que este concreto ponto da matéria de facto se encontra incorrectamente julgado, o que alegam para os efeitos do disposto no art.º 685-B nº 1 al. a) do CPC, por de facto, não haver sido produzida qualquer prova sobre essa matéria e por isso a sentença padecer igualmente de erro na apreciação das provas.
XI.
A resposta sobre tal pretensa actuação dos Apelantes, não pode legitimamente ser presumido pelo julgador a quo, nem no uso da figura da presunção judicial, por ausência dos respectivos pressupostos. Consequentemente, não poderá ser proferida decisão, cujos pressupostos de facto são inexistentes.
XII.
O fundamento da Apelada de que a falta de apresentação de contas ou a não apresentação da empresa devedora à falência, como estando na origem dos fornecimentos efectuados, não colhe, pois que nunca tais requisitos foram condição de fornecimento, pois nunca nenhum seu representante ou gerente foi previamente à
Conservatória indagar sobre apresentação de contas ou à falência, antes de realizar qualquer fornecimento.
XIII.
Não merece qualquer controvérsia o facto de o art. 78º do C. S. C. consagrar uma forma de responsabilidade civil por factos ilícitos, ou responsabilidade aquilina, que tem a sua sede legal nos arts 483º e seguintes do Código Civil, que aponta para a necessidade de verificação cumulativa e prova de todos os elementos constitutivos da obrigação de indemnizar;
XIV.
Tal como não merece qualquer controvérsia, o facto de o prejuízo provocado pela gestão (causa da insuficiência patrimonial), se dever tratar de um prejuízo directamente provocado à sociedade, e só indirectamente aos credores. Os credores sofrem o prejuízo decorrente do facto de a própria sociedade haver sofrido ela própria prejuízo, que torna o seu património insuficiente; ora estes elementos, absolutamente essenciais, não resultam provados. A falta de prova, não suporta a decisão proferida.
XV
Recaía sobra a Apelada, o ónus da prova da culpa (consciência da ilicitude e possibilidade de agir de outro modo) dos ditos gerentes aqui Apelantes. Prova essa que não foi feita, em nosso modesto entender, pois que o que resulta dos factos provados, não permite suportar a decisão, antes apontando para comportamentos e atitudes que seriam tomados e assumidas por qualquer pessoa que exercesse as funções de gerente, naquelas concretas circunstâncias.
XVI.
Não há nexo de causalidade e muito menos, prova do nexo de causalidade entre o acto (não apresentação da sociedade à falência e a não publicação de contas) e o dano, ou entre a omissão e o dano (dano é o não pagamento em consequência da insuficiência patrimonial), como é o alegado caso dos presentes autos. Não se alega nem se prova que, a não apresentação à falência gerou prejuízo à sociedade e que por esse prejuízo assim gerado, foi gerada uma insuficiência patrimonial para pagar à Apelada.
XVII.
Ao assim não decidir, foram violadas pelo Mmo Juiz a quo as disposições contidas nos artigos 789 do c.s.c. e art. 4839 do C. Civil
XVIII.
Com o devido respeito, nenhuma das decisões da gerência, causadora da alegada insuficiência patrimonial, apontadas pelo Mmo Juiz a quo, na pág. 16 da sentença, constitui um acto ilícito - quer a inactividade da sociedade, quer o abandono da exploração do restaurante, não são violadores de normas legais ou estatutárias, tendo tais actos sido justificados em face das circunstâncias concretas da empresa;
XIX
Por isso, não poderão esses actos, ainda que geradores de insuficiência patrimonial, pelo menos teoricamente, porque não ilícitos e não culposos - era o desenvolvimento da própria actividade que não gerava património, nomeadamente não sendo rentável, que era gerador de insuficiência patrimonial, era ruinoso - fundamentar a responsabilidade civil dos RR.»
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Contra-alegou a recorrida, sustentando não dever conhecer-se do recurso na parte relativa à impugnação de facto, por falta de cumprimento do disposto no art.º 685-B do CPC e pugnando pela improcedência da apelação.
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A A. havia interposto recurso de agravo, admitido a fls. 238, com subida diferida. Notificada para dizer se mantinha interesse na apreciação do agravo, veio dizer que já não tinha interesse na sua apreciação, razão porque não será apreciado.
Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[1], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil)[2], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Das conclusões do recurso resulta que a única questão suscitada e que constitui o objecto do recurso é a imputação de erro na apreciação e valoração da prova designadamente no que respeita às respostas dadas aos quesitos 2º ( nas conclusões indica-se o 4º, mas é notório que se trata de lapso, pois o 4º foi considerado prejudicado e no corpo das alegações fala-se no quesito 2º) , 5º e 6º.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Dos factos

A alteração pelo Tribunal da Relação, da matéria de facto fixada na 1ª instância é regida fundamentalmente pelo nº1 art.º712º do CPC, que dispõe o seguinte:

1 – A decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
A aplicação desta última alínea está liminarmente afastada dado que a Apelante não apresentou com a alegação de recurso documento novo superveniente.
No que concerne à alínea b), Alberto dos Reis, " C.P.C. Anotado", vol. VI, pág. 472, ao explicar o que nela se dispunha na redacção na altura vigente e que era praticamente idêntica à actual, apenas se refere à hipótese de estar junto aos autos documento que faça prova plena ou cabal de determinado facto e o juiz, na sentença, ter admitido facto oposto, com base na decisão do tribunal colectivo, caso em que incumbiria à Relação fazer prevalecer a força do documento. Manuel de Andrade, citado por Alberto dos Reis e pelo acórdão do S.T.J. de 12.3.81, B.M.J. n.º 305, pág. 276, também apenas se refere ao caso de o tribunal “a quo” ter desprezado a força probatória de documento não impugnado nos termos legais.
O Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o citado acórdão, adoptou uma posição menos rígida, admitindo a alteração das respostas do tribunal colectivo "quando haja no processo um qualquer meio de prova plena, que, por isso mesmo, não possa ser destruído por quaisquer outras provas. Nesta conformidade, a Relação pode alterar a resposta a um quesito com base quer em documento quer em confissão ou acordo de partes...”
No caso em apreço, a Apelante, na sua alegação, não invoca qualquer meio de prova com tais características.
Resta a possibilidade da reapreciação da prova testemunhal produzida na primeira instância. Ora quanto a esta, vistos os autos, verifica-se que houve produção de prova por testemunhas e que as respostas dadas à matéria de facto assentaram não apenas na prova documental mas fundamentalmente na prova testemunhal prestada em audiência (cfr. fundamentação da decisão de facto), Assim impunha-se ao recorrente que desse cumprimento ao disposto no art.º 690-A do CPC (e não no 685-B, como por lapso indicam recorrente e recorrido, porquanto a nova redacção constante deste preceito não é aplicável aos presentes autos...) indicando «quais os concretos pontos de facto que considera (va) mal julgados; quais os meios probatórios, constantes do processo ou do registo da prova que impunham decisão diversa da recorrida». Os recorrentes não indicam quais são esses meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa. E também nem sequer fazem referência, por reporte à acta, dos depoimentos que achavam mal valorados, pelo que poderia rejeitar-se o recurso nos termos do disposto no n.º 1 (proémio) do art.690-A do CPC. Porém, porque resulta claro das alegações que a matéria a impugnar serão as respostas dadas aos quesitos 2, 5º e 6º e considerando a complacência com que o STJ vem interpretando tal disposição legal entendemos dever apreciar a questão!
Como já se disse a decisão de facto baseou-se em grande parte na prova testemunhal produzida e quanto esta importa lembrar ao recorrente que, no julgamento da matéria de facto e na sequência dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração, o tribunal aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção, art.º 655º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil (princípio da livre apreciação da prova), ou seja, depois da prova produzida, o tribunal tira as suas conclusões, em conformidade com as suas impressões colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência[3], que forem aplicáveis[4], salvo previstos no n.º 2 do mesmo artigo.
E esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por factores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas quase sempre intangíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objectiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, tudo por forma a que, uma resposta dada a determinado quesito seja o reflexo e " o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade" (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 209).
Ora, deve aceitar-se que a convicção do julgador da 1ª instância resulta da experiência, prudência e saber daquele, sendo certo que é no contacto pessoal e directo com as provas, designadamente com a testemunhal, que aquelas qualidades de julgador mais são necessárias, pois é com base nelas que determinado depoimento pode ou não convencer quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recai, constituindo uma das manifestações dos princípios da oralidade e da imediação, por via das quais o julgador tem a oportunidade de se aperceber da frontalidade, tibieza, lucidez, rigor e firmeza com que os depoimentos são produzidos, mesmo do confronto imediato entre os vários depoimentos, do contraditório formado pelos intervenientes, advogados e juízes, do interrogatório do advogado que a apresenta, do contraditório do outro mandatário e das dúvidas do próprio tribunal, melhor ajuizando e aquilatando desta forma da sua validade.
O depoimento[5] oral da testemunha, considerado e formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, a forma como é feita a pergunta e surge a resposta, tudo contribui, com mais ou menos amplitude, para a formação da convicção do julgador.
Como também refere Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 257) "Existem aspectos comportamentais ou reacções[6] dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como, no primeiro, se formou a convicção do julgador" e, mais adiante, "a simples leitura de secas e inertes laudas de argumentação fáctica jamais se pode comparar à vivacidade proporcionada ao juiz da primeira instância, quando este, empenhado, como deve estar, no efectivo apuramento da verdade material, procura encontrar, na floresta integrada pelos diversos meios probatórios (firmes ou imprecisos, convincentes ou contraditórios, serenos ou interessados), a vereda que lhe permite ir de encontro à justa composição do litígio, arrimado nos instrumentos que lhe são proporcionados pelos princípio da imediação e oralidade".
A valoração de um depoimento pelo julgador tem sempre um certo conteúdo subjectivo.
É sempre uma tarefa difícil para o Tribunal superior perscrutar e sindicar esse processo de valoração, quando é certo que dispõe de menos elementos e meios menos “ricos” que aqueles de que dispôs o Tribunal “a quo”. Daí que deva haver alguma cautela e muito rigor na reapreciação da prova “oral” produzida na primeira instância.
Ouvida a gravação de toda a prova produzida e considerando a fundamentação das respostas dadas aos quesitos, entendemos que as respostas não merecem censura, que não existe erro notório na valoração dos depoimentos que imponha a alteração das respostas dadas aos quesitos em causa. Ao invés elas correspondem ao que resulta duma correcta e ponderada valoração da prova produzida e do que decorre das regras da experiência comum, mesmo, ou melhor, acima de tudo, no que respeita ao segmento mais contestado da resposta, qual seja o de que aqueles actos da Centeanes, correspondem à vontade dos RR., que eram quem, legal e estatutariamente, podia formar a vontade daquela. É isso que significa a expressão «levaram...» tão contestada pelos RR. Mas sem qualquer razão.
Assim mantém-se inalterada a factualidade constante da sentença e que é a seguinte:
«1. A sociedade "Centeanes - Empreendimentos Turísticos, Lda.", encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lagoa sob o n.o 00529/20 176, e tem por objecto a exploração de empreendimentos turísticos e a prestação de assistência a qualquer investimento turístico ou urbano (alínea A) dos factos assentes).
2. Naquela matrícula, como primeira inscrição, constam como sócios Fernando ........................, Maria Madalena Gago ........................ ........................ e "Topázio - Sociedade Imobiliária do Algarve, Lda.", com as quotas, respectivamente, de 50.000.000$00, 20.000.000$00 e 30.000.000$00, e como gerentes os referidos Fernando ........................ e Maria Madalena Gago ........................ ........................ (alínea B) dos factos assentes).
3. E pela ap. 12/150491 foi alterado o capital social, por forma que passaram a constar como sócios Fernando ........................, Maria Madalena Gago ........................ ........................ e "Topázio - Sociedade Imobiliária do Algarve, Lda.", com as quotas, respectivamente, de 65.000.000$00,26.000.000$00 e 39.000.000$00 (alínea C) dos factos assentes).
4. E pela ap. 08/301001, consta a inscrição da aquisição em comum e partes Iguais por Fernando ........................ e Maria Madalena Gago ........................ ........................ da quota de "Topázio - Sociedade Imobiliária do Algarve, Lda." (alínea D) dos factos assentes).
5. E pela ap. 05/2203 02, passou a constar como sócios Fernando ........................ e Maria Madalena Gago ........................ ........................, com as quotas, respectivamente, de 421.484,22 euros e 226.953,04 euros (alínea E) dos factos assentes).
6. Em 13 de Janeiro de 2003, no 6° Cartório Notarial de Lisboa, foi celebrada uma escritura pública denominada "cessão de quotas e alteração parcial do contrato", em que foram primeiros outorgantes Fernando ........................ e Maria Madalena Gago ........................ ........................, segundo outorgante António Nuno de Oliveira dos Reis e terceiro outorgante Daniel Vicente Moreira Rula (alínea F) dos factos assentes).
7. Nessa escritura consta que os primeiros outorgantes declararam ceder ao segundo outorgante a quota no valor de 421.484,22 euros e ao terceiro outorgante a quota no valor de 226.953,04 euros, por preço igual aos valores nominais, já recebidos, e que os segundo e terceiro outorgantes declararam aceitar a venda (alínea G) dos factos assentes).
8. Declararam ainda os primeiros outorgantes que em consequência das cessões declaram renunciar à gerência, e declararam os segundo e terceiro outorgantes que designam gerente o sócio António Nuno de Oliveira dos Reis (alínea H) dos factos assentes).
9. Os factos referidos nas ais. F) a H) foram inscritos no registo comercial pelas apresentações n.º 6 a 8 de 19 de Fevereiro de 2003 (alínea I) dos factos assentes).
10. A Autora é uma sociedade que se dedica à distribuição de produtos alimentares (alínea.1) dos factos assentes).
11. No exercício do seu comércio, no ano de 2000 e Janeiro e Fevereiro de 2001, a Autora forneceu à Centeanes diversas quantidades de produtos alimentares, com o valor total de 78.061,86 euros, obrigando-se esta a pagar o respectivo preço (alínea L) dos factos assentes).
12. A Centeanes não pagou à Autora o valor constante das facturas emitidas (alínea M) dos factos assentes) .
13. Então, após negociações, e para pagamento das referidas facturas, a Centeanes aceitou as seguintes letras de câmbio, sacadas pela Autora:
-letra de câmbio no valor de 2] .198,91 euros, emitida em 10 de Novembro de 2001, com vencimento em 15 àe Abril de 2002;
-letra de câmbio no valor de 13.7] 6,94 euros, emitida em ] 3 de Novembro de 2001, com vencimento em 15 de Abril de 2002;
-letra de câmbio no valor de 11.222,95 euros, emitida em 17 de Novembro de 2001, com vencimento em 15 de Abril de 2002;
-letra de câmbio no valor de 20.949,51 euros, emitida em 4 de Dezembro de 2001, com vencimento em 20 de Abril de 2002;
-letra de câmbio no valor de 3.990,38 euros, emitida em 1 de Abril de 2002, com vencimento em 30 de Junho de 2002;
-letra de câmbio no valor de 6.983,17 euros, emitida em 1 de Abril de 2002, com vencimento em 30 de Junho de 2002 (alínea N) dos factos assentes).
14. Foi O Réu Fernando ........................ que actuou pessoalmente em representação da Centeanes na aceitação das referidas letras, apondo a sua assinatura nessa qualidade (alínea O) dos factos assentes).
15. As letras referidas na aI. N) não foram pagas na data do seu vencimento, nem posteriormente (alínea P) dos factos assentes).
16. A ora autora intentou contra a Centeanes uma execução ordinária que correu termos no 2° Juízo Cível da Comarca de Loulé, sob o n.º 510103.8TBLLE, na qual não logrou obter pagamento nem efectuar penhora por não se terem encontrado quaisquer bens da devedora (artigo 12" da petição inicial e certidão de fis. 129 e ss.).
17. Nos anos de 2000 e 2001 a Centeanes deixou de pagar aos seus credores e deixou de pagar as seus impostos, e o valor do seu activo era inferior ao valor ào passivo (alínea Q) dos factos assentes ).
18. O Réu Fernando Hipólito tinha conhecimento do descrito em Q) (alínea R) dos factos assentes).
19. Os Réus nunca diligenciaram pela apresentação à falência da Centeanes (alínea S) dos factos assentes) .
20. A autora, com base no crédito referido, requereu a declaração de falência da Centeanes (artigo 13° da petição inicial e certidão de fls. 131 e ss.).
21. A Centeanes foi declarada falida, por decisão judicial datada de 14 de Janeiro de 2005 e transitada em 7 de Março de 2005, proferida no processo 518/04.6TBPTM do 3° Juízo Cível de Portimão (artigo 14° da petição inicial e certidão de fls. 131 e ss.).
22. A partir do ano de 2000 não foi efectuada a contabilidade e a prestação de contas anual da Centeanes (alínea T) dos factos assentes).
23. A partir de 1998 não foi efectuado o registo das contas da Centeanes (alínea U) dos factos assentes) .
24. O Hotel de Apartamentos Cristal constituía o único imóvel pertencente a Centeanes (alínea V) dos factos assentes).
15. Até 1996 O Hotel de Apartamentos Cristal constituía o único meio que a Centeanes dispunha para o prosseguimento do seu objecto social (alínea X) dos factos assentes).
26. Após cessar a exploração do Hotel de Apartamentos Cristal, em 1997, a Centeanes iniciou a exploração de um restaurante denominado o "O Farol", sito no Carvoeiro (alínea Z) dos factos assentes).
27. Foi durante a exploração desse restaurante que a Centeanes adquiriu à Autora os produtos referidos em L) (alínea Z1) dos factos assentes).
28. Enquanto explorou o restaurante referido em Z), esse era o único estabelecimento que a Centeanes dispunha (alínea Z2) dos factos assentes).
29. Após a cessação da exploração do restaurante e até ao presente, a Centeanes ficou inactiva (alínea Z3) dos factos assentes).
30. A Centeanes forneceu a terceiros os produtos referidos em L), recebendo o respectivo preço (alínea Z4) dos factos assentes).
31. A Ré Maria Madalena Hipólito tinha conhecimento do descrito em Q) (resposta ao artigo 1° da base instrutória).
32. Os Réus levaram a Centeanes a adquirir os produtos referidos em L), sabendo que aquela se encontrava nas circunstâncias descritas em Q) (resposta ao artigo 2" da base instrutória).
33. Em finais de 2000/início de 2001, os Réus decidiram que a Centeanes deixasse de explorar o restaurante referido em Z) (artigo 4° da base instrutória, dado com assente pelas partes - cf. fls. 372).
34. Os Réus levaram a Centeanes a não pagar à Autora os produtos referidos em L) (resposta ao artigo 5° da base instrutória).
35. Os Réus levaram a Centeanes a aceitar as letras referidas em N), sabendo que esta não tinha meios para as pagar (resposta ao artigo 6° da base instrutória).
36. A Autora fornecia produtos à Centeanes desde o início dos anos 90 (artigo 9° da base instrutória, dado com assente pelas partes - cf. Os. 374).
37. ,A. Centeanes acordou com á sociedade Aranas, S.A. ficar na exploração do Hotel Cristal (resposta ao artigo 13° da base instrutória).
38. A Centeanes iniciou a exploração do restaurante "O Farol" sito na Urbanização Rocha Brava, por forma a manter a empresa em funcionamento (resposta ao artigo 16° da base instrutória).
39. E manter os postos de trabalho (resposta ao artigo 17° da base instrutória).
40. A Centeanes não tinha acesso a crédito bancário (resposta ao artigo 21° da base instrutória)».

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Do Direito
Quanto à subsunção do direito aos factos e à consequente decisão jurídica, vale a pena transcrever, pelo sua suficiência e adequação os fundamentos da decisão ora impugnada e que não merece qualquer censura. Escreveu-se aí o seguinte:
«...Constituindo a sociedade comercial uma pessoa colectiva distinta das pessoas físicas que exprimem a sua vontade, será o património daquela a responder pelas suas dívidas e, no fundo, a assumir o risco do negócio, libertando o património pessoal dos sócios e administradores dessa função (ver, desde logo, o disposto no artigo 197°, n° 3, do Código das Sociedades Comerciais).
Como defendem Raul Ventura e Luís Brito Correia ("Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas", in BMJ n° 192 a 195, a pág. 109 e 55 do tomo 192) "O administrador tem, para com a sociedade, o dever de cumprir todas as obrigações da sociedade para com terceiros, contraídas por quaisquer das fontes admissíveis".
Mas, continuam os mestres, "o referido dever não é uma «obrigação pessoal», mas um «dever funcional» do administrador. O dever de cumprir uma dívida da sociedade não constitui um encargo para o património pessoal do administrador. O administrador tem, apesar disso, o dever de a cumprir - embora por conta, ou à custa, da sociedade". "Quer isto dizer que o administrador deve cumprir com os meios sociais de que dispuser, consoante a natureza da obrigação da sociedade (dinheiro, crédito, coisas, meios de acção ... ), e que tal dever cessa, caso a sociedade não dispunha de meios que possibilitem ao administrador tal cumprimento".
Assim, em regra, não será o gerente ou administrador de uma sociedade pessoalmente responsável para com os terceiros credores sociais (ver Raul Ventura e Luís Brito Correia op. cit, a pág. 48 a 55 do tomo 194 do BMJ).
Porém, a regra sofre um importante desvio.
Com efeito, dispõe o artigo 78°, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais que "Os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos" .
Trata-se da previsão de uma acção directa para o exercício de um direito próprio do credor, prevendo-se uma responsabilidade da gerência/administração independente da existente deste para com a sociedade.
É, assim, uma responsabilidade de natureza delitual ou extracontratual. Não será responsabilidade de natureza contratual por não existir, antes do acto ilícito, qualquer direito de crédito do credor para com o gerente/administrador.
Ou seja, o regime previsto no referido artigo 78° do Código das Sociedades Comerciais ao consagrar um tipo de responsabilidade civil extracontratual pressupõe, para que possa actuar, que todos os requisitos da responsabilidade civil que emergem do artigo 483° do Código Civil estejam preenchidos (ver Acórdão da Relação de Lisboa de 26/03/2009, processo 10140/03.9TVLSB.LI-8 acessível em www.dgsi.pt).
Decorre, da análise deste preceito que o dever de reparação, resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos, depende (como refere Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5"
Ed., pág. 446) de vários pressupostos: o facto, a violação de direitos de outrem que lhe provoque danos (ilicitude), a imputação desse facto ao agente (culpa - mera culpa ou dolo) e o nexo causal entre o facto e o dano.
Para além destes requisitos gerais, importa que se verifiquem os requisitos específicos previstos no referido artigo 78° do Código das Sociedades Comerciais:
- é necessário que o facto do gerente/administrador constitua uma inobservância culposa de disposições legais destinadas à protecção dos credores sociais;
- que o património social se tenha tornado insuficiente para satisfação dos credores sociais;
- e que essa violação seja causa da insuficiência patrimonial (ver Acórdão da Relação de Lisboa de 191i2/2007, processo 10384/2007-6, acessível em www.dgsi.pt).
E, nos termos dos artigos 342° e 487°, n° 1, do Código Civil, nenhum destes requisitos se presume, cabendo ao autor a sua prova.
Saliente-se que, como referem os réus, nesta perspectiva da responsabilidade dos gerentes, não cabe ao Tribunal qualquer sindicância ao mérito da sua gestão mas apenas apurar a licitude dessa actuação (ver Acórdão da Relação do Porto de 29/11/2007, processo 0735578, acessível em www.dgsi.pt).
Vejamos, então, se os factos provados preenchem tais requisitos.
Dúvidas não restam que ambos os réus eram gerentes da sociedade "Centeanes - Empreendimentos Turísticos, Lda." (ponto 2. dos factos provados desta sentença) e foram-no até 2003 (pontos 6. a 9. dos factos provados desta sentença).
Por outro lado, embora o objecto social dessa sociedade fosse a "exploração de empreendimentos turísticos e a prestação de assistência a qualquer investimento turístico ou urbano" (ponto 1. dos factos provados desta sentença), a partir de 1997 deixou de explorar o Hotel de Apartamentos Cristal e passou a explorar um restaurante denominado "O Farol", sito no Carvoeiro (pontos 25. e 26. dos factos provados desta sentença), tendo sido durante essa exploração que essa empresa adquiriu à Autora os produtos em causa (ponto 27. dos factos provados desta sentença).
Porém, quando os réus levaram a Centeanes a adquirir os produtos à autora sabiam que nos anos de 2000 e 2001 a Centeanes deixou de pagar aos seus credores e deixou de pagar os seus impostos e o valor do seu activo era inferior ao valor do passivo (cf. pontos 31, 32.,18. e 17. dos factos provados desta sentença). Também se sabe que a Centeanes forneceu a terceiros os produtos que adquiriu à autora e recebeu o respectivo preço (pontos 30. e 11. dos factos provados desta sentença).
Sabe-se que a Centeanes não pagou à autora o valor constante das facturas relativas aos produtos adquiridos no ano de 2000 e Janeiro e Fevereiro de 2001 (pontos 12. e 11. dos factos provados desta sentença) e que foram os réus que levaram a Centeanes a não pagar à Autora (ponto 34 dos factos provados desta sentença).
E, em finais de 2000, início de 2001, os réus decidiram que a Centeanes deixaria de explorar o referido restaurante (ponto 33. dos factos provados desta sentença), após o que a empresa, até ao presente, ficou inactiva (ponto 29. dos factos provados desta sentença), já que esse restaurante era o único estabelecimento que a Centeanes dispunha (ponto 28. dos factos provados desta sentença).
Já quando a empresa estava inactiva, em Novembro e Dezembro de 2001, Abril de 2002 (e vencimento em Abril de 2002 e Junho de 2002) o réu, em representação da Centeanes, aceitou letras de câmbio sacadas pela autora (pontos 13. e 14. dos factos provados desta sentença), sendo certo que tais letras não foram pagas na data do seu vencimento nem posteriormente (ponto 15. dos factos provados desta sentença), já que os réus levaram a Centeanes a aceitar as letras sabendo que esta sociedade não tinha meios para as pagar (ponto 35. dos factos provados desta sentença).
Apesar de tudo isto, os réus nunca diligenciaram pela apresentação à falência da Centeanes (ponto 19. dos factos provados desta sentença), a partir de 2000 não foi efectuada a contabilidade e a prestação de contas anual da Centeanes (ponto 22. dos factos provados desta sentença) e a partir de 1998 não foi efectuado o registo das contas da Centeanes (ponto 23. dos factos provados desta sentença).
Em primeiro lugar, tendo presente o disposto nos artigos 11°, 142°, nO 1, alínea d) e 259° do Código das Sociedades Comerciais, pode dizer-se, com segurança, que não é permitido, aos gerentes, o desenvolvimento de uma actividade não compreendida no objecto contratual/social da sociedade.
Ora, se a sociedade em causa, quanto à exploração, apenas poderia desenvolver essa actividade relativamente a empreendimentos turísticos (ver D.L. 167/97, de 4 de Julho e, mais recentemente, D.L. 39/2008, de 7 de Março), a exploração de um restaurante encontra-se, claramente, fora do objecto social.
Trata-se, portanto, de actuação ilícita (no sentido de violar regras legais que visam proteger terceiros - como são aquelas resultantes da limitação imposta pelo objecto negocial social de uma sociedade) por parte dos gerentes, ora réus.
Não resulta, porém, dos factos provados que tenha sido só essa mudança de actividade a causa da insuficiência do património social que veio a afectar a ora autora na cobrança dos seus créditos.
Por outro lado, resulta das disposições conjugadas dos artigos 65° e 70° do Código das Sociedades Comerciais que compete à gerência a apresentação e, após aprovação, registo da prestação de contas da sociedade.
E, ao contrário do que referem os réus (e se verifica, desde logo, pela necessidade de dar publicidade à prestação de contas - cf. referido artigo70° do Código das Sociedades Comerciais), trata-se de obrigação que visa acautelar os interesses dos sócios da sociedade, mas também de terceiros que com ela se relacionem (e, desse modo, podem conhecer a "saúde" financeira da sociedade e, assim, decidir, esclarecidamente, em que termos e com que risco vão estabelecer relações comerciais com ela).
Mais uma vez, porém, não resulta dos factos provados (e era difícil que resultasse) que tal violação culposa por parte dos réus foi a causa da insuficiência do património da sociedade.
No entanto, se destes actos isolados não se vislumbra o preenchimento dos requisitos da responsabilidade acima referidos, o mesmo não se pode dizer de todo um conjunto de actos que levaram a que a sociedade, efectivamente, ficasse desprovida de qualquer património penhorável (cf. ponto 16. dos factos provados desta sentença).
De acordo com o disposto no já referido artigo 259° do Código das Sociedades Comerciais é função dos gerentes" ... praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios".
Ora, nunca será conveniente nem necessário para a realização do objecto social (ou seja, para prosseguir o interesse da sociedade - que, conforme resulta do artigo 64° do Código das Sociedades Comerciais, deverá ser o objectivo de toda a actuação dos gerentes) deixar a sociedade sem qualquer actividade.
Contudo, foi precisamente isso que fizeram os ora réus.
Apesar dos créditos da autora, que os réus levaram a que não fossem pagos (e, relembre-se, foram assumidos quando os gerentes já sabiam que a sociedade já tinha deixado de pagar aos seus credores, de pagar impostos e que o seu activo era inferior ao passivo), não só os ora réu não apresentaram a sociedade à falência como decidiram que a sociedade ficaria sem explorar o restaurante e, assim, sem qualquer activo ou possibilidade de o adquirir (por ficar sem actividade).
Verifica-se, assim, além da violação culposa (os réus podiam ter actuado de outro modo, concordante com o direito) e ilícita (porque violadora, como se viu, de normas que protegem terceiros) dos seus deveres como gerentes, que tal conjunto de factos constituem causa da insuficiência (ou melhor, completa ausência) do património social para satisfação dos créditos, nomeadamente os da ora autora (ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2004, processo 04A3819; Acórdão da Relação de Lisboa de 26/03/2009, processo 10 140/03.9TVLSB.L1-g, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Verificados, assim, todos os pressupostos acima referidos, deverão os réus ser condenados conforme peticionado.
É que a responsabilidade dos réus é solidária (cf. artigos 78°, n° 5 e 73°, nO 1, do Código das Sociedades Comerciais), não tendo a ré provado (sendo que a ela cabia o ónus - cf. artigo 342°, n° 2 do Código Civil) que não exercia as funções de gerente.
E, finalmente, tendo presente o disposto no artigo 805°, n° 2, alínea b), do Código Civil, serão devidos juros (calculados à taxa legal supletiva para obrigações civis) sobre a quantia peticionada de €78.061 ,86 (pois é esse o valor do dano e no qual devem os réus ser condenados a pagar) desde 1 de Janeiro de 2001 (data que se pode fixar como a da prática do acto ilícito - cf. ponto 33. dos factos provados desta sentença) até efectivo e integral pagamento, conforme peticionado».
Não podemos deixar de concordar com o que acabou de se transcrever e bem assim com a decisão. Com efeito está amplamente demonstrado que os RR. violaram de forma reiterada os seus deveres enquanto gerentes, não apresentando contas, não se apresentando a requerer a insolvência, deixando de desenvolver o objecto social e iniciando outro negócio, que embora afim, (os códigos de CAE assim o demonstram – vide Dec. Lei n.º 182/93 de 14 de Maio ) era estranho àquele, contraindo, com tal negócio, dívidas que sabiam não poder pagar e mais do que isso, adquirindo produtos à requerente, que não pagavam e que cediam ou vendiam a outros, sem que o produto assim obtido servisse sequer, para amortizar as dívidas contraídas. A violação de tais deveres foi, sem sombra de dúvidas, causal do dano produzido na esfera jurídica da A.!!
A decisão jurídica proferida pelo tribunal “a quo” mostra-se perfeitamente acertada e justa.
Assim sem necessidade de mais considerações, acorda-se em julgar improcedente a apelação e concordando-se com os fundamentos de facto e de direito da sentença, para a qual se remete nos termos do n.º 5 do art.º 713º do CPC, confirma-se a mesma.
Custas a cargo da apelante.
Registe e notifique.
Évora, em 17 de Março de 2010.
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(Bernardo Domingos – Relator)

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(Silva Rato – 1º Adjunto)

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(Sérgio Abrantes Mendes – 2º Adjunto)













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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado.
Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida.
Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil).
Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa -1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra - 2000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] As máximas ou regras da experiência da vida (Erfahrungssätze) são afirmações genéricas de facto __ são juízos gerais (de facto) __ situadas no domínio da questão de facto, que funcionam como premissas maiores das presunções simples, notórias ou não notórias __se forem notórias o juiz conhecê-las-á ou se socorrerá dos meios fáceis e acessíveis ao seu conhecimento, se o não forem será obtidas por intermédio do processo, maxime, por intermédio dos peritos __, que procedem mediata ou imediatamente da experiência. Vd. Castro Mendes, Do conceito de prova em processo civil, Edições Ática - 1961, págs. 644 e 660 e segs. São, pois, juízos de carácter geral formados sobre a observação da vida de todos os dias, que permitem ao juiz apreender o significado, a atendibilidade e a eficácia de uma prova. São critérios generalizantes e tipificados de inferência factual. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal (1967-1968), Coimbra - 1968, pág. 48. Segundo Vaz Serra __ RLJ Ano 108 pág. 358 __ não são normas jurídicas __ e portanto não são normas de direito substantivo __, mas são partes destas já que estas as mandam, expressa ou tacitamente, ter em conta e, por conseguinte a sua violação implica a violação da lei substantiva. E segundo Vd. P Lima e A. Varela __ Cód. Civil Anot. Vol. I 2.ª Ed., pág. 289 __ estão na base das presunções judiciais simples ou de exercício, isto é, das que assentam no simples raciocínio de quem julga. Sobre a questão se se situam no âmbito da questão de direito ou de facto vd. J. A. Reis, Breve Estudo, pág. 539. Cfr. também Castro Mendes, opus cit., pág. 666 nota 18.
[4] Vd. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil (Conceito e Princípios Gerais) - À luz do Código Revisto, Coimbra Editora - 1996, pág. 157; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa -1997, pág. 347
[5] Os depoimentos não são só palavras, o silêncio da testemunha (que não aparece quando há transcrição) pode valer mais para formar a convicção do tribunal do que o depoimento orquestrado de vinte outras.
[6] O tom de voz, a mímica, o rubor, a palidez, etc., elementos extremamente infiéis e mutáveis, conforme o temperamento, a idade, o sexo, a posição social e as condições de vida, mas que podem ser significativos, quando sujeitos a uma análise prudente e avisada, que descubra, por exemplo, entre um tímido e um audacioso profissional da mentira, que sabe ser mais facilmente acreditado se se mostrar firme e seguro no seu depoimento.