Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2071/06-2
Relator: JOÃO MARQUES
Descritores: SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
TESTAMENTO CERRADO
Data do Acordão: 11/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
Sumário:
Um testamento cerrado, enquanto contém apenas o texto e a assinatura do testador, é um documento particular.
Todavia, por estar sujeito a aprovação pelo Notário, este acto traduz a sua autenticação e, consequentemente, a sua impugnação obedece ao regime estipulado para os documentos autênticos.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 2071/06

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A”, casado, residente na Urbanização …, lote …, …, …, …, intentou acção com processo ordinário contra “B” e esposa “C”, residentes no Sítio …, …, …, …, pedindo que os Réus sejam condenados a reconhecer que, por legado da falecida “D”, avó do Autor, mãe e sogra dos Réus, o Autor adquiriu a propriedade plena da fracção autónoma "F" do prédio urbano situado em …, no nº … da Rua …, inscrito na matriz da freguesia de … sob o art. 2015, descrito no registo predial sob o nº 02714 da mesma freguesia, bem como a restituir ao Autor a posse da referida fracção autónoma, com todo o seu recheio e pertences.
Alegou que a sua falecida avó lhe legou em testamento uma determinada fracção autónoma de um prédio urbano em regime de propriedade horizontal, a qual o Réu, não obstante ter tomado conhecimento do legado testamentário, registou a seu favor na Conservatória do Registo Predial de …
Os Réus contestaram, dizendo que o testamento não pode ter sido redigido, ditado ou assinado pela falecida “D”. Referem também que a fracção em causa faz parte da herança aberta por óbito de “E”, de que são herdeiros a falecida “D” (esposa) e o Réu marido (filho), não tendo tal fracção sido objecto de partilha, pelo que à data do óbito da testadora pertencia em comum e sem determinação de parte a ela própria e ao Réu marido.
O Autor replicou, afirmando que o testamento é um documento autêntico e quanto a ele foram observados todos os requisitos formais de validade. Afirmou ainda que enquanto a herança do marido se mantivesse indivisa, a falecida tinha o direito a deixar, por testamento, os legados que entendesse, dentro dos limites legais.
E o Autor ampliou o pedido, por força do direito de acrescer, no montante de 41.625,38 €.
Os Réus treplicaram, mantendo o afirmado na contestação.

Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu relegar para final o conhecimento da invocada excepção peremptória da nulidade do testamento.
Quanto à ampliação do pedido, sobre a mesma não recaiu qualquer despacho, nem a admitir a ampliação, nem a indeferi-la. Todavia, e dado que a ampliação foi efectuada na réplica, admitiu-se a mesma na fase da sentença, ao abrigo do disposto no art. 273º, 2ª parte, do Cód. Proc. Civil.

Após a selecção dos factos assentes e a organização da base instrutória, que não sofreram reclamação, procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida a decisão de fls. 518-519 sobre a matéria de facto.
Por fim foi proferida a sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou os RR.:
- a reconhecerem que “D”, avó do Autor, mãe e sogra dos RR., deixou como legado ao Autor a fracção autónoma "F" do prédio urbano situado em …, n° … da Rua da …, inscrito na matriz da freguesia de … sob o art° …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 02714 da mesma fteguesia e que o Autor tem direito a receber do Réu marido, herdeiro da falecida, o respectivo valor dessa fracção e recheio, em dinheiro, a liquidar em execução de sentença;
- a reconhecerem que o Autor, dentro dos parâmetros legais, goza do direito de acrescer relativamente ao legado de títulos.
Do mais se tendo absolvido os RR.

Inconformados, interpuseram os RR. o presente recurso, em cuja alegação formulam as seguintes conclusões:
1 - A Mma Juíza não especificou minimamente os fundamentos de facto e de direito que a levaram a não considerar a prova pericial - da qual não faz sequer menção na sentença - o que, face ao alegado pelos RR - falsidade da assinatura - e ao quesitado em três da base instrutória, não poderia ter deixado de fazer, já que tal constituía inclusivamente o centro de todo o processo.
2 -A Polícia Judiciária apurou como "provável" a falsificação da assinatura do testamento (cerrado na parte dispositiva da vontade).
3 - Assim, é incompreensível que o tribunal, sem o justificar, não considere as conclusões da polícia científica - cujos méritos e qualidade não podem ser de forma alguma postos em causa nem ignorados.
4 - Violou com isso a Mma Juíza o dever de apreciar criticamente a prova constante dos autos, não a tomando em consideração.
5- Tal omissão constitui nulidade da sentença, por violação das normas constantes dos art°s 659° e 668°, n° 1, al. b) do C.P.C.
6- a Mmª Juíza, erradamente e ignorando a prova pericial, considerou o testamento válido e eficaz e, nessa medida, condenou os RR..
7 - A fracção em causa faz parte da herança aberta por óbito de “E”, de que são herdeiros a falecida “D” (esposa) e o réu marido (filho), não tendo tal fracção sido objecto de partilha, pelo que à data do óbito da testadora, pertencia em comum e sem determinação de parte a ela própria e ao Réu marido.
8- Conclui consequentemente a douta sentença que a “D” legou ao ora autor um bem, uma fracção autónoma, que não lhe pertencia por inteiro.
9 - Tal conclusão é contraditória com a condenação do Réu marido a pagar ao autor o respectivo valor em dinheiro, entendendo-se "respectivo" como valor global do apartamento e recheio.
10- Quando muito, a vencer a tese de que o testamento é válido e eficaz, teria o R. marido de entregar ao Autor, em dinheiro, o equivalente na parte ou direito que se vier a apurar pertencer à falecida sobre o imóvel e recheio e nunca o valor da totalidade dos mesmos, sob pena de se considerar um legado superior ao direito da testadora sobre a fracção autónoma e recheio.
11- A fundamentação por parte da Mma Juíza de que a “D” legou ao ora Autor um bem, uma fracção autónoma que não lhe pertencia por inteiro, é contraditória com a condenação do R. marido a pagar ao Autor o valor em dinheiro da fracção e recheio, por nãolevar deste modo em conta que a testadora não podia dispor da totalidade da fracção, o que também constitui nulidade da sentença, por violação da norma contida no artº 668°, n° 1, al. c) do C.P.C.

Terminam impetrando se declare a nulidade da sentença e, sendo suprida, que seja a final julgada improcedente a acção, absolvendo-se os RR. do pedido.

O Réu contra-alegou pugnando pela confirmação da sentença.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Na douta sentença foram considerados provados os seguintes factos:
a) “D” e “E” foram casados em primeiras e únicas núpcias de ambos, no regime de comunhão geral de bens;
b) Deste casamento nasceu um único filho, o ora Réu “B”;
c) “E” faleceu em 18 de Setembro de 1995, sem ter deixado testamento ou qualquer disposição de última vontade;
d) “D” foi cabeça-de-casal na herança aberta por morte de “E”, tendo declarado como únicos herdeiros deste ela própria e o ora Réu, na Repartição de Finanças de …;
e) Da relação de bens apresentada na Repartição de Finanças de …, subscrita por “D”, consta a fracção autónoma F, correspondente ao segundo andar, letra A, do prédio urbano sito na Rua da …, n°. …, em …, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo 2015, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n°. 02714/010295;
f) Em 19 de Abril de 2001, “D” deslocou-se ao Cartório Notarial de … e apresentou ao Notário para aprovação o que disse ser o seu testamento cerrado;
g) “D” faleceu em 24 de Novembro de 2001, no estado de viúva de “E”;
h) O Réu relacionou a fracção autónoma F, correspondente ao segundo andar, letra A, do prédio urbano sito na Rua da …, nº, …, em …, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo 2015, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº. 02714/010295 entre os bens que tinha adquirido por morte de “D” e requereu o registo a seu favor da mesma na Conservatória de …, o que lhe foi recusado;
i) O Autor aceitou sem reserva o legado da fracção referida em h) que lhe deixou “D” e os demais bens;
j) Em 30 de Maio de 2001, “D” e os Réus outorgaram escritura de partilha no Cartório Notarial de …, a fis. 76 a 77 do Livro 150-G, respeitante a um prédio sito nos …, na qual se pode ler "( ... ) Que nos termos expostos dão a partilha por concluída";
k) A aquisição da fracção F referida encontra-se registada, sem determinação de parte ou direito, a favor de “D” e dos Réus, pela inscrição G 2;
l) Os demais netos de “D” repudiaram os legados do seu testamento;
m) Em 15 de Janeiro de 2002, foi aberto o testamento de “D”;
n) A correspondente relação de bens foi apresentada na Repartição de Finanças pelo Autor;
o) Em testamento cerrado de “D” esta deixou ao Autor, entre outros bens, a fracção autónoma E, e respectivo recheio, correspondente ao segundo andar, letra A, do prédio urbano sito na Rua da …, nº …, em …, inscrito na matriz predial da freguesia de … sob o artigo 2015, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 02714/010295;
p) O Réu teve conhecimento da existência do testamento;
q) O testamento referido em f) não foi redigido pela “D”;
r) Está provado o que consta no testamento referido em f) na parte que se reporta aos títulos (fls. 414 dos autos);
s) “D” tinha estima pelo filho;
t) Os demais netos de “D” repudiaram o que por esta lhes foi deixado em testamento.

Vejamos então.

Como se sabe e resulta dos art°s 690° n° 1 e 684° n° 3 do C.P.Civil são as conclusões da alegação que delimitam o âmbito do recurso, abrangendo apenas as questões aí contidas.
Constata-se, no apontado contexto que, no presente caso, as questões a resolver se prendem, por um lado, com a validade do testamento e, em caso afirmativo, com a legitimidade da testadora para legar a fracção autónoma, atento o momento em que o fez e a situação jurídica dos bens de que fazia parte, sendo que da solução desta última questão depende a definição das obrigações que eventualmente recaiam sobre o R. marido.
Relativamente à primeira questão, afirmaram o RR. no art° 18° da contestação que "tudo leva a crer, não só aos RR. como aos demais filhos do casal, que a assinatura aposta no testamento não é a de “D”, logo requerendo a realização de uma perícia (art° 28).
Tendo-se procedido à mesma, o Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária admitiu, "como provável, que a escrita suspeita da assinatura de “D” aposta na segunda folha do testamento de fls. 1 a 3 (doc 1) não seja da autoria de “D”, sendo que a referida assinatura é a que se segue imediatamente ao texto do testamento, comprovadamente redigido por outrem que não a testadora.
Neste contexto, se devesse considerar-se o testamento cerrado como mero documento particular, o funcionamento da regra do n° 2 do art° 374° do C. Civil (diploma a que se referirão todos os demais preceitos que vierem a citar-se sem menção a outra fonte) conduziria a que, declarado pelos RR. o desconhecimento da veracidade da assinatura, caberia ao A. a prova dessa veracidade. E, como o resultado da referida perícia foi no sentido da probabilidade de a assinatura não pertencer à testadora, o destino da causa estava traçado, rumo à improcedência da acção.
Cremos, porém, que, no caso em apreço, as coisas não são assim tão lineares.
Com efeito, não temos dúvidas de que da conjugação dos art°s 363°e 373° e sgs., resulta claro que o testamento cerrado enquanto contém apenas o texto e a assinatura do testador, é um documento particular, por contraposição ao testamento público a que alude o art° 2205°. Mas, uma vez que está sujeito a aprovação por notário, nos termos do n04 do art° 2206° do C. Civil, entendemos que esse acto se traduz na sua autenticação, o que se passará a tentar demonstrar:
Nos termos agora do n° 3 do art° 363°, os documentos particulares são havidos por autenticados quando confirmados pela partes, perante o notário, nos termos prescritos nas leis notariais.
Sobre o assunto, regem os art°s 106° e segs. do Código do Notariado, interessando especialmente as formalidades prescritas no art° 108°, de que resulta:
- presença física do testador no cartório notarial e apresentação pelo mesmo do testamento;
- elaboração do respectivo instrumento pelo notário contendo as declarações do testador no sentido de que:
a) o escrito apresentado contém as suas disposições de última vontade;
b) está escrito e assinado por ele ou (é ocaso) escrito por outrem, a seu rogo e somente assinado por si;
c) que o testamento não contém palavras ou emendas, truncadas, escritas sobre rasuras ou entrelinhas, borrões ou notas marginais, ou no caso de as ter, que estão devidamente ressalvadas;
d) que todas as folhas, à excepção da assinada, estão rubricadas por quem assinou o testamento;
Por outro lado, no caso de o testamento não ter sido escrito pelo testador, deve este declarar que conhece o seu conteúdo por o haver já lido.
Estamos, portanto, perante a confirmação exigida pelo aludido n° 3 do art° 363° do C. Civil.
Poderia objectar-se que a autenticação de documentos particulares relevante para efeitos do referido preceito, é a que está especialmente prevista nos art°s 150º e segs do C. do Notariado. Mas a verdade é que se confrontarmos os requisitos e autenticação prescritos no art° 151 ° com as formalidades impostas pelo art° 108°, o que se pode concluir é que, dentro de um mesmo núcleo essencial de formalidades, do que se trata é de estabelecer especiais exigências naquele último, sobretudo no que respeita à indagação da conformidade do documento com a vontade do testador. Ou seja, a aprovação notarial do testamento cerrado consubstancia, quanto a nós, uma foma especial de autenticação de um documento particular.
Ora, no caso, como se vê do instrumento exarado pelo notário, iniciado na linha imediatamente a seguir à assinatura, a testadora compareceu no cartório notarial de … no dia 19 de Abril de 2001, onde apresentou o concreto documento oferecido pelo A. contendo o seu testamento cerrado e fez todas as referidas declarações, na presença de duas testemunhas, constando ainda do instrumento que a primeira folha está rubricada pela testadora.
Partindo assim da realidade de que, com a aprovação, tão determinante, aliás, que a data do testamento se conta a partir deste acto notarial (art° 2207°), o testamento cerrado deve considerar-se documento particular autenticado, o mesmo passa, no que respeita à respectiva impugnação, a obedecer ao mesmo regime dos documentos autênticos. É o que resulta da lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando esclarecem que "os documentos particulares, uma vez assente a sua proveniência da pessoa que os subscreve, também são autênticos (hoc sensu)" e que, "por isso, talvez a distinção se fizesse em termos mais rigorosos, classificando os escritos em públicos e particulares" (Código Civil Anotado, Vol I, 4a edição, pag. 322). E, sendo assim, a sua impugnação tinha que consistir na arguição da respectiva falsidade (art° 372°), meio a que os RR. não recorreram. De todo o modo, a conclusão da perícia efectuada também nunca apontaria no sentido da falsidade da assinatura, posto que se limitou a ter como "provável" que a mesma não corresponda à da testadora, com o que surgem irrelevantes as considerações aduzidas nas conclusões 1ª a 6a da alegação quanto ao valor de tal perícia e que a sentença teria menosprezado.
Em resumo, sendo de subscrever a conclusão pela validade e eficácia do testamento, a mesma tem de assentar em fundamentos algo diferentes dos aduzidos na douta sentença, e já antecipados na fundamentação do julgamento da matéria de facto.
Passando ás demais conclusões, vejamos a questão da validade da disposição testamentária quanto ao legado da fracção "F".
Na douta sentença, depois da afirmação da validade do testamento e de que isso poderia apontar desde logo para a procedência da acção e consequente reconhecimento do direito do A. como proprietário do legado, a exigi-lo judicialmente do detentor, ainda que único herdeiro da testadora, em acção de reivindicação, observou-se que a questão não é, contudo, assim tão líquida. Com efeito, depois de douta explanação sobre a posição do legatário na sequência da aceitação do legado, acentuou-se que não podia olvidar-se que o réu levantou a questão de que a fracção em causa faz parte da herança aberta por óbito de “E” de que são herdeiros a falecida “D” (esposa) e o Réu marido (filho) e que, não tendo tal fracção sido objecto de partilha, pertencia, à data do óbito da testadora, em comum e sem determinação de parte, a ela própria e ao Réu marido, contexto em que a testadora legou ao A. uma fracção autónoma que não lhe pertencia por inteiro, o que inteiramente se subscreve.
Só que, depois de constatar que se trata de uma hipótese expressamente prevista no art° 2252° do C. Civil, nos termos do qual o legado valeria apenas em relação à parte que pertencesse ao testador, salvo se do testamento resultasse que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa, pois, nesse caso, o sucessor seria obrigado a adquirir a coisa e a transmiti-la ao legatário ou a proporcionar-lhe outro modo de aquisição, ou, não sendo isso possível, a pagar-lhe o valor dela, passa a socorrer-se do preceituado no nº 2 do mesmo preceito, quando dispõe que as regras do número anterior não prejudicam o disposto no art° 1685°, para concluir que o Autor não pode exigir a coisa legada, mas apenas o respectivo valor em dinheiro, o que veio a conduzir à decisão de condenação dos Réus a reconhecerem-lhe o direito a recebe-lo do réu marido. Ou seja, a sentença, reconheceu, por um lado, que a fracção não pertencia por inteiro à testadora e, por outro, reconheceu que o Autor tem direito à totalidade do seu valor. E é precisamente a este respeito que os apelantes sustentam haver contradição. E inteira razão, como se tentará demonstrar.
Com efeito, sendo patente que a aludida contradição resultou da chamada à colação do disposto no art° 1685°, caberá observar que, salvo melhor entendimento, o mesmo preceito não tem aqui aplicação. É que, inserindo-se o mesmo no capítulo respeitante aos efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges, a prática dos actos de disposição para depois da morte ali previstos pressupõe a vigência desse mesmo casamento. Ou seja, os cônjuges, enquanto casados, podem dispor dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns nos termos e condições ali previstos, sendo que, só enquanto casados (no caso da testadora, no regime da comunhão geral com o defunto marido), se pode falar de património comum, não tendo que dar conta nem estando condicionados, nos seus actos, a interesses de terceiros, salvo no que respeita às restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários. E tanto assim é que, em certos casos de disposição que tenha por objecto coisa certa, o contemplado só a pode exigir em espécie se a referida disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge.
Dissolvido o casamento, por morte de um ou ambos os cônjuges, os bens passam a integrar uma entidade nova, ou seja, a herança, relativamente à qual, enquanto se não proceder à partilha, regem as normas dos art°s 2079° e segs. nos termos das quais, salvaguardados os poderes de administração do cabeça de casal, os direitos que dela emergem só podem ser exercidos por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Não quer isto significar que não possa, cada um dos herdeiros, fazer disposições testamentárias decorrentes dessa qualidade, posto que a titularidade de uma quota hereditária se traduz afinal num bem de que se pode dispor. Mas a verdade é que tem que ter presentes os direitos dos demais co-herdeiros, posto que, enquanto indivisa a herança, digamos que tudo lhe pertence em abstracto, pelo menos perante terceiros, atento, até, o direito de acção a que alude o art° 2078°, mas que nada ainda lhe pertence em concreto, enquanto senão proceder à respectiva partilha.
De modo que a salvaguarda do disposto no art° 1685° pelo n° 2 do art° 2252°, só pode ter o sentido de se pretender assegurar os respeito pelas disposições feitas pelos cônjuges na vigência do casamento, e não também as que ocurreram depois da respectiva dissolução, como aconteceu no caso de que nos ocupamos, na medida em que, enquanto indivisa a herança, não pode o herdeiro considerar seu nenhum concreto bem que integre o respectivo acervo.
Isto nos conduz directamente à conclusão de que, não podendo o autor considerar sua a fracção legada, nem invocar o direito de a reivindicar, só pode exigir, relativamente à mesma, o valor correspondente à quota hereditária de quem lhe legou, nos temos da primeira parte do art° 2252°.
A este propósito, sustentam os apelantes, na conclusão 10a, que o R. marido só teria de entregar ao A., em dinheiro, o equivalente, à parte ou direito que se viesse a apurar pertencer à falecida sobre o imóvel e respectivo recheio.
Mas a questão é esta: uma vez que faleceu entretanto a testadora e que o R. marido, como único herdeiro de todos os bens do casal que ela formara com o préfalecido “E”, já não tem que se submeter a qualquer partilha, não pretenderá certamente que se simule uma hipótese de partilha reportada ao tempo da indivisão da herança, para se apurar que parte da fracção em causa caberia à testadora, e que quantificaria, em termos monetários, o direito do Autor.
É que, tendo, em virtude da morte da testadora, sucedido em todos os bens do casal por ela formado com o referido “E”, seus pais, o que acontece é que, relativamente à dita fracção "F", tem de respeitar o legado na exacta medida do direito que, à data do testamento, a testadora tinha sobre ela. Ora, fazendo aqui apelo às regras da compropriedade que, nos termos do disposto no art° 1404° são aplicáveis á comunhão de quaisquer outros direitos, como é o caso da herança indivisa, a presunção contida na 2a parte do n° 2 do artº 1403° no sentido de quotas quantitativamente iguais, conduz a que o Réu marido tenha que entregar ao A. metade do respectivo valor.

Por todo o exposto, na parcial procedência da apelação, atenta aparte da sentença por via da mesma impugnada, condenamos Réus a reconhecerem que o Autor, por força do testamento cerrado feito por “D”, a seu favor, tem direito a receber do Réu marido, herdeiro daquela, metade do valor da fracção "F" do prédio urbano situado em …, nº …na Rua …, inscrito na matriz dá freguesia de … sob o art° 2015°, descrito no registo predial sob o na 02714 da mesma freguesia, a liquidar em execução de sentença, no mais, por inatacado, se confirmando a dita douta sentença,
Custas, por cada uma das partes, na proporção de vencido.
Évora, 23 de Novembro de 2006