Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1845/05-2
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: PENHORA DE BENS AUTÁRQUICOS
BENS DO DOMÍNIO PRIVADO DO ESTADO
Data do Acordão: 01/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
1- No que respeita à penhora de bens do domínio público existe uma salvaguarda absoluta – impenhorabilidade total - assente, obviamente na presunção “juris et de jure” de que tais bens estão, pela sua própria natureza, afectos exclusivamente a fins de utilidade pública.
2- Já quanto aos bens do domínio privado do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, só os que estiverem afectos a fins de utilidade pública beneficiarão da prerrogativa da impenhorabilidade.
3- A natureza destes bens não permite concluir ou presumir a afectação exclusiva ou sequer predominante a fins de utilidade pública e daí que, se pretender obter o levantamento da penhora desses bens, incumba ao executado/embargante, beneficiário da impenhorabilidade relativa, a alegação e prova (trata-se de matéria de excepção e como tal o ónus da prova cabe a quem aproveita – art.º 342º n.º 2 do CC) da afectação concreta dos bens a fins de utilidade pública.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Recorrente:
Município de ……….
Recorrido:
Rui ………………….

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Rui …………….., instaurou execução contra o Município de …………., no seguimento da qual veio a ser penhorado o Prédio Urbano descrito sob o nº 02255/170904, da freguesia de ……., propriedade do Município executado. Notificado da penhora efectuada, veio o referido Município opor-se à penhora com o fundamento de que o bem penhorado é um bem relativamente impenhorável, nos termos do disposto no artigo 823º, do Código de Processo Civil, na medida em que se trata de infra-estrutura municipal, afecta a fins de utilidade pública.
Notificado o exequente para se pronunciar, veio o mesmo responder alegando desconhecer se tal bem se encontra afecto a fins de utilidade pública, nomeadamente se nele estão instalados os serviços de obras e urbanismo da autarquia.
Nenhuma das partes ofereceu qualquer prova.
De seguida foi proferida decisão, julgando improcedente a oposição à penhora, por falta de alegação e prova da afectação do bem penhorado a fins de utilidade pública.
Inconformado com esta decisão, veio o Município de ……….. interpor recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Admitido o recurso com efeito devolutivo, foi posteriormente corrigido o efeito para suspensivo. Entretanto o recorrente foi convidado a esclarecer se pretendia mesmo interpor o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo dito que se tratava de um lapso de escrita e pedindo a sua correcção no sentido de figurar o Tribunal da Relação de Évora, o que foi deferido.
Nas suas alegações o recorrente apresentou as seguintes
conclusões:
« Do efeito do recurso:
Nos termos do artigo 687 n.º4 do C.P.C. vem desde já o recorrente impugnar o efeito que foi fixado ao presente recurso.
A) No douto despacho de admissão do recurso refere o tribunal" a quo" que "Porque tempestivo, tendo a recorrente legitimidade e sendo a fls. 43, o qual é de agravo, com efeito meramente devolutivo, com subida imediato e nos próprios autos - artigos 6780 n.º 1,. 680 n.º1,. 685º n.º1, 923º, 733º, 734° n °1 alínea a), 736º, 7400 n.º1 à contrario do Código Processo Civil
C) No modesto entendimento do recorrente, com o devido respeito, o tribunal "a quo" ao fixar um efeito meramente devolutivo ao presente recurso operou uma errada interpretação da lei processual.
D) Com efeito, estabelece o artigo 740° n.º l do Código Processo Civil que " Têm efeito suspensivo do processo os agravos que subam imediatamente nos próprios autos
E) Ora, o tribunal "a quo" ao determinar que o presente recurso é de agravo, com subida imediata nos próprios autos e fixar efeito meramente devolutivo, está a violar o disposto no artigo 740° n.º l do Código Processo Civil.
f) Efectivamente nos termos do artigo 740° n.º l do Código de Processo Civil, o efeito a atribuir ao presente recurso deverá ser suspensivo.
G) Nessa medida, deverá ser esse o efeito a fixar ao recurso por V. Exas.
Venerandos Desembargadores.
Do Recurso:
H) Vem o presente recurso da decisão proferida nos autos de execução comum que, com o n.º 13/03.0TBFAR-A, corre termos pelo 2° Juizo Cível do Tribunal Judicial de Faro e na qual foi julgada improcedente, por não provada, a oposição à penhora deduzida pela recorrente.
É, pois, esta douta decisão que se impugna por via do presente recurso.
I) Na verdade, como é sabido, a executada Câmara Municipal de ……. é o órgão executivo da autarquia local que se consubstancia no Município de …...
J) Como resulta da organização do Território do Estado Português, a autarquia é uma pessoa colectiva de direito público - cf., entre todos, Prof. Dr. Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, 10a Edição, 1973, Coimbra Editora.
K) A execução em apreço não visa a entrega de coisa certa e também não se destina à efectivação de pagamento de dívida com garantia real.
l) Desta maneira, dúvida não subsiste que o imóvel indicado à penhora pelo exequente e efectivamente penhorado, constitui bem relativamente impenhorável - nO 1 do artigo 8230 do Código Processo Civil.
M) O imóvel penhorado, é pertença da pessoa colectiva de direito público Município de ……… e está desde logo, como decorre inequivocamente dos fins prosseguidos por aquela pessoa colectiva pública, afectados a fins de utilidade pública.
N) Refere o tribunal "a quo" na sua douta sentença, que o aqui recorrente não faz qualquer prova que o imóvel penhorado se encontra afecto a fins de utilidade pública.
O) Prova essa que efectivamente não foi indicada por considerar o recorrente manifesta a impenhorabilidade do imóvel pertença do Município de ……….
P) Com efeito, é de tal forma notório que os imóveis propriedade das pessoas colectivas de direito público se encontram ao serviço do interesse público, que no seu modesto entendimento, entendeu o recorrente tratar-se de um facto notório, de conhecimento geral e como tal não carecendo de prova.
Q) Efectivamente, os imóveis existentes em nome da pessoa colectiva de direito público Câmara Municipal de ………., outra finalidade não tem que não seja a prossecução do interesse público.
R) Aliás, em bom rigor, não se alcança que outro fim, que não o da prossecução do interesse público, poderia ser atribuído aos seus imóveis.
S) Ainda assim e para que dúvidas não restassem alegou ainda o recorrente, em abono da verdade que o imóvel indicado à penhora pelo recorrido e efectivamente penhorado, é o edifício onde é desenvolvida toda a actividade dos serviços de obras e urbanismo da autarquia.
T) Por outro lado, conforme referido pelo Exmº Sr. Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, nos termos do disposto nos n. ºs 2 e 3 do artigo 7° do Decreto Lei n. ° 477/80 de 15 de Outubro o domínio privado indisponível do estado os bens e direitos do Estado que se encontrem afectos a fins de utilidade pública quer essa afectação seja actual, quer seja meramente previsível - Cfr. ponto 3 do doc.1 junto com o requerimento de oposição à penhora.
U) Pelo que, dúvidas não restam da previsibilidade da utilização do imóvel penhorado à recorrente se destinar à realizam de fins de utilidade pública, como efectivamente se destinam através da prossecução dos serviços de obras e urbanismo da recorrente, clara e inequivocamente ao serviço dos munícipes do Concelho de ……...
V) De facto, o imóvel aqui em causa é indispensável ao cumprimento das obrigações da autarquia, assumidas indubitavelmente, na prossecução de fins de interesse público, concretamente no que respeita aos serviços de obras e urbanismo.
W) A manter-se a penhora do imóvel em questão nos presentes autos, o interesse publico, mormente dos munícipes do concelho de ……….., saí manifestamente lesado, vendo-se assim impossibilitado o serviço de obras e urbanismo da recorrente de prosseguir com a sua normal actividade na prossecução do interesse público.
X) No modesto entendimento do recorrente, a manutenção da penhora requerida configura não só uma violação ao artigo 8230 n.º l do Código Processo Civil, mas também uma seria lesão do interesse público».
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Contra-alegou o recorrido suscitando a questão da incompetência territorial (já decidida) e pedindo a confirmação da decisão recorrida. Juntou certidão do registo da hipoteca judicial relativa ao imóvel penhorado e destinada à garantia do crédito exequendo.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente, os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) [1] salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Das conclusões decorre que única questão a decidir consiste em saber se os bens do domínio privado do Estado e demais pessoas colectivas públicas se presumem afectos à realização de fins de utilidade pública e consequentemente gozam do estatuto de impenhorabilidade ou se ao invés este estatuto depende da prova, em concreto, da afectação do bem a um fim de utilidade pública.
Dos Factos
Com interesse para a decisão da causa temos a seguinte factualidade:
Nos autos principais encontra-se penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de …….. sob o nº 02255/170904, da freguesia de …………. e que é propriedade do Recorrente.
Notificado da penhora efectuada, o Recorrente veio opor-se à penhora, alegando a impenhorabilidade relativa do imóvel, nos termos do art. 823º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, por nele se encontrar instalado o serviços de obras e urbanismo da autarquia, ou seja de uma infra-estrutura municipal afecta a fins de utilidade pública.
Notificado o Recorrido, este veio impugnar tal alegação, dizendo desconhecer se tal bem se encontra afecto a fins de utilidade pública, nomeadamente, se nele estão instalados os serviços de obras e urbanismo da autarquia.
Nem o Recorrente, nem o Recorrido apresentaram qualquer prova, quer no requerimento em que o incidente foi suscitado, quer naquele em que a oposição ao incidente foi deduzida.
Apreciando
Pretende o recorrente que pelo facto de um imóvel pertencer a pessoa colectiva de direito público, no caso o Município de ………, está, desde logo e “ipso facto” afecto aos fins fundamentais prosseguidos por aquela pessoa colectiva pública, ou seja a fins de utilidade pública, e portanto entende não ser necessário fazer prova dessa afectação por considerar ser um facto notório e do conhecimento geral, não carecendo assim de prova.
A tese do recorrente não tem qualquer fundamento e bastaria ter lido e confrontado a disciplina que rege a penhora de bens do domínio público (art.º 822 do CPC) com a dos bens do domínio privado pertencentes a entes públicos (art. 823 do CPC), para verificar a diferença substancial de regimes, designadamente ao nível da necessidade ou desnecessidade de prova da afectação dos bens a fins de utilidade pública.
No que respeita aos bens do domínio público existe uma salvaguarda absoluta – impenhorabilidade total - assente, obviamente na presunção “juris et de jure” de que tais bens estão, pela sua própria natureza, afectos exclusivamente a fins de utilidade pública e consequentemente justifica-se plenamente o sacrifício do particular em prol do bem comum!!!
Quanto aos bens do domínio privado do Estado e demais Pessoas Colectivas Públicas, a sua natureza não permite concluir pela afectação exclusiva ou sequer predominante a fins de utilidade pública e daí que, norteado pelos princípios da proporcionalidade e da necessidade/adequação, entre o interesse do credor/exequente e a salvaguarda do interesse público, o legislador tenha isentado de penhora apenas os bens afectos concretamente à utilidade e satisfação do interesse público. Daqui decorre que só os bens que estiverem afectos a fins de utilidade pública beneficiarão da prerrogativa da impenhorabilidade.
O legislador em lugar algum ou de modo algum deixou transparecer a desnecessidade de alegação e prova por parte dos beneficiários da isenção (trata-se de matéria de excepção e como tal o ónus da prova cabe a quem aproveita – art.º 342º n.º 2 do CC) da afectação concreta dos bens a fins de utilidade pública [2] . Ao invés na reforma do Processo Civil de 1995/96 o legislador reforçou a necessidade dessa prova ao alterar a redacção anterior passando a exigir que tais bens «se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública» e não apenas afectados a tais fins, como sucedia na redacção anterior do art.º 823º do CPC. .
A utilidade pública do bem tem que decorrer do uso directo que dele se fizer e tal uso concreto, se em certos casos pode inferir-se da natureza do próprio bem, se devidamente identificado (v.g. Uma escola pública, um posto de saúde público…) na maioria dos casos assim não sucederá, porquanto na identificação dos bens não é exigível a indicação do uso que lhe é dado. Se dos elementos constantes dos autos designadamente do auto de penhora ou do registo predial, não resulta inequívoca a afectação do bem a fins de utilidade pública, impõe-se ao executado, em sede de oposição, que alegue e prove essa concreta afectação, sob pena de manutenção da penhora.
No caso dos autos o recorrente veio alegar que no imóvel penhorado, estão a funcionar os serviços de urbanismo da Câmara Municipal de ………. Este uso dado a este imóvel não é um facto notório ou do conhecimento geral [3] e portanto, sendo um facto impeditivo do direito do exequente incumbia ao executado, não só a sua alegação mas também a sua prova, “maxime” quando tal facto foi especificamente impugnado pelo exequente. Não tendo apresentado qualquer meio de prova é óbvio que o Tribunal “a quo”, só poderia decidir como decidiu, pela improcedência da oposição.
Deste modo e pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo agravante.
Évora, em 12 de Janeiro de 2006.
( Bernardo Domingos – Relator)
( Pedro Antunes – 1º Adjunto)
(Assunção Raimundo– 2º Adjunto)




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[1] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[2] «A utilidade pública tem que resultar do uso do próprio bem. Não basta que os bens sejam instrumentais de aplicação de outros bens à utilidade pública. Poderá mesmo suceder que um mesmo bem possa ser penhorado nuns casos e impenhorável noutros. Quer isto dizer que compete à executada alegar e provar que os seus bens estão afectos à realização de um fim de utilidade pública, a qual tem de resultar do uso dos próprios bens» - Ac. do RL de 11/5/2004, proc. n.º 2849/2004-7, in www.dgsi.pt
[3] Para os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela ( in Cód. Anotado, vol. 1º, p. 166), o facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar. E o Prof. Manuel de Andrade ( Teoria Geral, vol. 2º, p.89) tinha por notório “ tanto aquilo que é geralmente sabido, como aquilo que é de per si evidente”.
Também segundo Alberto dos Reis in CPC Anot. 3º-259 e ss., um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessidade de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos.