Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
303/05-2
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
EFICÁCIA VINCULATIVA DE ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DO ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 05/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
I – Os Acórdãos previstos nos artºs 732º-A e 732º-B,emboras ejam obrigatórios apenas nos processos em que foram tirados, constituem precedentes judiciais qualificados, com a autoridade e a força persuasiva que lhes advém do facto de serem decisões do STJ, fruto de um julgamento ampliado de revista, isto é, efectuado pelo plenário das secções cíveis.
II – A doutrina sobre a questão jurisprudencial controvertida, que esteve na base da reunião em sessão plenária das Secções Cíveis do STJ, constitui orientação vinculativa para os tribunais da ordem judiciária comum. Assim o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que, expurgado dos aspectos inconstitucionais dos Assentos, designadamente quanto à sua imposição ou vinculatividade erga omnes e à sua irrevogabilidade pelo órgão emitente, possui força vinculativa na ordem judiciária comum (Tribunais Judiciais) enquanto não ocorrer a sua alteração pelo plenário das secções cíveis do STJ.
III – A alínea c) do artº 19º do Dec. -Lei 522/85 não se contenta com a simples condução sob o efeito do álcool, mas considera que a seguradora apenas tem direito de regresso, contra o condutor se este "tiver agido sob o efeito do álcool..." o que não constitui expressão sinónima de condução sob efeito de álcool!
IV – Aqui, agir sob a influência do álcool significa actuar por sua causa na provocação do acidente, devendo exigir-se a prova de que, realmente, a actuação do condutor que, culposamente, desencadeou o acidente, foi provocada, pelo menos em parte, por aquele estado alcoólico.
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 303/05 – 2
(221/03.4TBASL)
Comarca de Alcácer do Sal


Acordam na Secção Cível da Relação de Évora:

RELATÓRIO


I. - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. intentou a presente acção condenatória, com processo sumário, contra J., ambos com os sinais dos autos, alegando, em resumo útil, que em 18 de Junho de 2000, pelas 23 horas e 20 minutos, ocorreu um embate entre o veículo de matrícula ..-..-HT, conduzido por J. e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-OU, conduzido por P. e propriedade de A..
O referido embate ocorreu na Estrada Nacional 120, ao quilómetro 0,500 em Alcácer do Sal e ocorreu porque o Réu conduzia com uma TAS de 2,86 g/l.
A Autora pagou € 5.787,54 pelos danos sofridos pelo veículo OU.
Pediu a condenação do Réu no pagamento de € 5.787,54, relativos a tal importância que teve de pagar à dona do veículo e posteriormente ampliou o pedido no montante de € 5.000, por ter pago tal quantia a título de dano de privação do uso do veículo OU.

O Réu contestou, alegando, em síntese, que o embate ocorreu devido ao rebentamento de um pneu.
Após a legal tramitação, foi efectuado o julgamento da acção, tendo sido proferida sentença que a julgou improcedente por não provada e, em consequência, absolveu o Réu do pedido.

Inconformada com a referida sentença trouxe a Autora recurso de Apelação da mesma para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes:

Conclusões:

1) O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado na douta sentença não possui eficácia vinculativa fora do caso concreto a que se reporta.

2) No entender da Recorrente, que se identifica inteiramente com as posições plasmadas nos votos de vencido, a interpretação da norma efectuada pelo citado Acórdão viola a lei substantiva, é contrária aos princípios interpretação da lei, dos contratos, da produção de prova e, sobretudo, põe em causa a unidade do sistema jurídico.

3) O legislador no art. 19° ai. c) do Decreto-Lei 522/85 estabelece que a Seguradora tem direito de regresso contra o condutor que "tiver agido sob a influência do álcool".

4) A definição de "condução sob influência de álcool" há que encontrar no seio do ordenamento jurídico, buscando a respectiva coerência e unidade.

5) Assim, há que buscar a definição que se encontra plasmada no art. 81° do Cód. da Estrada que esclarece no seu nº 2 "Considera-se sob influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,50 g/l (...)"

6) Neste preceito, não restam quaisquer dúvidas, que o legislador estabeleceu uma presunção legal "juris et de jure" de que – a partir do limite mínimo de 0,5 g/l – o álcool influencia o condutor na sua actividade de condução, uma vez que inevitavelmente, para além de tal limite, o álcool afecta a capacidade de percepção, os reflexos, a capacidade motora, a destreza de movimentos, a visão e a atenção.

7) Esta consagração legal, parte de constatações de estudos científicos irrefutáveis, que apontam para a clara interferência do álcool no organismo humano e nas respectivas capacidades (motoras, de percepção, dos sentidos, dos reflexos).

8) Deste modo, concordamos inteiramente com a declaração de voto vencido do Venerando Juiz Conselheiro Francisco Manuel Lucas de Almeida quando, invocando estudos científicos que apontam quanto aos efeitos do álcool para "reflexos muito lentos", "muito deficiente coordenação psicomotora" e "visão dupla", defende que tais efeitos não deixam de representar "facto notório" que a lei isenta de alegação e prova (conf. Art. 514° do Cód. Civil).

9) Veja-se o caso como o vertente, em que o condutor circulava com uma taxa de alcoolémia de 2,86 g/l, que constitui ilícito criminal, para se concluir, segundo a sentença do Tribunal de Primeira Instância, que em relação ao nexo de causalidade entre a TAS que o Réu apresentava e o embate, nenhuma prova foi feita do mesmo.

10) A prova de que a condução sob a influência do álcool foi a causa adequada da própria condução culposa, ou seja a prova de que o sinistro nunca ocorreria se o condutor estivesse sóbrio, constitui "um objectivo absolutamente inatingível, esvaziaria, a ser exigido, aquele direito de regresso, nos casos de condução sob o efeito do álcool de todo o seu conteúdo".
Daí que se entenda que não poderá esse ser o sentido da doutrina do acórdão unificador, bastando para cumprimento do dever de provar a causalidade adequada, a demonstração de que o álcool, no caso de acidente com culpa do condutor, afectou as suas capacidades de condução", conforme Acórdão do STJ, in revista nº 3456-04-2 de 04-11-04.

11) Se não é admissível ao condutor contestar a condução sob influência de álcool quando surpreendido (mesmo após a contra­prova) com uma taxa de alcoolémia de 0,5 g/l ou de 1,2 g/l do ponto de vista do ilícito contra-ordenacional ou criminal, por que o fazê-lo em sede de direito de regresso? Assim, se dando azo, a uma incongruência no seio do ordenamento jurídico, com prejuízo da certeza da lei e da coerência da aplicação da justiça?

12) De onde decorre que douta jurisprudência tem vindo a entender que o nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente presume-se sempre que se ultrapasse a taxa de alcoolémia fixada por lei, uma vez que além deste limite o legislador entendeu que o condutor se encontra, necessariamente, com manifesta falta de perícia e destreza pois que as suas capacidades de reacção e reflexão, imprescindíveis a uma condução segura e cuidada, se encontram reduzidas.

13) Provado isto, é lícito às instâncias, retirar a ilação de que a condução nessas circunstâncias, constitui causa adequada do acidente e dos consequentes danos. E, porque se tem entendido que constitui factor determinante para o efeito, a existência de uma TAS superior ao legalmente permitido – o que aqui sucede -estão presentes todos os requisitos da al. c) do art. 19° do D. L. 522/85 de 31 de Dezembro, que facultam à A. o direito de regresso invocado, conforme Acórdão do STJ, in revista nº 3456-04-2 de 04-11-04.

14) Em suma, "a condução sob influência do álcool" se basta com a alegação e prova de:
- Uma condução com taxa de alcoolémia superior à permitida por lei -0,5 g/l;
- A culpa exclusiva do condutor alcoolizado na produção do acidente.

15) No caso dos autos o Réu conduzia com uma taxa de alcoolemia de 2,86 g/l.

16) Dada a simples configuração da via, só o grau de álcool no sangue, superior ao quíntuplo permitido por lei (2,86 g/l) com que o Réu estava afectado determinou a falta de sensibilidade e reflexos que levaram o Réu a não adequar a velocidade às características do local, e a não conseguir controlar o veículo, numa recta.

17) Como pode então o Tribunal a quo justificar como causa de acidente o excesso de velocidade se o condutor segue com uma TAS QUATRO VEZES superior ao mínimo a partir do qual se perde a noção da velocidade a que se segue?

18) O Réu alegou o rebentamento do pneu da frente do lado esquerdo do veículo HT, o qual teria sido provocado pela quebra da respectiva jante, mas nada provou a esse propósito.

19) Assim, conjugando a taxa de alcoolémia registada com a própria dinâmica do acidente o Tribunal, sempre deveria à luz das regras da experiência concluir sobre a existência de nexo de causalidade (cf. por todos Ac. Relação do Porto de 16/12/96, Proc. 250/95 in www.dgsi.pt).

20) Em todo o caso, utilizando as presunções que o art. 349°, 350° ou 351° do Cod. Civil admitem, o Tribunal de Primeira Instância, de uma forma ou de outra, mediante meios lógicos ou mentais, partindo das operações probatórias enunciadas e mediante regras de experiência, sempre teria matéria para deduzir dos factos comprovados, como índice seguro, a influência do álcool na condução do Réu e na dinâmica do acidente.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do presente recurso, que, como é sabido, é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos das disposições combinadas dos artºs 684º, nº3 e 690º, nºs 1e 4 do CPC, cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1.No dia 18 de Junho de 2000, pelas 23 horas e 20 minutos, ocorreu um embate entre o veículo de matrícula ..-..-HT, conduzido por J. e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-OU, conduzido por P. e propriedade de A..


2.O referido embate ocorreu na Estrada Nacional n.º 120, ao quilómetro 0,500, em Alcácer do Sal.

3.O local do embate apresenta a configuração de uma recta com boa visibilidade.

4.No local do embate, a via mede 7,10 metros de largura e tem dois sentidos de marcha separados por um traço contínuo.

5.No momento do embate, o tempo estava bom.

6.O veículo de matrícula ..-..-OU seguia na Estrada Nacional n.º 120 no sentido Grândola/Alcácer do Sal.

7.O veículo de matrícula ..-..-HT seguia na mesma estrada no sentido Alcácer do Sal/Grândola.

8.O embate ocorreu quando o veículo HT ao descrever uma curva para a esquerda atento o sentido de marcha saiu da sua faixa de rodagem...

9....Invadindo a faixa de sentido contrário onde seguia o OU.

10. Ao sair da sua faixa, o veículo OU transpôs o traço contínuo.

11.O embate ocorreu na faixa de rodagem do veículo OU.

12.O embate deu-se entre a frente esquerda do veículo HT e a lateral esquerda do OU.

13.Após o embate ocorreu o rebentamento de um pneu do veículo HT.

14.Após o embate, o condutor do OU imobilizou a sua viatura no local.

15.Após o embate, o Réu regressou à sua faixa e prosseguiu a marcha.

16.A jante do HT deixou uma marca no pavimento após o local do embate.

17. Em consequência do embate, o veículo OU sofreu os estragos descritos a fls. 22 e 23 dos autos.

18.A reparação do veículo OU importou em 1.005.338$00, ou seja, € 5.014,66, tendo a Autora pago a referida quantia em Setembro de 2000.

19.O réu conduzia com uma TAS de 2,86 g/I.

20. Em 18 de Julho de 2003, a autora indemnizou A. no montante de f 5.000 a título da privação do uso do veículo ..-..-OU.

21.O Réu e a Autora celebraram um contrato de seguro para cobertura da responsabilidade civil do veículo ligeiro de passageiros matrícula ..-..-HT titulado pela apólice AU21190884.

Esta factualidade fixada pela 1ª Instância não sofreu impugnação por banda da Apelante, pelo que há-de considerar-se assente.
A sentença recorrida considerou que a ora Apelante não logrou fazer prova, como lhe competia, da factualidade relativa à culpa e ao nexo causal entre o estado de alcoolizado do Réu, ora Apelado, e o acidente, sendo certo de que tal ónus impendia sobre ela, dado que de factos constitutivos do direito invocado se tratava.
Foi com base nesta ausência da prova que considerou improcedente a presente acção.

Começa a Apelante por dizer nas suas conclusões, como vimos, que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado na douta sentença não possui eficácia vinculativa fora do caso concreto a que se reporta.
Falece-lhe, todavia, razão, como passaremos a demonstrar.
É sabido que o instituto dos Assentos, regulado pelo artº 2º do Código Civil, foi expurgado da nossa Ordem Jurídica, de forma gradual, começando a partir das declarações de inconstitucionalidade do referido preceito legal, pelos arestos do Tribunal Constitucional, que culminaram com o Acórdão com força obrigatória geral, de 28 de Maio de 1996 do referido Tribunal, com base no entendimento de que os «assentos se apresentam com carácter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de quaisquer outras normas do sistema, revestidas de carácter imperativo e força obrigatória geral, isto é, não obrigando apenas os tribunais, mas todas as restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão global»
Todavia, naquele mesmo aresto se havia ponderado, a exemplo, aliás, de anteriores posições doutrinárias nesse sentido, designadamente de Marcello Caetano que defendia que «desde que a doutrina estabelecida no assento apenas obrigue os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados àquele que a tenha emitido, e não já os tribunais de outras ordens e a comunidade em geral, deixa de ter força obrigatória geral, o que representa a perda automática do valor que é próprio dos actos legislativos».
O próprio Acórdão do TC a que nos vimos referindo, considerou expressamente que «a norma do artº 2º do Código Civil, entendida como significando que os tribunais podem fixar, por meio de assentos, «doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada», deixará de conflituar com a norma do artº 115º, nº 5 da Constituição».
Foram, assim, os Assentos considerados uma forma de intromissão do Poder Judicial no Legislativo, violadora do disposto no nº5 do artº 115º (actual artº112º) da Constituição da República Portuguesa, e, como tal, foi declarada a inconstitucionalidade do artº 2º do Código Civil, com força obrigatória geral.
Nessa conformidade, o instituto dos assentos desapareceria definitivamente, com o advento do Dec. -Lei 329-A/95 de 12/12, diploma que operou a revisão do Código de Processo Civil, e que através do seu artº 4º, nº2 revogou o falado artº 2º do Código Civil.
Porém, como atrás se fez notar, tanto a jurisprudência do Tribunal Constitucional, como o próprio diploma legal que revogou o artº 2º do C.Civil, não consideram que a Jurisprudência fixada, com carácter obrigatório, pelo STJ, para os tribunais da ordem judiciária comum de que aquele alto Tribunal é a cúpula, inconstitucional, contanto que não vincule os tribunais de outras ordens judiciárias, nem a comunidade jurídica em geral.
Deste modo, o próprio DL 329-A/95 de 12/12 refere no seu preâmbulo que «quebrada pela jurisprudência constitucional a força vinculativa genérica dos assentos e imposto o princípio da sua ampla reversibilidade_ não apenas por iniciativa do próprio Supremo, no âmbito dos recursos perante ele pendentes, mas a requerimento de qualquer das partes, em qualquer estado da causa, pareceu desnecessária a instituição dos necessariamente complexos mecanismos processuais que facultassem a revisão do decidido, por se afigurar que a normal autoridade e força persuasiva de decisão do Supremo Tribunal de Justiça, obtida no julgamento ampliado de revista_ e equivalente, na prática aos actuais acórdãos das secções reunidas, será perfeitamente suficiente para assegurar, em termos satisfatórios, a desejável unidade da jurisprudência, sem produzir o enquistamento ou cristalização das posições tomadas pelo Supremo».
Em nome deste reconhecido desiderato da unificação da jurisprudência, cuja vantagem, por demais conhecida, não cabe aqui salientar, o legislador português gizou um esquema de tal uniformização nos artºs 732º-A e seguintes do CPC (julgamento ampliado da revista).
Surgiu, assim, na nossa ordem jurídica e judiciária, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que, expurgado dos aspectos inconstitucionais dos Assentos, designadamente quanto à sua imposição ou vinculatividade erga omnes e à sua irrevogabilidade pelo órgão emitente, possui força vinculativa na ordem judiciária comum (Tribunais Judiciais) enquanto não ocorrer a sua alteração pelo plenário das secções cíveis do STJ.
Neste sentido, pode ver-se o Acórdão do STJ de 9.03.2000 disponível em http://www.dgsi.pt.

Não se limitam, pois, tais acórdãos, a ter força vinculativa apenas dentro do próprio processo em que foram proferidos (eficácia intraprocessual), como alega a Seguradora Recorrente, pois a doutrina neles fixada mediante o formalismo necessário, pelas secções cíveis do nosso mais alto Tribunal reunidas em plenário, não pode ser afastada pelos tribunais judiciais com fundamento nas razões que serviram de base aos votos de vencido formulados no acórdão uniformizador, como decidiu, v.g., o Ac.da Rel. Coimbra de 2.03.99 (http://come.to//trc.pt).
É que há que distinguir entre a resolução do caso concreto que o acórdão decidiu (esta apenas intraprocessual) e a doutrina uniformizadora por ele fixada, sendo esta vinculativa para os tribunais judiciais.
Por isso, o STJ, no seu Acórdão de 23.01.2001 assim sentenciou:
«Embora os Acórdãos previstos nos artºs 732º-A e 732º-B, sejam obrigatórios apenas nos processos em que foram tirados, constituem precedentes judiciais qualificados, com a autoridade e a força persuasiva que lhes advém do facto de serem decisões do STJ, fruto de um julgamento ampliado de revista, isto é, efectuado pelo plenário das secções cíveis».
Por outras palavras, embora a decisão do caso concreto, pelo Acórdão tirado em revista alargada, seja obrigatória apenas dentro do processo em que foi proferido, como qualquer decisão jurisprudencial, a fixação da doutrina sobre a questão jurisprudencial controvertida, que esteve na base da reunião em sessão plenária das Secções Cíveis do STJ, constitui orientação vinculativa para os tribunais da ordem judiciária comum, isto é, para os Tribunais Judiciais.
É justamente por causa deste carácter geral (vinculativo para todos os tribunais judiciais), que a lei impõe a publicação dos Acórdãos Uniformizadores da Jurisprudência na 1ª Série A do Diário da República (artº 732º-B, nº 4 do CPC), onde figuram, com é sabido, diplomas de carácter geral e abstracto, isto é, normativos, com a dignidade dos diplomas legislativos.
Se assim não fosse, isto é, se constituíssem apenas uma mera referência jurisprudencial, os Acórdãos em apreço seriam apenas publicados nas colectâneas e bases de dados habitualmente disponíveis.
Improcedem, destarte, as conclusões 1ª e 2ª da alegação da recorrente.

Quanto à conclusão 3ª, é exacto que o legislador estabeleceu no artº 19º, al.c) do DL 522/85 que a Seguradora tem direito de regresso contra o condutor que tiver agido sob efeito do álcool, mas tal direito de regresso não opera de forma automática.
Na verdade, houve alguns arestos que chegaram a defender a aquisição automática de tal direito em caso de alcoolémia do condutor, como, v.g. e inter alia, o Ac. Rel. Porto de 1.06.93 assim sumariado:
«A mera circunstância de um condutor, no momento do acidente se encontrar sob a influência do álcool, confere à seguradora o direito de ser reembolsada pela indemnização que pagar, independentemente do nexo causal entre aquele estado e os danos produzidos» (Col.Jur. 1993, 3,223).
Esta orientação jurisprudencial, todavia, viria a sofrer inflexão, no sentido de que não é suficiente que o condutor esteja alcoolizado para, sem mais, conferir à Seguradora o direito de regresso pela indemnização que pagar, tornando-se ainda necessário que se comprove o nexo de causalidade entre tal estado decorrente da ingestão de bebidas alcoólicas e o próprio acidente.
Neste sentido, antes ainda do Acórdão Uniformizador, o Ac. da Relação do Porto de 11.05.95 que sentenciou: «Apesar de o condutor de um automóvel acusar a taxa alcoolémia de 1,10g/l, a seguradora, para exercer contra ele o direito de regresso, tem de alegar o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e os danos decorrentes do acidente verificado (Col. Jur. 1995, 3, 215).
No mesmo sentido, pronunciaram-se a Relação de Coimbra (Ac. de 19.05.98 in BMJ. 477, 576) e o Supremo Tribunal de Justiça que sentenciou: «I.Agir sob a influência do alcóol significa actuar por sua causa, devendo exigir-se a prova de que realmente a actuação do condutor que, culposamente, desencadeou o acidente foi provocada, pelo menos em parte, por aquele estado alcoólico.
II. Para que haja o direito de regresso fundado no Dec. -Lei 522/85 de 31 de Dezembro, é indispensável a prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o acidente por si provocado» (Ac. STJ de 19.06.97 in BMJ.468, 376).
É claro que perante tal oscilação jurisprudencial em matéria tão relevante, impunha-se um critério uniformizador, justamente para evitar os inconvenientes da referida dissonância hermenêutica, determinante de oposição de julgados sobre idêntica situação de facto.
Surgiu, assim, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 6/2002 que fixou a seguinte jurisprudência, com tal carácter vinculativo:
«A alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente».
No douto aresto, em pauta, ponderou-se que o direito de regresso, no Decreto-Lei 522/85 é uma circunstância específica em relação à responsabilidade da seguradora nos acidentes de viação, em geral, por virtude de uma relação conexa com o contrato de seguro, como decidiu o Ac. STJ de 22 de Fevereiro de 2000 (BMJ. 494,325) para os casos aí enunciados e que contratualiza o dever de reembolso da seguradora.

E aquele nosso mais alto Tribunal acrescenta:

«Não é qualquer fundamento de culpa do condutor que leva à existência do direito de regresso, mas só de um dos incluídos no artº 19º do decreto-lei citado. O alcance social do seguro obrigatório, como regime indicado para a protecção dos lesados, estendendo a protecção de uma forma alargada em aproximação de seguro social e fazendo recair sobre as seguradoras boa parte do ónus desse beneficio, tem aqui desvios quanto à assunção da responsabilidade com a criação do direito de regresso a favor das seguradoras.
E porque de direito especial se trata, o direito de regresso tem de ser demonstrado nos termos gerais de direito, uma vez que nenhuma disposição do Decreto-Lei 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral».
Não ocorre, assim, qualquer violação na interpretação da norma efectuada pelo citado acórdão Uniformizador, nem da lei substantiva, nem dos princípios da interpretação da lei, dos contratos, da produção de prova, nem é posta em causa a unidade do sistema jurídico, como pretende a Recorrente na conclusão 2ª da sua alegação.

É certo, como defende a Recorrente, que a definição de "condução sob influência de álcool" há-de encontrar-se no seio do ordenamento jurídico e, não é menos certo que tal definição se encontra plasmada no artº 81º do C.Estrada que no seu nº 2 estatui que considera-se sob influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,50g/l (...).
Tal argumentação da Recorrente, porém, sendo inequivocamente correcta, em nada lhe aproveita, pois a alínea c) do artº 19º do Dec. -Lei 522/85 não se contenta com a simples condução sob o efeito do álcool, mas considera que a seguradora apenas tem direito de regresso, contra o condutor se este "tiver agido sob o efeito do álcool..." o que não constitui expressão sinónima de condução sob efeito de álcool!
Como atrás dissemos, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que agir sob a influência do álcool significa actuar por sua causa na provocação do acidente, devendo exigir-se a prova de que, realmente, a actuação do condutor que, culposamente, desencadeou o acidente, foi provocada, pelo menos em parte, por aquele estado alcoólico (Ac. de 19.06.97 publicado no BMJ 468, 376).
Com efeito, como é sabido, o condutor pode encontrar-se sob efeito de álcool e, todavia, o acidente ser provocado por causa distinta, designadamente por factores físicos (estado do piso, condições atmosféricas, condições do veículo, etc.) ou factores humanos (excesso de velocidade, estado de saúde do condutor, distracção, etc.).
Por outro lado, não corresponde à exactidão que no artº 81º do C.Estrada tenha sido estabelecida qualquer presunção legal juris et de jure de que a partir do limite mínimo de 0,5 g/l o álcool influencia o condutor na sua actividade de condução, afectando a sua capacidade de percepção, a capacidade motora, a destreza de movimentos, a visão e a atenção, muito embora seja correcto que na generalidade das pessoas tal acontece.
Em Direito Penal e no ordenamento jurídico contra-ordenacional, onde se encontra a disposição em apreço, na medida em que sanciona com coima a sua violação, não pode haver presunções legais de culpa, por a tanto obstar a presunção jurídico – constitucional de inocência do arguido, proclamada solenemente no artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa onde se afirma que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Este princípio, de natureza substantiva, não se confunde nem se limita àqueloutro, de índole meramente processual, no campo do direito probatório, conhecido como in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo tem apenas o alcance de, em caso de dúvida razoável sobre o ilícito e/ou a culpa do arguido, este dever ser absolvido, dado que nos Estados de Direito democráticos é sempre preferível absolver-se um culpado, do que condenar-se um inocente.
Daí que tal princípio de índole adjectiva se enuncie também como in dubio reus absolvitur!

O princípio de inocência do arguido, que não é apanágio apenas da nossa Lei Fundamental, pois foi proclamado na França na célebre Déclaration des Droits de l´Homme et du Citoyen e na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, no artº 6º nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, ainda, no artº 14º, nº2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, tem relevantíssimos efeitos substantivos, entre os quais o da proibição de estabelecimento legal de presunções que colidam com tal princípio jurídico-constitucional. [1]
O que se passa é que o legislador, tipificando comportamentos de risco, entendeu, e bem, sancionar a condução sob o efeito de álcool, como contra ordenação se a TAS for igual ou superior a 0,5 g/l e como crime, tipificado no artº 292º do Código Penal (crime de perigo abstracto), desde que superior a 1,2 g/l.
Aos crimes de perigo abstracto (abstrakte Gefährdungsdelikte), como, de resto, a todos os crimes de perigo, inclusive aos crimes de perigo concreto (konkrete Gefährdungsdelikte), interessa apenas o desvalor da conduta e não do resultado, pois são crimes sem resultado típico, isto é, sem evento material como elemento do tipo, não constituindo assim qualquer presunção legal.
Isto não significa que eles não possam ter um resultado material, só que tal resultado não importa para o tipo legal do crime.
Por outras palavras, ou se prova que o agente cometeu a infracção em virtude de apresentar uma TAS legalmente proibida e o mesmo é condenado se se verificarem os restantes pressupostos de punição, ou não se prova e o agente é absolvido. Nada se presume!
O que a Recorrente denomina de presunção é, se bem interpretamos o seu pensamento, a consideração da experiência comum que o legislador tem em atenção, ao criminalizar determinadas condutas, proibindo os comportamentos de risco ou perigo.
Porém, tal consideração não se traduz numa presunção de resultado, mas numa medida de antecipação de possíveis resultados nocivos (que eventualmente possam acontecer) e que, por isso, importa prever na óptica da política criminal.
Não tem, destarte, qualquer razão a Recorrente, ressalvado sempre o devido respeito, quando na conclusão 11ª afirma que se não é admissível ao condutor contestar a condução sob influência do álcool quando surpreendido (mesmo após contraprova) com uma taxa de alcoolémia de 0,5 g/l ou de 1,2 do ponto de vista do ilícito contraordenacional ou criminal, porque fazê-lo em sede de direito de regresso?
Ao agente de um ilícito contraordenacional ou criminal são assegurados todos os meios de defesa (artº 32º, nº1 da Constituição que proclama que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso) e, portanto o arguido pode contestar a acusação se dispuser de meios de prova para tanto.

Só que, como acima ficou referido, não tem o arguido que contestar os efeitos da condução sob a influência do álcool, pois o seu delito ou ilícito de mera ordenação social, dizem respeito à condução em estado de alcoolizado e não aos feitos ou eventos daí advenientes.
É tal infracção formal que lhe é imputada e não o resultado danoso, embora a presença deste possa ter influência no quantum punitivo.
Trata-se de infracções formais que se consumam pelo próprio preenchimento da actividade típica proibida (crimes de mera actividade ou de omissão pura) e não dependem dos efeitos materiais ou resultados (crimes de resultado ou comissivos por acção ou omissão).
Quer isto significar que o simples facto de o condutor dirigir em estado de alcoolémia é punível, independentemente dos efeitos materiais ou sociais que isso pode provocar.
Já assim não acontece no que tange ao direito de regresso, em que há que ter em atenção o resultado danoso e o nexo de causalidade adequada entre o estado do condutor etilizado e o acidente produtor de tal resultado.
No caso em apreço, a Seguradora Apelante não logrou fazer prova da causalidade entre o estado de alcoolémia do Apelado e o acidente dos autos, como lhe competia, por se tratar de facto constitutivo do seu invocado direito de regresso.

Não assiste razão, pois, à Seguradora recorrente, nas restantes conclusões da alegação, que se conexionam com todo o exposto, quando tenta demonstrar o infundado da decisão recorrida, o que vale dizer que improcede a presente Apelação.

DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente Apelação e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante em ambas as instâncias.


Processado e revisto pelo Relator.


Évora, 25 de Maio de 2005




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[1] Sobre esta matéria, cf. o bem elaborado trabalho de Helena Magalhães Bolina, «Razão de Ser, Significado e Consequências do Princípio da Presunção de Inocência (artº 32º,nº 2 da CRP) publicado no Boletim da faculdade de Direito de Coimbra, 70 (1994), 433-461.