Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
917/13.2TDEVR.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: FURTO QUALIFICADO
INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO
ESTABELECIMENTO INDUSTRIAL
Data do Acordão: 12/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Para ocorrer a circunstância qualificativa do furto prevista no artigo 204º, nº 1, al. f), do Código Penal (“introduzindo-se …”), é necessário que o agente tenha entrado no local com todo o corpo.
II - Se o agente apenas meteu a mão, ou mesmo todo o braço (ou ambos os braços), para dentro de um estabelecimento ou de um espaço fechado, e, dessa maneira, conseguiu apoderar-se de coisa que não lhe pertencia, não está a cometer um crime de furto qualificado.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I


1 – Nos autos de processo comum em referência o arguido, NAS, foi acusado pelo Ministério Público da prática de factos consubstanciadores da autoria material, na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 203.º e 204.º n.º 2 alínea e), do Código Penal (CP).

2 – O arguido não apresentou contestação.

3 – Precedendo audiência de julgamento, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, por sentença de 27 de Novembro de 2014, decidiu nos seguintes termos:

«A) Absolver o arguido NAS da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203.º e 204.º, nº 2, al. e) do Código Penal;

B) Condenar o arguido NAS pela prática, como autor material, de um crime de furto qualificado, p. e p. nos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, al. f) do Código Penal, especialmente atenuada, nos termos do artigo 206.º, n.º 2, por referência ao artigo 73.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de cento e oitenta dias de multa à taxa diária de cinco euros, o que perfaz o montante global de € 900,00 (novecentos euros)».

4 – O arguido interpôs recurso da sentença.

Pretende ver-se absolvido.

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«Artigo 1°.

Não chegou a ser apurado oficiosamente o valor concreto do material furtado, tendo em vista a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa (nº 1 do artº 340°. do C.P.P.).

Artigo 2°.

A douta sentença apenas se baseou na testemunha SGG, tenda esta declarado no essencial o seguinte:

- ao minuto 4,59 - não estou dentro deste assunto (referindo-se ao valor), o cobre também varia o preço, hoje está um preço amanhã está outro, 1.000,00, um valor um bocado à ...

no período 12,09 a 12,57 - afirma que foi apenas um palpite e entrando em contradição afirma que normalmente não varia muito o preço do cobre e refere que o preço está entre 3,00 € e 3,50 € o kg de cobre e que cada rolo deveria ter para ai uns 20 kg mais ou menos (repete a expressão mais ou menos).

Artigo 3º.

O apuramento do valor concreto deveria ter sido efectuado por um perito, que descrevesseos objetos furtados, com as medidas exatas, o peso, o diâmetro, os metros e o seu valor à data da prática dos factos, indispensável para se poder proceder ao correto enquadramento jurídico penal da conduta do arguido, verifica-se assim o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artº, 410°. nº, 2 alínea a) do C.P.P. - neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra, de 7 de novembro de 2012, foi Relator o Sr Juíz Desembargador Luís Coimbra (disponível em www.dgsi.pt).Também no mesmo sentido da exigência da realização de exame com avaliação, ser uma necessidade que não pode ser substituída por "declarações" da ofendida, entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21 de outubro de 2014, em que foi Relator o Sr. Juiz Desembargador João Gomes de Sousa e "A prova pericial não é facultativa, mas obrigatória como resulta do artº 151° do CPP" - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25 de fevereiro de 2008, em que foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Cruz Bucho (ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Artigo 4°.

Para o arguido o valor económico do material furtado seria entre 15,00 a 20,00 €, gravação no período 5,24 minutos a 5,40 minutos e a intenção que tinha era ti vender para dar de comer aos meus filhos",

A douta sentença omitiu o valor do material furtado para o arguido. É necessário ter em atenção para que se verifique furto qualificado, impõe-se tenha o agente “ao menos uma representação e um querer que abarque os diversos elementos do tipo, neste caso, uma representação e um querer que abarque os diversos elementos das circunstâncias-elementos”. Pode ajustar-se a doutrina de Taipa de Carvalho, inspirado em Figueiredo Dias: “… é necessário e suficiente que ele (agente) possua o conhecimento indispensável para que a sua conduta ético-jurídica levante e, assim, possa resolver corretamente, o problema da ilicitude do seu comportamento”. (Direito Penal, II, 128) - extraído da nota 28, pg. 590 do Código Penal anotado e comentado de Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2ª Edição, Editora Quid Juris, 2014.

As condições pessoais do arguido (não sabe ler, nem escrever, sem habilitações literárias) - ponto 1.12 factos provados, (sobre)vive com 131,00 € mensais, com um agregado familiar de 8 pessoas - pontos 1.9 e 1.10 factos provados, que atribui ao material furtado a importância entre 15,00 a 20,00 € e que seria para dar de comer aos filhos, originará necessariamente o funcionamento do nº 4 do artº 204 do C.P. ou seja um contra-tipo ( Prof. Faria Costa), admite inclusivamente que “se está perante uma pura e simples circunstância privilegiadora de aplicação automática e obrigatória”.

Artigo 5°.

Consta na página 3 da douta sentença, ponto 1.9 - "O arguido é de etnia cigana... "

O arguido (no início da douta sentença) já tinha sido identificado, nos termos do art° 374° nº 1 alínea a) do CPP com nome, filiação, naturalidade, data de nascimento, estado civil, bilhete de identidade e residência, consideramos que a expressão utilizada é desnecessária e claramente discriminatória, uma vez que viola o nº 2 do artº 13° da CRP, nestas circunstâncias a expressão utilizada deve ser eliminada e passando a constar apenas que:

1.9 – “O arguido, reside com a sua companheira e seis filhos de 19,15,12,8,6 e 3 anos de idade, respetivamente”.

Artigo 6°.

O arguido foi acusado pela prática do crime p. e p. pelo art° 204° nº 1 alínea f), tendo o tribunal "a quo" apesar de ter mencionado e ser jurisprudência obrigatória, não aplicou o Assento nº 7/2000 do S.T.J. publicado no "Diário da República I-A de 7 de março de 2000.

Na realidade e como é reconhecido pela douta sentença, a doutrina e a jurisprudência têm sustentado que o que carateriza e justifica esta agravante qualificativa do furto não é o facto do agente se introduzir num espaço fechado, mas sim a circunstância do espaço fechado estar conexionado com a habitação ou com o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que para este efeito, incluem espaços fechados limítrofes, anexos ou a ele agregados.

Nestas condições, o espaço de construção de um edifício (estaleiro de obra), ainda que vedado, nenhuma conexão tem com as realidades subjacentes aos conceitos de habitação e de estabelecimento comercial ou industrial e seus espaços dependentes ¬ pelo que não se configura a previsão da alínea f) do nº 1 do artº 204°. do Código Penal. Nesse sentido Assento nº 7/2000, (quando afirma "( ... ) a expressão "espaço fechado" a que se reporta a alínea f) do nº 1 do art", 204° deste diploma e a alínea e) do nº 2 do mesmo normativo não poderá deixar de ser compreendida com o significado restrito de lugar dependente de casa) ": Ac. S.T.J. de 15-06-2000, proc. 00P182, in www.dgsi.pt; Ac S.T.J. de 1-6-2005, proc. 2263/04 - 3a. Secção, Antunes Grancho (relator), in www.stj.pt; Ac. S.T.J. de 23-02-2005, in CJ-ST J, I, pg. 207; Ac Rel. Coimbra de 14-05¬2008 e Ac. Rel. Guimarães de 22-02-2010, ambos in www.dgsi.pt.

Extraído do Acórdão da Relação do Porto de 16 de maio de 2012, em que foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Artur Oliveira, que fixou o seguinte sumário (disponível em www.dgsi.pt) :

“Para o efeito da alínea f) do nº 1 do artº. 204°, do Código Penal o "espaço fechado" tem de ser um espaço físico conexionado com a habitação ou o estabelecimento comercial ou industrial”

Artigo 7°.

Não restam dúvidas que a alínea f) do nº 1 do art°. 204° do C.P. (pela qual o arguido foi condenado) exige a introdução ilegítima em habitação ou nos outros espaços descritos na circunstância-elemento. São bem elucidativas as palavras do Sr. Prof. Faria Costa:

“Temos para nós que a introdução aqui contemplada não pode deixar de ser aquela em que se verifique a passagem de todo o corpo para dentro dos espaços aqui definidos. De sorte que se o agente meteu a mão ou mesmo todo o braço para dentro de um estabelecimento comercial e, dessa maneira, conseguiu apoderar-se de coisa que não lhe pertencia não está a cometer um furto qualificado (no mesmo sentido a jurisprudência mais significativa, CJ XVI-5 17; MEDIECO, Codice Penale Commentato, Parte Speciale (a cura de Dolcini / Marinucci) 1999 3355).

- Extraído da página 67, anotação ao art. 204°. da autoria do Prof. José de Faria Costa, in " Comentário Conimbricense do Código Penal " , Parte Especial, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999.

Artigo 8°.

A única diferença, relativamente aos autos, é que o arguido está acusado de furto em estaleiro (ainda com menor proteção do direito penal) uma vez que este não é necessariamente um estabelecimento comercial, nem industrial, como se pretende fazer crer na douta sentença, quando se afirma na página 13 que "constitui parte de um estabelecimento industrial, ultrapassando um obstáculo constituído por uma vedação em rede aproveitando-se da mesma já se encontrar cortada e por isso danificada".

Por outro lado o arguido não ultrapassou qualquer obstáculo, apenas introduziu os seus braços, aproveitando a situação da vedação já se encontrar parcialmente tombada, com de resto resultou provado no ponto 1.2 da douta sentença.

Nestas condições e uma vez que o arguido não introduziu todo o seu corpo, no estaleiro, não pode, como de resto é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência ser punido pelo art°. 204° nº 1 alínea f).

Artigo 9°.

O tribunal "a quo" em vez de aplicar a justiça ao caso concreto, limitou-se a efetuar uma "cópia", nomeadamente no que concerne às "5 notas" e aos 2 parágrafos anteriores, nela referenciados e que correspondem ipsis verbis, às que já constam e em igual número (5) no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7 de novembro de 2012, em que foi Relator o Sr. Juíz Desembargador Joaquim Gomes, apesar de não ter inserido qualquer indicação do referido Acórdão.

Artigo 10°.

Mas a "cópia" efetuada também não combina, nem com o local da prática dos factos, nem com o modus operandi da sua prática.

Na realidade, nos autos agora em recurso, a prática dos factos foi num "estaleiro" e a céu aberto, ao passo que na situação do Acórdão da Relação do Porto, de 7 de novembro de 2012 (que foi copiado, sem indicação de origem) tratava-se de um "estabelecimento industrial" e os arguidos foram punidos por introdução no referido estabelecimento, tendo acedido a uma "instalação fabril".

Artigo 11°.

A justiça do caso concreto implicará naturalmente a absolvição do arguido, na realidade tentar incluir um furto efetuado num estaleiro e a céu aberto, da forma já anteriormente descrita e que se encontra provada, na previsão legal do art°. 204° nº 1 alínea f), e até mesmo contra jurisprudência obrigatória, salvo o devido respeito e melhor opinião, parece-nos uma analogia incriminadora ou de uma extensão interpretativa inaceitáveis (como de resto é reconhecido na douta sentença e citando a referência na pg. 12 " ... ainda que inexplicavelmente esta última referência não se encontre expressamente no descritivo dos crimes de furto qualificado").

Artigo 12°,

Na realidade o procedimento criminal pelo crime de furto depende de queixa.

Nem a VSS (proprietária do material furtado) nem o proprietário do terreno (que até se desconhece a sua identidade, conforme depoimento do Sr. SGG) onde se encontra instalado o estaleiro apresentaram qualquer queixa.

Acresce que o Grupo VSS conforme Certidão do teor da matrícula e de todas as inscrições em vigor, emitida pela Conservatória do Registo Comercial de Beja, em 23 de dezembro de 2014, resulta que a empresa só se obriga pela assinatura do Presidente ou pela assinatura conjunta de 2 administradores (pg. 2/45) - doc. 1 (já consta nos autos).

Nestas condições, o Ministério Público não tem qualquer legitimidade para desenvolver de forma isolada a ação penal, (artº. 49°. nº. 1 C.P.P.) por consequência verifica-se a ilegitimidade do Ministério Público e a consequência, em termos legais, será necessariamente a

ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO.

Artigo 13°.

Normas jurídicas violadas:

- Assento do STJ nº 7/2000, publicado no "Diário da República" I-A, de 7 de março

- Constituição da República Portuguesa: nº 2 do art° 13°

- Código Penal nº 1 do artº 115°, n° 3 do art° 203°, nº 1 do artº. 203°, nº 1 alínea f) do artº 204°, nº 4 do artº. 204°.

- Código Processo Penal nº 1 do artº 49°, art° 151°, art° 171°, nº 1 do artº, 340° nº 2 alínea a) do art° 410°.»

5 – O recurso foi admitido, por despacho de 16 de Fevereiro de 2015.

6 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso.

Defende a confirmação do julgado.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«1 - O arguido NAS foi condenado pela prática, como autor material, na forma consumada, de 1 (um) crime de Furto Qualificado, p. e p. pelos arts, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. f) do Cód. Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco) euros, perfazendo o total de € 900,00 (novecentos euros), que foi especialmente atenuada nos termos do art. 206º, n." 2 do Cód. Penal por referência ao seu art. 73º, n,º 1.

2 - Inconformado, o arguido recorreu de facto e de direito, alegando não ter sido feita prova sobre o valor concreto do material furtado. Por outro lado, entende que o estaleiro da obra onde ilegitimamente se introduziu não integra o conceito de espaço fechado previsto no art. 204º, n.º 1, al. f) do Cód, Penal, razão pela qual a sua conduta só se poderia subsumir à previsão do art. 203º, n.º 1 do Cód. Penal, onde está tipificado o crime de Furto Simples, que depende de queixa. Como não foi exercido o direito de queixa pelos titulares, o Ministério Público carecia de legitimidade para exercer a acção penal, circunstância que impunha a sua absolvição.

3 - Como questão prévia suscitou-se a inobservância do comando ínsito no art. 412º, n.º 1 do Cód. Proc, Penal por parte do recorrente, quando formulou 13 (treze) conclusões escusadamente extensas, confusas e prolixas.

4 - Ainda que o recurso não possa ser rejeitado com fundamento na falta de concisão das conclusões, o recorrente deverá ser convidado a aperfeiçoá-las (art. 417º, n. º 3 do Cód. Proc. Penal) de molde a observar o comando ínsito no art, 412º, n.º 1 do Cód, Proc. Penal.

5 - Embora se trate aparentemente de um recurso efectivo da matéria de facto fixada, aquilo que o recorrente concretiza mais não é que a sua impugnação, por via de um vício de texto da sentença - insuficiência da matéria de facto para a decisão -, da convicção do próprio julgador, querendo substitui-la pela sua de uma forma que não é susceptível de ser sindicada em sede de recurso.

6 - Dentro do objecto do recurso assim definido, resulta logo do mero confronto das razões do recurso com a decisão da matéria de facto, que este não poderá proceder na parte em que milita a favor da insuficiência da matéria de facto para a decisão, logo visível do confronto das razões do recurso com a decisão da matéria de facto na sentença, repete-se e, independentemente, de um acesso à prova gravada.

7 - Estamos diante de uma situação em que não se exige uma prova concreta sobre o valor dos bens subtraídos, porque faz parte da normalidade da vida, do senso comum e das regras da experiência, que os mesmos, pelas suas características, natureza e fim a que se destinam, têm um valor económico que, por parco que seja, facilmente ultrapassa o valor de € 102,00 (cento e dois euros) previsto no art. 204º, n.º 4, do Cód. Penal.

8 - Quanto à impugnação do facto assente sob o n.º 1.9), apenas no segmento em que se considerou provado que o arguido é de etnia cigana, não reconhecemos que o recorrente tenha razão, na medida em que a referência à etnia a que pertence não tem, neste contexto factual, qualquer propósito discriminatório ou ofensivo, mas apenas o de definir um elemento da sua identidade, tanto mais que essa referência é imediatamente seguida de uma outra reportada aos elementos que compõem o seu agregado familiar.

9 - Se ficou demonstrado que o arguido, junto à vedação que delimita o estaleiro da empresa "VSS", em Beja, e numa parte em que a mesma estava tombada, introduziu os braços, retirando do interior desse espaço 4 (quatro) rolos de cabo de traçado aéreo com condutores em cobre, dúvidas não temos de que estes factos só podem ser subsumidos ao art. 204,º, n.º 1, al. f) do Cód. Penal.»

7 – Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, louvada na resposta, é de parecer que o recurso não merece provimento.

8 – O objecto do recurso, tendo por referência o teor das conclusões da minuta recursiva, reporta ao exame das questões relativas a saber (i) se a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tal como prevenido no artigo 410.º n.º 2 alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), no ponto em que estabeleceu o valor dos bens subtraídos com base no depoimento de uma testemunha, (ii) se o Mm.º Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de jure, na interpretação do disposto no artigo 204.º n.º 1 alínea f), do CP, do passo que considerou que o arguido se introduziu (e) em espaço fechado, e (iii) se a referência (em 1.9 da sentença) à «etnia cigana» do arguido deve ser eliminada por constituir discriminação proibida pelo n.º 2 do artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).


II

9 – A Ex.ma respondente suscita, em questão prévia, a questão da falta de concisão das conclusões da motivação recursiva, figurando que o recorrente deveria ser convidado a dar cumprimento ao disposto no artigo 412.º n.os 1 e 2, do CPP.

10 – Sem qualquer desdouro para a sensibilidade da Ex.ma Magistrada respondente, afigura-se que o sentido de síntese exigido pelo citado segmento normativo deve ser reportado à conformação do objecto do recurso e que, no caso, passando a evitável prolixidade das conclusões da motivação, o objecto do recurso se encontra suficientemente esclarecido, por isso que se não vê utilidade no pretextado convite ao recorrente para aperfeiçoamento das conclusões da motivação recursiva.

11 – Em 1.ª instância julgou-se a matéria de facto nos seguintes termos:

«A- Os factos.

1- Com interesse para a causa resultaram provados os seguintes factos:

1.1. De madrugada, em hora não concretamente apurada, entre os dias 8 e 9 de Novembro de 2013, NAS, ora arguido, fazendo-se transportar no veículo de matrícula (....), dirigiu-se ao Estaleiro da empresa "VSS", em Beja, com o intuito de se apoderar dos objectos com valor económico que ali viesse a encontrar.

1.2. Aí chegado, o arguido, junto à vedação que delimita o referido estaleiro e numa parte em que esta se encontrava parcialmente tombada, mas pelo menos ao nível da cintura daquele, introduziu os seus braços, retirando do interior daquele espaço 4 (quatro) rolos de cabo de traçado aéreo com condutores em cobre.

1.3. Após ter recolhido os referidos rolos de cabo, o arguido transportou-os para o interior do veículo de matrícula (….).

1.4. Os objectos referidos em 1.2. e 1.3. possuem valor não concretamente apurado mas superiores a uma unidade de conta (€ 102,00).

1.5. De seguida, o arguido abandonou o local no supra referido veículo, levando consigo tais objectos, fazendo-os, desta forma, coisa sua.

1.6. O arguido actuou da forma supra descrita, com o propósito de se introduzir abusivamente nas instalações da "VSS", bem sabendo que os objectos supra referidos não lhe pertenciam, que nessa conformidade agia contra a vontade da sua legítima proprietária e ainda com intenção de fazer os ditos objectos coisas suas, conforme efectivamente fez, com o objectivo de proceder posteriormente à respectiva venda e obter os proventos daí decorrentes.

1.7. Agiu, assim, o arguido, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

1.8. Os objectos mencionados em 1.2. e 1.3. foram restituídos à "Vísabeira".

1.9. O arguido é de etnia cigana, residindo com a sua companheira e seis filhos de 19, 15, 12, 8, 6 e 3 anos de idade, respectivamente.

1.10. Recebe a quantia de 131,00 euros, por mês, a título de abono familiar dos seus filhos menores.

1.11. Não é beneficiário de Rendimento Social de Inserção.

1.12. Não tem habilitações literárias, não sabendo ler, nem escrever.

1.13. Efectua, com a sua família, alguns trabalhos pontuais, sazonais, no sector agrícola, designadamente na apanha da azeitona.

1.14. Do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:

- um ano e seis meses de prisão. suspensa por igual período pela prática em 15/10/2005 de crime de roubo cuja sentença transitou em julgado no dia 22/01/2007 declarada extinta em 9/6/2009 - Processo n.º 50s/05.7PBBJA;

- 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa pela prática, em 9/11/2013, dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e condução sem habilitação legal, cuja sentença transitou em julgado no dia 28/02/2014 - Processo n,º 126/13.0GTBJA

1.15. Admitiu os factos descritos em 1.1, 1.2, 1.5 e 1.6 e denotou arrependimento.

2. Com interesse para a causa não resultou provada a seguinte factualidade:

2.1. Os quatro rolos de cobre mencionados em 1.2. e 1.3. tinham o valor total aproximado de € 1.000,00.

2.2. O arguido, de forma não concretamente apurada, cortou parte da vedação em rede metálica que circunda as instalações do referido estaleiro, aí fazendo um buraco, por forma a aceder ao seu interior.

3. Fundamentação da matéria de facto:

A fundamentação da matéria de facto, por parte do tribunal consiste na "exposição quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal exigida pelo art. 374.º, n. 2, do CPP,

Assim, a convicção do tribunal sobre a matéria de facto provada resultou da conjugação das regras de experiência com as declarações/depoimentos prestados em audiência e documentos juntos aos autos.

Concretizando:

O arguido NAS: prestou declarações de forma espontânea e directa, contribuindo para a descoberta da verdade, tanto que os factos provados acabam por corresponder, quase na íntegra, àquilo que declarou, já que não foi produzida outra prova que contrariasse tal versão.

Assim, importa apenas concretizar alguns aspectos.

O arguido explicou que na noite/madrugada do dia 8 para 9 de Novembro de 2013, após ter ingerido uma considerável quantidade de bebidas alcoólicas dirigiu-se aos estaleiros da "VSS" por saber que se tratava de local onde eram guardados rolos de cobre que pretendia dali retirar com o propósito de posteriormente proceder à sua venda. Descreveu que junto à vedação em rede que delimita os estaleiros em causa estariam cinco rolos de cabo de cobre, já devidamente atados e, por a vedação se encontrar parcialmente tombada (mas ainda assim a uma altura pelo menos correspondente ao nível da sua cintura) debruçou-se sobre aquela, esticou as mãos, transpondo-as para o interior, donde veio a retirar quatro dos cincos rolos que ali se encontravam, carregando-os para a sua viatura, tendo abandonado o quinto por naquela não ter espaço disponível para o transportar.

Mais referiu que após ter saído do local veio a ser interceptado pela Guarda Nacional Republicana que, para além de ter detectado o estado de embriaguez em que se encontrava e a ausência de habilitação legal para o exercício da condução (factos que motivaram a sua condenação no âmbito do Processo n.º 126/13.0GTBJA), se apercebeu da carga que era transportada, tendo procedido à sua apreensão.

Ora, a versão que o arguido produziu em julgamento não se mostrou infirmada por qualquer outro elemento probatório, quer testemunhal, quer documental, sendo de salientar que não lhe foi apreendido qualquer objecto apto a proceder ao corte da vedação em rede (não se afigurando que a faca de ponta e mola apreendida a fls. 8, seja instrumento que lograsse tal propósito), nem obtido qualquer vestígio que permitisse concluir que a forma de introdução nos estaleiros da "VSS" tenha sido diversa daquela que sustentou.

No que tange ao testemunho de FTT, militar da GNR, este pouco relevo assumiu, por a sua acção se ter limitado à fiscalização do arguido enquanto condutor, com detecção dos rolos de cobre que transportava (e que a testemunha referiu que o arguido, quando perguntado pela sua proveniência, de imediato identificou que os teria retirado dos estaleiros da "VSS", adoptando uma postura colaborante).

Todavia, a testemunha em causa, não se deslocou ao estaleiro em causa, nem realizou qualquer outra diligência investigatória, pelo que, de igual modo, não abalou a credibilidade do relato feito pelo arguido.

A testemunha SGG, encarregado de telecomunicações, referiu que cada um dos rolos de cabo de cobre retirados teria o peso aproximado de 20 kg, tendo conhecimento que o valor corrente de mercado cifrar-se-á entre os 3,00 e os 3,50 euros por quilo, pelo que com base no declarado, foi possível concluir que aqueles, ao terem um peso global de 80kg, apresentariam, pelo menos, um valor não inferior a 102,00 euros. Esta testemunha descreveu que, após o sucedido, foram restituídos os quatro rolos de cobre, que carregou, tendo ido confirmar o estado da vedação, onde detectaram um sector parcialmente tombado e outro em que existia um buraco, não tendo logrado identificar, todavia, se tal teria ocorrido na noite em causa ou se anteriormente, porquanto reconheceu que se tratava de uma zona de rara passagem e controle por parte dos funcionários.

Considerou-se ainda o auto de apreensão de fls. 8, o auto de exame directo e avaliação de fls. 9 (não tendo, contudo, sido dada relevância ao valor arbitrado, em função do que a testemunha SGG veio a referir em sede de audiência julgamento quanto ao valor de mercado dos cabos de cobre), o auto de reconhecimento de objectos de fls. 10, a guia de entrega de fls. 11, bem como os fotogramas de fls. 37 a 52.

Mais foi tido em consideração o CRC de fls. 100 e sgs. e as declarações do arguido quanto à sua condição sócio económica.

Quanto à intenção do arguido, ou seja, o dolo, está demonstrado pelos factos objectivos que resultaram provados.

É que "Como é consabido, os factos que integram o elemento subjectivo, «os acontecimentos do foro interno» não são provados, por via de regra, por prova directa."

Na normalidade das situações, o Tribunal, adquire esta prova de factos materiais e objectivos, por inferência tendo em atenção as regras da experiência comum. Segundo um processo lógico e racional".

Assim, a intenção daquele arguido - dolosa - retira-se com facilidade dos elementos objectivos apurados respeitantes aos actos praticados, sendo que o modo de actuação demonstra o carácter desejado da conduta.»

12 – Quanto à questão, suscitada pelo recorrente, da referência (§ 1.9, da sentença revidenda) ao facto de o arguido ser de «etnia cigana», tomando por referência o disposto, seja no invocado artigo 13.º n.º 2, da CRP, seja também no artigo 26.º n.º 1, da mesma Lei Fundamental, admitindo embora, com a Ex.ma respondente, no concreto caso em presença, que dessa referência não terá resultado qualquer efectiva discriminação do arguido (sendo que o princípio da igualdade não opera diacronicamente mas em contexto), também há-de conceder-se que se não vê (na etnia do arguido) um particularismo suficientemente distinto e relevante que justifique aquela concreta referência.

13 – Sem embargo, cabe prevenir a discriminação que possa resultar, mesmo subjectivamente, da falada referência à etnia do arguido, do passo que deve ter-se por discriminatório qualquer tratamento ou categorização quando, como no caso, se não encontra justificação objectiva para a discriminação – veja-se, em abono, Ireneu Cabral Barreto, em «A Convenção Europeia dos Direitos do Homem», Coimbra Editora, 2010, pp. 307 e segs, em anotação do artigo 14.º, da Convenção, epigrafado de proibição da discriminação.

14 – Como assim, seja por aplicação directa dos falados preceitos constitucionais e convencionais, seja mesmo por referência ao disposto no artigo 431.º, do CPP, a referida expressão deve ser suprimida dos autos, passando a constar do § 1.9 do rol de factos julgados provados na instância, tão-apenas que «O arguido reside com a sua companheira e tem seis filhos de 19, 15, 12, 8, 6 e 3 anos de idade, respectivamente.»

15 – O recorrente defende que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tal como prevenido no artigo 410.º n.º 2 alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), no ponto em que estabeleceu o valor dos bens subtraídos com base no depoimento de uma testemunha, sem a devida investigação do valor dos bens em referência.

16 – A tanto opõe a Ex.ma respondente que, no caso, se não exigia uma prova concreta sobre o valor e que resulta da normalidade que os bens em referência não são de valor diminuto, vale dizer, de valor inferior a € 102,00, nos termos e para os efeitos prevenidos nos artigos 204.º n.º 4 e 202.º alínea c), do CP.

17 – A doutrina tem afirmado, com incontornável reiteração, que o valor patrimonial do bem subtraído configura, no crime de furto, um elemento implícito do tipo (cfr., em abono, o acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01/18/2011 (processo n.º 950/08.6PBOER.L1-5), disponível, como os mais citandos, em www.dgsi.pt.

18 – No caso, como decorre do texto da decisão revidenda, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, no particular do valor dos bens subtraídos, não se limitou a reportar o deciso ao depoimento, em audiência, da testemunha SGG, antes referenciando tal depoimento em conjunto com os elementos probatórios decorrentes do «auto de apreensão de fls. 8, o auto de exame directo e avaliação de fls. 9 (não tendo, contudo, sido dada relevância ao valor arbitrado, em função do que a testemunha SGG veio a referir em sede de audiência julgamento quanto ao valor de mercado dos cabos de cobre), o auto de reconhecimento de objectos de fls. 10, a guia de entrega de fls. 11, bem como os fotogramas de fls. 37 a 52», por isso que se não vê que, para concretização do valor dos bens subtraídos, a lei impusesse um renovado exame (artigo 171.º, do CPP) ou perícia (artigo 151.º, do CPP), mesmo uma sobre indagação (designadamente por via do disposto no n.º 1 do artigo 340.º, do CPP), ou qualquer outro, adjuvante, elemento probatório, na aferição do valor dos referidos bens.

19 – Daí que se entenda que se não verifica o pretextado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tal como prevenido no artigo 410.º n.º 2 alínea a), do CPP – e assim, sem quebra de respeito (nem de consonância) relativamente à jurisprudência levada, neste particular, nos acórdãos, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02/25/2008 (processo n.º 1739/07), e, deste Tribunal da Relação de Évora, de 10/21/2014 (processo n.º 29/13.9GDCTX.E1).

20 – Ademais, mesmo ex officio e muito em síntese (ressalvando-se a generalização), não pode deixar de reconhecer-se que, do texto e na economia da decisão revidenda, não se verifica qualquer dos vícios prevenidos no citado artigo 410.º n.º 2, do CPP – com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

21 – O arguido recorrente defende que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º, do CP, do passo em que «o arguido não ultrapassou qualquer obstáculo, apenas introduziu os seus braços, aproveitando a situação da vedação já se encontrar parcialmente tombada».

22 – Neste segmento, a Ex.ma respondente limita-se a remeter para a fundamentação da sentença recorrida e a asseverar que os factos apurados «só podem ser subsumidos ao artigo 204.º n.º 1 alínea f), do CP».

23 – O Mm.º Juiz do Tribunal a quo julgou provado:

«1.2. Aí chegado, o arguido, junto à vedação que delimita o referido estaleiro e numa parte em que esta se encontrava parcialmente tombada, mas pelo menos ao nível da cintura daquele, introduziu os seus braços, retirando do interior daquele espaço 4 (quatro) rolos de cabo de traçado aéreo com condutores em cobre.»

24 – E ponderou, em sede subsuntiva:

«Pratica um crime de furto qualificado por introdução ilegítima da previsão do artigo 204.º, n.º 1, al. f) aquele que aceda a um estaleiro, que constitui parte de um estabelecimento industrial, ultrapassando um obstáculo constituído por uma vedação em rede, aproveitando-se da circunstância da mesma já se encontrar cortada e por isso danificada.»

25 – O artigo 204.º n.º 1 alínea f), do CP (epigrafado de furto qualificado) reporta-se à subtracção de coisa móvel alheia com introdução em espaço fechado.

26 – Como ensina o Professor José de Faria Costa (no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo II, pág. 67):

«Temos para nós que a introdução aqui contemplada não pode deixar de ser aquela em que se verifique a passagem de todo o corpo para dentro dos espaços aqui definidos. De sorte que se o agente meteu a mão ou mesmo todo o braço para dentro de um estabelecimento comercial e, dessa maneira, conseguiu apoderar-se de coisa que lhe não pertencia, não está a cometer um furto qualificado».

27 – Em consonância, defendia já José António Barreiros (em «Crimes contra o Património», Universidade Lusíada, 1996, pp. 60/61):

«O que seja penetração ou introdução pelo agente no espaço em causa pode dar origem a dúvidas de interpretação, mas seguramente haverá de considerar-se como tal a entrada de todo o corpo do agente no local».

28 – Ambos os AA citam, em abono, o acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1991 (Boletim do Ministério da Justiça n.º 412, pp. 149 e ss. e Colectânea de Jurisprudência XVI-5-17), no sentido, designadamente de que:

«[…] necessário é que o agente entre de corpo inteiro (e não com simples entrada parcial) nos locais aí referidos, já que é o arrojo que o arguido revela, entrando nesses lugares, que a lei quer resguardar e a perigosidade que representa essa entrada que se pretende estigmatizar com a agravação das penas».

29 – Tal doutrina, pelas razões que ressalta, não pode deixar de merecer adesão e sufrágio [diga-se que em parcial comutação de quanto o aqui relator decidiu e subscreveu, em idêntica qualidade, no acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 4 de Setembro de 2003, processo n.º 0000773, ainda que reportado ao disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º, do CP].

30 – Assim, no caso sub inde, os factos sedimentados como provados na instância não podem ser subsumidos à qualificativa prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º, do CP, desde logo na medida em que se não verifica a «circunstância-elemento» introdução (plena, de corpo inteiro) no espaço fechado em referência, por isso que se estará em presença, não do crime de furto qualificado por que o arguido foi condenado, mas tão-apenas, do tipo-de-ilícito arrolado, como furto (simples) no n.º 1 do artigo 203.º, do CP.

31 – Ex abundanti, figura-se de entender que comete um crime de furto qualificado, do artigo 204.º n.º 1 alínea f), do CP, o agente que subtrai e faz sua coisa móvel alheia, introduzindo-se, ilegitimamente, em um estaleiro de obra vedado em toda a sua extensão por uma rede metálica [espaço fechado] – data venia, como nos acórdãos, do Tribunal da Relação do Porto, de 11/20/2013 (processo n.º 1308/11.5GAMAI.P1), e deste Tribunal da Relação de Évora, de 12/10/2009 (processo n.º 43/07.3GEELV.E1), e pelas razões ali douta e proficientemente alinhadas.

32 – Nos termos previstos no n.º 3 do artigo 203.º, do CP, o procedimento criminal pelo crime de furto (simples) depende de queixa, por isso que só o conhecimento processual volitivo, levado ao Ministério Público pelo titular do direito respectivo (do bem jurídico tido por lesado) assegura a legitimidade deste para o procedimento, de conformidade com o disposto no artigo 49.º, do CPP.

33 – Assim, no caso, precedendo a predita alteração da qualificação jurídica dos factos, e perante o crime de furto simples agora em presença, p. e p. nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 203.º, do CP, e, ademais, não tendo a ofendida «VSS» (em qualquer momento processual) apresentado a devida queixa (artigo 113.º n.º 1, do CP), o respectivo direito não pode deixar de ter-se por extinto (artigo115.º n.º 1, do CP), carecendo o Ministério Público de legitimidade para o procedimento (artigo 49.º, do CPP), pelo que o arguido não pode deixar de ser absolvido – sobre o não exercício do direito de queixa e suas consequências, veja-se, com particular proveito para o caso sub inde, o acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 11/20/2012 (processo n.º 1831/10.9TAPTM.E1, em www.dgsi.pt).

34 – Não cabe tributação – artigos 513.º n.º 1 e 514.º n.º 1, do CPP, a contrario sensu.


III

35 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, NAS, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se o mesmo do crime por que foi acusado, ademais se modificando a decisão recorrida, no § 1.9, do rol de factos julgados provados, passando a ler-se «O arguido reside com a sua companheira e tem seis filhos de 19, 15, 12, 8, 6 e 3 anos de idade, respectivamente.».

Évora, 03-12-2015

António Manuel Clemente Lima (relator)

Alberto João Borges (adjunto)