Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
563/04-1
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO RETIDO
PENA DE PRISÃO
PENA DE MULTA
ADMOESTAÇÃO
Data do Acordão: 06/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I. Fica sem efeito o recurso retido se o respectivo recorrente não interpuser recurso da decisão final, podendo fazê-lo, ainda que por terceiro tenha sido impugnada tal decisão final.
II. O artº 60º do Cod. Penal, não permite a aplicação da pena de admoestação ao agente condenado em pena de prisão, ainda que substituída por pena de multa.


Sénio Alves
Decisão Texto Integral:
Processo nº 563/04-1



ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I. No Tribunal Judicial da comarca de ... corre termos o Proc. Comum (Tribunal Singular) nº ... no qual os arguidos A. ... e B ....foram acusados da prática de um crime de exercício ilegal de actividade de farmácia p.p. pelo artº 108º, nº 1 do DL 48547, de 27/8/68, conjugado com os artºs 29º, nº 1 e 39º do mesmo diploma e 51º do DL 184/97, de 26/7.
Antes de iniciada a audiência, os arguidos suscitaram a incompetência absoluta do Tribunal, porquanto - em sua opinião - a conduta que lhes era imputada na acusação constituía a prática de uma contra-ordenação p.p. pelo artº 79º do DL 184/97, de 26/7 e não do crime supra referido.
Desatendida tal excepção e declarada a competência do Tribunal, com tal decisão se não conformaram os arguidos, que da mesma interpuseram recurso, o qual foi recebido para subir “conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa, subida por isso nos próprios autos”.
A final, viriam os arguidos a ser condenados, pela prática do crime por cuja autoria vinham acusados, em pena de admoestação.
A decisão final foi proferida em 24/11/2003, data em que foi lida publicamente e depositada. E, em 5/12/2003, os arguidos vieram juntar aos autos um requerimento, no qual informavam que “renunciam à interposição de recurso da douta sentença proferida nos autos”.
Porém, o Digno Magistrado do MºPº viria a interpor recurso da sentença, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):
a) Os arguidos A.... e B.... foram condenados pela prática, em co-autoria, de um crime de exercício ilegal da actividade de farmácia, p. e p. pelo artigo 108º/1, do Decreto n° 48547, de 27/08/1968, em conjugação com os artigos 29°/1 e 39° do mesmo diploma e 51°, do Dec. Lei n° 184/97, de 26/07;
b) Ambos os arguidos foram condenados na pena de 3 meses de prisão, a qual foi substituída por 90 dias de pena de multa. Foram, igualmente, condenados na pena de 20 dias de multa, à razão diária de € 5;
c) Foi efectuada a aplicação do disposto no artigo 6°, do Dec. Lei n° 48/95, de 15 de Março, condenando-se os arguidos na pena de 110 dias de multa, à razão diária de € 5, tendo a pena sido substituída pela pena de admoestação, nos termos do disposto no artigo 60° do Código Penal;
d) A medida da admoestação prevista no artigo acima referido é exclusiva da pena de multa;
e) Não pode, por isso, ser aplicada a pena de admoestação a quem foi condenado em pena de prisão, ainda que substituída por pena de multa, como sucedeu aos arguidos;
f) Por esta razão a sentença recorrida violou, por errada interpretação, o citado artigo 60° do Código Penal, devendo, por isso, ser revogada nesta parte.

Admitido o recurso, respondeu o arguido pugnando pela sua improcedência e pedindo, de outro lado, que seja apreciado o recurso por si interposto do despacho que desatendeu a suscitada excepção de incompetência do Tribunal, acabando por formular as seguintes conclusões (igualmente transcritas):
1. A ilustre recorrente, manifesta a sua discordância quanto à douta sentença por esta, supostamente, ter violado, por erro de interpretação, o art° 60 do Código Penal.
2. Aos arguidos foi aplicada a pena de admoestação.
3. Entende a recorrente que tal pena só poderá ser aplicada "exclusivamente à pena de multa".
4. Nas conclusões não reproduz, embora sumariamente, os argumentos que utiliza no corpo das alegações.
5. Como decorre do alegado pelos recorridos a pretensão do M.P. não merece acolhimento.
6. A pena de admoestação não foi extinta no nosso ordenamento jurídico.
7. Muito em especial tal pena não foi riscada do Código Penal.
8. A ter valimento a interpretação do M.P., tal redundaria que a admoestação, tal como está configurada, constituiria uma excrescência inútil.
Com efeito:
9. No entender da recorrente o Juiz só poderia aplicar a pena de admoestação caso o crime configurado preveja, como punição em abstracto, exclusivamente a pena de multa.
10. Nada de mais errado.
11. Uma consulta exaustiva à parte especial do Código Penal permite-nos concluir que não se encontra um único crime aí previsto passível apenas de pena de multa.
12. Se tal interpretação estivesse certa - e não está - a pena de admoestação não teria razão de existir como pena de substituição.
13. A melhor interpretação vai no sentido de que aplicada, em concreto, uma pena de multa, como caso acontece, mesmo que esta, em parte, resulte da pena de prisão, pode o Juiz atentas as circunstâncias, substitui-la pela admoestação.
14. Contrariamente, ao entendimento do M.P., recorrente, nada há neste aspecto, a sindicar ao conteúdo da douta sentença, recorrida. Acresce que:
15. Os arguidos, como decorre do processo, suscitaram a incompetência material do Tribunal para julgar o presente pleito.
16. Tal circunstância, através de requerimento, foi suscitada nos autos.
17. O Sr. Juiz da Causa, por despacho, entendeu que o Tribunal era materialmente competente para julgar a causa.
18. De tal despacho os arguidos interpuseram recurso que foi admitido.
19. Fizeram em tempo as alegações que estão juntas ao processo e que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
20. Tal matéria - a da incompetência do Tribunal - é do conhecimento oficioso do Tribunal (C.P.P. art° 32). Assim:
21. Também porque não houve renúncia ao recurso intercalar deve o mesmo ser apreciado por V.V.Exas..
22. Nestes termos deve ser dado provimento ao recurso intercalar, reconhecendo o Tribunal da Relação de Évora que, hoje em dia, os Tribunais Comuns não têm competência material para apreciar a questão dos autos.
23. A ter-se verificado o factualismo descrito na sentença os factos praticados pelos arguidos constituiriam uma contra--ordenação e não um crime.
24. Compete às Instâncias Administrativas definidas na Lei, no caso aplicável, sancionar a respectiva contra-ordenação.
25. Nestes termos deve o Tribunal Comum reconhecer que não tem competência material para apreciar a questão concreta que tem tradução na acusação e na douta sentença recorrida.
26. Se assim se não entender - o que se não concede - deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo M.P..

II. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer onde, como questão prévia, manifesta o seu entendimento de que não deve ser conhecido o recurso interlocutório interposto pelos arguidos e onde pugna pela procedência do recurso interposto pelo MºPº.
Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, responderam os arguidos sustentando, mais uma vez, que o recurso que interpuseram deve ser objecto de apreciação.

III. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

III.1. Como questão prévia, há que apurar, desde já, se deve ser apreciado o recurso interlocutório interposto pelos arguidos do despacho que desatendeu a sua pretensão de ver declarada a incompetência do tribunal recorrido para o conhecimento da infracção por cuja autoria aqueles se mostravam acusados.

III.2. Recordemos os factos relevantes:
No início da audiência de julgamento que teve lugar em 13/10/2003 (cfr. fls. 105 e segs.), os arguidos pediram, por requerimento ditado para a acta, que o tribunal se declarasse incompetente para julgar a causa, alegando que os factos cuja autoria vinha imputada aos arguidos na douta acusação integravam a prática, não do crime p.p. pelo artº 108º, nº 1 do DL 48547, de 27/8/68 mas, isso sim, a prática de uma contra-ordenação p.p. pelos artºs 51º e 79º do DL 184/97, de 26/7, para cuja apreciação e julgamento seriam competentes o “Sr. Presidente do Infarmed ou Director Geral de Veterinária, de acordo com as competências dos respectivos organismos (artº 81 do mesmo diploma)”.
Tal pretensão foi desatendida por despacho proferido para a acta, do qual foi interposto recurso, admitido para subir a final, com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa - artº 407º, nº 3 do CPP.
Realizado o julgamento, foram os arguidos condenados pela prática do crime por cuja autoria se mostravam acusados, em pena de admoestação.
No prazo de que dispunham para recorrer, os arguidos vieram aos autos dizer que “renunciam à interposição de recurso da douta sentença proferida nos autos”.
O MºPº, porém, interpôs recurso dessa sentença e os arguidos, na respectiva resposta à motivação, pedem a este tribunal que aprecie o recurso retido.

III.3. Terão fundamento legal para tanto?
Estatui-se no nº 3 do artº 407º do CPP que “quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa”.
Por seu turno, dispõe-se no nº 5 do artº 412º do mesmo diploma legal que “havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse”.
O Mº Juiz a quo havia, por despacho de fls. 229, decidido o seguinte:
“Sem prejuízo de melhor opinião, entende-se que a renúncia do recurso da decisão final por parte dos arguidos não faz caducar o recurso pendente, na medida em que foi interposto recurso da sentença pelo Ministério Público, pelo que poderá o recurso retido ser julgado conjuntamente com o recurso da decisão que pôs termo à causa”.
Porém, em face daqueles dois normativos, opina o Exmº Procurador-Geral Adjunto no sentido da inadmissibilidade do conhecimento do recurso retido.
E fundamenta desta forma tal conclusão:
“(...) notificado do regime de subida fixado para aquele Recurso Interlocutório, o então Recorrente ficou a saber que o respectivo conhecimento pela Instância de Recurso só poderia legalmente ocorrer se viesse também a interpor posterior Recurso da decisão que pusesse termo à causa (...).
Não o fazendo (ou a ele renunciando ou dele até desistindo), claro e transparente nos parece que, agora já como verdadeiro Recorrido, não poderá aproveitar-se da iniciativa processual de quem efectivamente interpõe Recurso daquela decisão para, oportunisticamente, tentar fazer valer as razões que julgava acertadas, mas a que renunciou ou de que desistiu”.
E, referindo-se ao estatuído no nº 5 do artº 412º do CPP, acrescenta:
“Trata-se de norma expressa de que resulta que, para além de outras, aqui reside uma importantíssima «condição de procedibilidade» dos Recursos Interlocutórios.
É que estes só serão superiormente conhecidos se o respectivo Recorrente obrigatoriamente especificar, nas «conclusões» da Motivação de Recurso que interpuser da decisão que põe termo à causa, se mantém ou não qualquer interesse nesse conhecimento.
Redacção (e intenção legislativa subjacente) de onde se pode e deve concluir que um e outro têm que ser obrigatoriamente o mesmo.
E «quid juris» se o não fizer?
É claro que tal equivale a desistência do Recurso, como «una voce» nos ensina a jurisprudência mais abalizada (...)”.
E conclui:
“Assim sendo (isto é, sendo condição de procedibilidade dos Recursos retidos a obrigatoriedade de se manifestar interesse no seu conhecimento nas conclusões do Recurso interposto da decisão que põe termo à causa), então como argumentar que «in casu» esse conhecimento pode ser levado a cabo se o interessado não só não interpôs este Recurso, como a ele renunciou?
Sempre se dirá, a finalizar, que mesmo que se entendessem como aqui aplicáveis as normas processuais civis, ainda assim se chegaria à mesma conclusão.
É o que decorre das disposições conjugadas dos artigos 681º e 735º do CPC, a propósito das quais Alberto dos Reis anotou que ficam sem efeito os agravos interpostos por quem não for recorrente da decisão final”.

O Supremo Tribunal de Justiça, no seu Ac. de 13/02/2002, Proc. 4113/01-3, relatado pelo Cons. Leal-Henriques, assumiu entendimento análogo ao sustentado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação.
Pode ler-se em tal aresto:
“Ora, face àquele preceito (artº 407º, nº 3 do CPP), parece ser de concluir que os recursos interlocutórios retidos pressupõem necessariamente, para serem objecto de conhecimento, que seja interposto recurso da decisão final que os leve, por arrastamento, ao Tribunal Superior.
Aqui sucedeu isso, isto é, houve recurso da decisão final, mas por parte do arguido (o recurso interlocutório havia sido interposto pelo assistente).
Será isso suficiente?
O nº 3 do artº 407º citado não diz explicitamente que esse recurso tenha a mesma autoria que a do recurso interlocutório, mas, analisando o sistema, parece ser essa a conclusão a extrair.
Com efeito, reza o nº 5 do artº 412º que, havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente nas conclusões quais os que mantêm interesse.
Sendo assim, cuida-se que o legislador - articulando este preceito com o do nº 3 do artº 407º - quis que o recurso da decisão final a que se reporta este último normativo é o interposto pelo próprio recorrente do recurso intercalar ou interlocutório”.
Ou seja: na óptica do douto acórdão referido, os recursos retidos só subirão se o respectivo recorrente impugnar, ele próprio, a decisão que puser termo ao processo, especificando - nas conclusões extraídas da motivação respectiva - o seu interesse na apreciação do mesmo.
Não basta, portanto, que seja impugnada a decisão final; é necessário, para além disso, que quem a impugne seja, simultaneamente, o recorrente nos recursos retidos.
E compreende-se que assim seja.
Posto que o nº 1 do artº 407º do CPP atribui subida imediata a um conjunto alargado de recursos, ponderado ainda o facto de, perante o estatuído no nº 2 do mesmo preceito, subirem também imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria absolutamente inúteis, subirão a final aqueles recursos cuja utilidade há-de, ao cabo e ao resto, ser aferida pelo resultado da decisão final e pelo posicionamento do recorrente (nos recursos retidos) face a essa mesma decisão final.
E se o recorrente do recurso retido, podendo recorrer da decisão que põe termo ao processo, o não faz, então é lícito concluir que não só aceita o resultado final como, também, as decisões interlocutórias que permitiram esse desfecho.
No caso concreto, os arguidos não só não recorreram da sentença final como, de forma expressa e inequívoca, vieram aos autos informar que renunciavam à interposição do respectivo recurso.
Ora, aceitando aquela decisão final, aceitam naturalmente a competência do órgão que a proferiu.
Admitimos que outra poderá ser a solução, caso o recorrente nos recursos retidos não possa, por falta de legitimidade, interpor recurso da decisão final (nomeadamente se o recorrente é o arguido e se a decisão final consiste na sua absolvição - cfr. artº 401º, nº 2 do CPP).
Porém, podendo os arguidos recorrer da decisão final - como era o caso dos autos - e não o fazendo, não pode ser conhecido o recurso interlocutório por eles interposto, por força das disposições conjugadas dos artºs 407º, nº 3 e 412º, nº 5, ambos do CPP.
Termos em que se decide, na procedência da questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, não conhecer do recurso interposto a fls. 108, relativo à decisão que julgou improcedente a excepção de incompetência do Tribunal para o julgamento dos factos por cuja autoria os arguidos vinham acusados.

III.4. E porque assim é, tal questão há-de considerar-se definitivamente decidida pelo despacho referido, posto que - não interposto, pelos arguidos, o competente recurso da decisão final - se há-de considerar, para todos os efeitos, como transitado em julgado.
Daí que, contrariamente ao pretendido pelos arguidos recorridos não haja agora que conhecer da pretensa incompetência do Tribunal recorrido, ao abrigo do disposto no artº 32º do CPP.
De um lado, porque isso se traduziria em fazer entrar pela janela aquilo que se fez sair pela porta.
De outro, porque sendo do conhecimento oficioso a incompetência do tribunal, certo é sempre que tal questão já foi, nestes autos, jurisdicionalmente apreciada, por decisão transitada em julgado.

IV. Cumpre, então, apreciar o recurso interposto pelo Digno Magistrado do MºPº da sentença final.
Como é sabido, são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1, ambos do CPP.
Contudo, “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artº 410°, n° 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” - Ac. do Plenário das secções do STJ de 19.10.95, in D.R. I-A Série de 28.12.95.
Lida a douta sentença impugnada, é convicção deste tribunal que a mesma não enferma de qualquer dos vícios elencados no preceito referido (nem, aliás, o Digno recorrente os apontou, podendo fazê-lo).
Posto isto:
Não obstante terem sido documentadas as declarações prestadas oralmente em audiência, o recorrente limita a sua discordância a uma exclusiva questão de direito: a aplicação, aos arguidos, da pena de admoestação, “em substituição” da pena de multa que lhes devia ter sido aplicada.

V. É a seguinte a factualidade apurada pela 1ª instância que, por não impugnada, se há-de ter por assente:
1. Os arguidos são sócios-gerentes da Sociedade......, na qual exercem a actividade de venda de adubos, sementes, rações, produtos agro-químicos e material agrícola.
2. No dia 16 de Fevereiro de 2001, cerca das 11,50 horas, no estabelecimento daquela sociedade, sito na Rua ...., o arguido A. ... entregou a M.... uma embalagem de produto designado por Vitaminthe – Antiparasitário Interno, mediante a contrapartida de 13,43 €, tendo a transacção sido facturada como venda pela Agroreguengos.
3. Trata-se este produto de um medicamento pré-fabricado para uso em animais, estando registado como medicamento no Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, com o n.º 50814, de 8 de Abril de 1992.
4. O arguido A. ... já adquiriu embalagens desses medicamentos em Évora.
5. A sociedade ... não tem alvará para exploração de farmácia, armazém de comercialização de medicamentos e de substâncias medicamentosas ou de laboratório, não dispondo assim de autorização para a comercialização, por grosso ou a retalho, de medicamentos ou qualquer tipo de produtos farmacêuticos e nenhum dos arguidos é farmacêutico.
6. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de vender um medicamento de uso veterinário, bem sabendo que tal actividade está reservada às farmácias e que a sociedade ..... não dispunha de alvará que lhes permitisse fazer a venda.
7. Sabiam ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
8. O arguido A. ...foi subcomissário da PSP, encontra-se reformado dessa actividade e trabalha na ....., no que lhe permite auferir cerca de 750 € mensais.
9. O arguido A. .. é casado, tem 2 filhos maiores, mas tem uma neta a seu cargo e tem como habilitações literárias o 12.º ano.
10. O arguido B.... trabalha na ..., no que lhe permite auferir cerca de 750 € mensais, tem 2 filhos e tem como habilitações literárias a 4.ª classe.
11. Os arguidos são pessoas bem consideradas em .....

VI. Perante tal factualidade, entendeu o tribunal recorrido que a mesma integrava a prática, pelos arguidos, de um crime p.p. pelo artigo 108.º, 1, do Decreto-Lei n.º 48547, de 27/08/1968.
Tal ilícito é punido com prisão de três meses até dois anos e multa.
E assim decidiu o tribunal recorrido:
“Em face dos factores enunciados surge-nos como adequada e justa a pena de três meses de prisão e 20 dias de multa, à razão diária de 5 €, para cada um dos arguidos, atenta a situação económico-financeira de ambos, sendo que, ao abrigo do disposto no artigo 44.º, do CP, substitui-se a primeira das referidas penas por igual tempo de multa (noventa dias), visto que inexistem exigências preventivas que imponham a manutenção da pena de prisão.
Recorrendo ao disposto no artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de Março, que veio estabelecer que enquanto vigorarem normas que prevejam penas cumulativas de prisão e multa, sempre que a pena de prisão for substituída por multa será aplicada uma só pena equivalente à soma da multa directamente imposta e a que resultar da substituição da prisão, aplica-se a cada um dos arguidos uma só pena de 110 dias de multa, à razão diária de 5 €, o que perfaz a pena global de 550 €.
(...)
No entanto, tomando em atenção a medida da pena de multa obtida, uma vez que não há qualquer dano a reparar e que a aplicação de uma pena de admoestação é suficiente para reafirmar contrafacticamente a validade da norma violada, considerando que os arguidos são considerados como pessoas de bem na comunidade local, ao abrigo do disposto no artigo 60.º, do CP, limita-se o Tribunal a proferir uma pena de admoestação.
5 - Decisão
Face ao exposto, decido condenar os arguidos A.... e B... como co-autores da prática de um crime de exercício ilegal de farmácia, p. e p. pelo artigo 108.º, 1, do Decreto-Lei n.º 48547, de 27/08/1968 em conjugação com os artigos 29.º, 1 e 39.º, do mesmo diploma e 51.º, do Decreto-Lei n.º 184/97, de 26 de Julho, numa pena, para ambos, de admoestação”.

O Digno recorrente, aceitando a factualidade apurada, a respectiva subsunção jurídica e a o quantum da pena de multa aplicável, discorda, porém, da sua “substituição” pela pena de admoestação decidida pelo tribunal a quo, dizendo que tal medida “é exclusiva da pena de multa” e não pode, por isso, ser aplicada a quem foi condenado em pena de prisão, ainda que substituída por pena de multa, como sucedeu aos arguidos.

Vejamos se lhe assiste razão.

No artº 59º, nº 1 do Cod. Penal de 1982, na sua versão original, estatuía-se que “se o agente for considerado culpado pela prática de crime a que, concretamente, corresponde a pena de prisão, com ou sem multa, não superior a 3 meses, ou só pena de multa até ao mesmo limite, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação”.
Porém, após a revisão de 1995, o actual artº 60º, nº 1 do Cod. Penal prevê a possibilidade de o tribunal se limitar a proferir uma admoestação “se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 120 dias”.
Há aqui, notoriamente, uma evidente redução do campo de aplicação da medida em causa.
Não se trata, obviamente, de restringir a aplicação dessa medida aos crimes puníveis exclusivamente com multa (nem o Digno recorrente o afirma ou insinua, como erradamente afirmam os recorridos).
A questão é outra:
Se determinado facto ilícito é punível, alternativamente, com prisão ou multa (e vários são os crimes, previstos no Código Penal, nessa situação), se o juiz - ao abrigo do estatuído no artº 70º do CP - optar pela aplicação de pena de multa (e se esta for fixada em medida igual ou inferior a 120 dias), então é-lhe permitido que se limite a proferir uma admoestação (verificados, naturalmente, os restantes pressupostos enunciados nos nºs 2 e 3 do artº 60º do CP).
Se, diversamente (e como é o caso dos autos), a infracção é punível, cumulativamente, com prisão e multa, já não é possível ao tribunal - hoje, que não em função da versão originária do Cod. Penal de 1982 - limitar-se a proferir a referida admoestação, ainda que a pena de prisão seja, ela própria, objecto de substituição por pena de multa.
Poder-se-á, legitimamente, questionar o acerto da opção legislativa: num momento em que tanto se criticam os juízes pelo exagerado apego às clássicas penas de prisão e multa, estranho é que se diminua o campo de aplicação de uma medida “aplicável a indivíduos culpados de factos de escassa gravidade e relativamente aos quais se entende (ou por serem delinquentes primários ou por neles ser mais vivo um sentimento da própria dignidade, por exemplo) não haver, de um ponto de vista preventivo, a necessidade de serem utilizadas outras medidas penais que importem a imposição de uma sanção substancial” - do Preâmbulo do Cod. Penal, ponto 12.
Que, porém, foi essa a intenção legislativa é algo que nos parece inquestionável.
E para tanto se concluir bastaria a simples leitura da Acta nº 7 da Comissão de Revisão do Código Penal, da qual nos permitimos transcrever o seguinte excerto:
“O Senhor Professor Figueiredo Dias (...) levantou então uma outra questão: saber se, quando a prisão for substituída por multa, se mantém relativamente a esta a substituição pela pena de admoestação.
O Senhor Procurador-Geral da República afirmou que, no seu entender, não se justificaria ir tão longe nas medidas substitutivas. Na verdade, a pena de prisão já tem os seus substitutos, não sendo de criar outros mecanismos de forma indirecta.
Seria preferível utilizar este mecanismo apenas quanto à pena de multa, evitando uma excessiva, desnecessária e, porventura, confusa discricionariedade do legislador.
A comissão assentou a final na seguinte redacção para o nº 1 do artº 59º, com a menção expressa do seu entendimento quanto ao facto da pena de admoestação não funcionar como forma substitutiva da pena de multa que substituir pena de prisão: (...)” (negrito e subl. nossos).
Boa ou má, foi esta a opção legislativa.
Daí que, como bem refere o Digno recorrente, o artº 60º do Cod. Penal, não permite a aplicação da pena de admoestação ao agente condenado em pena de prisão, ainda que substituída por pena de multa.
Tendo o tribunal recorrido optado por essa substituição, violado se mostra o dispositivo legal referido, razão pela qual há que julgar procedente o recurso, subsistindo assim a condenação de cada um dos arguidos na pena de 110 dias de multa, à razão diária de € 5, no montante global de € 550.

VII. Por tudo quanto exposto fica e ao abrigo das disposições legais citadas, acordam os juízes desta Secção Criminal em:
a) não conhecer do recurso interlocutório interposto pelos arguidos do despacho proferido em acta, a fls. 107/108;
b) conceder provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do MºPº e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida apenas na parte em que procedeu à substituição das penas de multa aplicadas aos arguidos (em parte já resultantes da substituição de prévias penas de prisão) pela pena de admoestação, ficando assim cada um dos arguidos condenados na pena de 110 dias de multa, à razão diária de € 5, no montante de € 550.

Sem tributação.


Évora, 30 de Junho de 2004 (processado e revisto pelo relator).
Sénio Alves
Pires da Graça
Rui Maurício