Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2502/05.3TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARDOSO DE ALBUQUERQUE
Descritores: PRAZO DE PRESCRIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Data do Acordão: 10/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS MISTAS DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 309º E 498º C. CIV.
Sumário: I – O artº 498º C. Civ., que prevê um prazo curto de prescrição da responsabilidade civil, de apenas três anos, é apenas aplicável à responsabilidade civil aquiliana e não à responsabilidade civil contratual.
II – O prazo ordinário de prescrição para a responsabilidade civil contratual é de vinte anos – artº 309º C. Civ.
Decisão Texto Integral: ACORDAM na RELAÇÃO DE COIMBRA:


I – A A... com sede em Vilela, S. João de Lourosa, Viseu propôs no Tribunal Judicial de Coimbra ( Vara Mista) a presente acção ordinária contra a B... com sede na R do Brasil, em Coimbra, na qual pede a condenação da R a pagar-lhe a quantia de € 105.768,33 valor dos prejuízos sofridos nas suas instalações ( inutilização da fruta por avaria irreversível dos equipamentos de frio) em consequência de um corte de energia eléctrica ocorrido na noite de 21 para 22 de Agosto de 1998 e que imputa à mesma, sendo certo que já anteriormente formulara tal pedido em acção que terminou pela absolvição da instância desta, por preterição do Tribunal Arbitral necessário conforme o clausulado no contrato, sendo certo que o diploma regulador da dita arbitragem foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral o que invalidou a primeira parte da cláusula em questão ( artº 16º do contrato) donde serem competentes os tribunais comuns ( no caso , o foro de Coimbra, 2ª parte do dito artº 16º) para resolver tal tipo de litígios.
A R contestou em nome da C... que entretanto incorporou por fusão a extinta B...alegando a caducidade da reclamação dos defeitos no fornecimento da energia ( com invocação do diploma de defesa do consumidor – Lei nº24/96) bem como a prescrição do direito por já ter decorrido o prazo de três anos previsto no artº 498º do CCivil e impugnando os factos até dizendo que a A procedera com negligência grosseira.
Alegou também que a A já intentara uma anterior acção no tribunal de Viseu em que ela foi absolvida da instância, por violação de cláusula compromissória além de que as partes tinham escolhido a Comarca de Coimbra para a resolução de qualquer pleito emergente do contrato.
Respondeu a A às excepções pugnando pela sua improcedência e designadamente no que toca à prescrição cujo prazo fora interrompido pela citação da R na primeira acção movida em 14 de Janeiro de 2002 no Tribunal Judicial de Viseu, bem como na operada na segunda acção, no mesmo tribunal de Coimbra ambas terminadas com a absolvição de instância, com base numa cláusula inaplicável em virtude da declaração de inconstitucionalidade do diploma de arbitragem, o que inviabilizou o seu requerimento para a constituição da Comissão Arbitral, formulado dois meses depois da sua notificação da derradeira sentença absolutória.
Conclusos os autos e depois de junta pelas partes copiosa documentação atinente às acções anteriores e ao contrato invocado, bem como à informação sobre a declaração de inconstitucionalidade, decidiu o Mmo Juiz por douto despacho de fls 155 e 156, julgar procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela R por e mesmo tomando em conta a contagem de novo prazo de três anos a partir da data da citação da anterior acção proposta em 30/07/2002, ele se achar já escoado.
Inconformada a A recorreu de apelação, dizendo o seguinte nas conclusões da respectiva minuta:
a) A e R celebraram em 13/03/96 contrato de fornecimento de energia eléctrica;
b) Nos termos do artº 16º do contrato foi estabelecido entre as partes convenção de arbitragem, segundo a qual, “ os litígios entre consumidor e a B... relativos ao cumprimento do contrato que não sejam resolvidos por acordo serão submetidos à arbitragem prevista no DL 296/82 de 28/07.
c) Na noite de 21 para 22 de Agosto de 1999, ocorreu nas instalações da A uma anomalia técnica descrita nos autos (artºs 12º a 26º da p.i. ) da qual resultaram os danos materiais descritos;
d) Para ressarcimento dos danos então causados, a A instaurou contra R em 14 /01/2002 acção judicial que terminou por sentença que absolveu a R de instância, concluindo pela incompetência do Tribunal por violação da convenção de arebitragem;
e) Em 30 /07/2002, a A instaurou contra a R no Tribunal Judicial de Coimbra acção ordinária com vista ao ressarcimento dos danos causados a qual correu os seus termos sob o nº 246/02 da 2ª secção ;
f) Por sentença de 6/01/2003, a R foi novamente absolvida da instância por preterição do tribunal arbitral necessário;
g) Em 5 de Maio de 2003, através de registo postal, a A requereu a constituição da Comissão Arbitral prevista no DL nº296/82 de 26 de Julho.
h) Por comunicação datada de 26 de Outubro de 1994, a Direcção Geral de Energia comunicou à A que face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas invocadas, não seria possível proceder à constituição da Comissão Arbitral, cabendo a resolução do litígio aos tribunais;
i) Perante a decisão atrás referida, a A recorreu novamente ao tribunal judicial instaurando a presente acção na Vara Mista de Coimbra em 27/11/2005;
j) A propositura da acção no Tribunal Judicial de Viseu interrompeu o prazo de prescrição, com efeito a partir do acto interruptivo (19/01/02);
k) Este prazo foi novamente interrompido com efeitos a partir de 30/07/2002 na sequencia da acção instaurada naquela data e a sentença da absolvição da instância então proferida ;
l) Nos termos da convenção de arbitragem (artº 16º do contrato) em 6/06/2003, a A requereu a constituição da Comissão Arbitral prevista naquele normativo para a resolução do litígio (artº 11º da Lei nº31/86 de 29 de Agosto) o que determinou a interrupção do prazo prescricional em curso;
m) Dado que a convenção de arbitragem foi dada sem efeito – face à declaração de inconstitucionalidade das normas aplicáveis – o novo prazo para efeitos da prescrição deverá ser contado a partir do acto interruptivo, i. e., da data de requerimento da constituição da Comissão Arbitral;
n) Sendo certo que à data da interposição da acção , ainda não havia decorrido o prazo prescricional de três anos iniciado naquela data;
o) O tribunal ao não considerar aquela interrupção violou o disposto no artº 327º,nº2 do C. Civil.
A R contra alegou defendendo a justeza e a boa fundamentação legal da decisão.
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II – Neste tribunal, os autos foram aos vistos legais.
Porém e mediante despacho do Relator por entender este que ao caso não era aplicável o prazo curto de prescrição de três anos previsto no artº 498º do CCivil por este ser exclusivo da responsabilidade civil aquiliana ou extra contratual, respeitando o pedido de indemnização a questão não desinserida da relação contratual estabelecida entre as partes, foram estas convidadas a dizerem o que tivessem por conveniente face à proibição das denominadas “decisões surpresa”, o que fizeram através dos requerimentos/alegações de fls 214 e 218.
A A recorrente foi clara em admitir que se estaria em presença de uma responsabilidade contratual, adoptando posição inversa a R recorrida que defendeu que este tribunal estava condicionado às conclusões do recurso em que apenas estava em causa saber se o prazo de prescrição de três anos tinha ou sido interrompido.
Cumpre decidir.
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III – Vamos por uma questão de rigor explanar os factos que relevam para a decisão do presente recurso, não obstante as referências constantes do precedente relatório:
1 –A e aB... ( depois integrada por fusão na R C...) celebraram um contrato de fornecimento de energia eléctrica com média tensão em 13/03/1996;
2 – Nos termos do artº 16º de tal contrato, foi estabelecido entre as partes convenção de arbitragem, segundo a qual “ os litígios entre o consumidor e a B...relativos ao cumprimento deste contrato que não sejam resolvidos por acordo estão submetidos à arbitragem prevista no Dec Leinº296/ 82 de 28/07.ficando desde já escolhido o foro da comarca de Coimbra para resolução de qualquer pleito emergente deste contrato”
3 –Na noite de 21 para 22 de Agosto de 1999, ocorreu nas instalações da A uma anomalia técnica no dito fornecimento melhor descrita nos artºs 12º a 26º da p.i. e de que resultaram conforme o também aí alegado danos no equipamento e a inutilização da fruta guardada nas câmaras frigoríficas.
4 – Para ressarcimento de tais danos e por alegada falta de reposta da R , a A intentou contra a R em 14 /01/2002 acção judicial e que veio a terminar com a absolvição desta por incompetência do tribunal e devido à existência de uma cláusula compromissória por despacho datado de 16/05/2002.
5-Em 30 /07/2002 a A instaurou nova acção contra a R no Tribunal Judicial de Coimbra para ressarcimento de tais danos que correu termos sob o nº 246/02- 2ª Secção.
6 – E de novo por sentença de 6/01/2003 a R voltou a ser absolvida instância por preterição do tribunal arbitral necessário, nele se mencionando que pertencia à comissão prevista na nova redacção dada ao artº 49º da Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica de em Alta Tensão anexas ao DL nº 43.336 de 19 de Novembro de 1960 pelo DL nº296/82ª solução do litígio surgido por emergente de factos atinentes ao fornecimento de energia por parte da R à A.
7 – Em 5 de Maio de 2003, a A, através de registo postal requereu a constituição da comissão arbitral prevista naquele diploma.
8 – Veio , então a tomar conhecimento por comunicação dessa entidade que fora declarado inconstitucional , com força obrigatória geral pelo Ac nº33/88 do Tribunal Constitucional a norma constante do artº 1º do DL nº296/82 , tendo retomado a redacção inicial o artº 49º das CGVEEAT anexas ao DL 43.335 por sua vez tambem declarado inconstitucional pelo Ac nº 59/92 , publicado no DR I Série de de 14/02/92.
9 – Na sequência, o A propôs a presente acção para fazer valer aquele direito em 27/10/2005
10 – E na contestação invocou a R a prescrição do direito por desde a data do sinistro ter decorrido período superior a três anos, conforme o disposto no artº 498º do CCivil
11 – Excepção a que a A respondeu com a contra excepção da interrupção do prazo por motivo da citação efectuada na acção proposta no Tribunal Judicial de Viseu.
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IV - No presente recurso está apenas em causa saber se se verifica a prescrição do direito da A pois foi com base em tal excepção peremptória levantada pela R e que aquela contrariou que o tribunal decidiu em sentido favorável com a inerente absolvição da mesma R do pedido.
Ora de algum modo a solução desta questão em sentido inverso à da douta decisão da 1ª instância mostra-se antecipada pelo despacho exarado pelo Relator a fls 210 e 211 e com que inteiramente concordamos.
Com efeito, no presente caso não estamos no domínio da denominada responsabilidade civil extra contratual ou aquiliana, também denominada responsabilidade extra obrigacional ( como defende Galvão Telles, Direito das Obrigações , 7ª ed., 211 e ss ) antes sim confrontados com uma responsabilidade contratual ( ou obrigacional) visto os danos causados nos equipamentos da A com a subsequente inutilização da fruta que esta guardava em câmaras frigoríficas ter resultado de uma interrupção de energia com violação do contrato documentado nos autos inserindo-se no âmbito dos litígios que as partes haviam convencionado subtrair à jurisdição dos tribunais comuns, decorrentes do cumprimento ou do não cumprimento do apontado contrato. remetendo a sua resolução para uma arbitragem, nos termos previstos no diploma para que remetiam mas que entretanto havia já sido declarado inconstitucional, deixando a mesma de surtir efeito.

E como se disse em tal despacho, a norma reguladora do prazo de prescrição da responsabilidade civil, ou seja, o artº 498º do CCivil que prevê um prazo curto de três anos é apenas aplicável à dita responsabilidade civil aquiliana e não à responsabilidade contratual, posição que é sustentada pela generalidade da doutrina ( v. A Varela e P de Lima, Anotado I Vol, 4ªed, 505, Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol I, 1990, 530/531, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol I, 3ª ed., 405 e Miguel Teixeira de Sousa, Concurso de Títulos de Aquisição e de Prestação, 1988 ) recolhendo adesão amplamente maioritária da jurisprudência ( cfr Acs do Supremo de 20/06/1975, BMJ 248º, 402, de 5/04/1979, RLJ 112º, 285, de 19/03/1985, BMJ 345º, 405, de 25/08/1986, BMJ 358º, 570 e de 27/05/ 2003, CJ/S de 2003, Tº IIº, 78 e desta Relação de 15/10/91, CJ T4º, 108 e de 24/03/ 1992, BMJ 415º, 739, podendo ainda citar-se o Ac da RP de 31/10/2002, CJ 2002, Tº4º, 195).
Sobre esta temática diremos que nos parecem inteiramente convincentes os argumentos aduzidos por esta corrente jurisprudencial, a regulamentação comum dos dois tipos de responsabilidade consta dos artº 562º e ss do CCivil e não dos artºs 483 ºe ss em que indicam os pressupostos da obrigação de indemnizar de fonte extra contratual, com base em facto ilícito ou no risco, estabelecendo o artº 498º o seu regime próprio de prescrição sendo certo que seria absurdo que o legislador tivesse previsto dois prazos de prescrição para a responsabilidade civil ex contractu: um de vinte anos para a prescrição do direito à prestação convencionada e outro de simples três anos para a prescrição do direito à indemnização pelo incumprimento ou pelo cumprimento defeituoso da prestação.
Não sendo contudo motivo do recurso a aplicação ao direito que a recorrente pretende fazer valer do regime de prescrição ordinária que é de vinte anos - artº 309º do CCivil - foram as partes devidamente notificadas para se pronunciarem, por aplicação do princípio da proibição das decisões surpresa, vindo apenas a R discutir o conhecimento de tal questão por este tribunal, por estar fora do objecto do recurso que unicamente incidia sobre o decurso ou não daquele dito prazo de três anos.
Não tem razão a R, com o devido respeito.
Na verdade, o tribunal é livre no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito e no caso as regras próprias do instituto da prescrição, não estando sujeito às alegações das partes, senão quanto aos factos por elas articulados ( artº664º do CProc. Civil)
Certo que a prescrição não é de conhecimento oficioso, como bem se sabe, no entanto foi a própria R que a trouxe à liça na sua contestação, cabendo ao tribunal portanto ( tanto ao da 1ª instância, como ao de recurso) plena liberdade na interpretação e aplicação do regime aplicável ao caso, desde que cumprido o devido contraditório.
Ou seja, o conhecimento oficioso do direito que está reservado aos tribunais apenas fica condicionado e deve ser compaginado com a actuação do princípio consignado no artº 3º, nº3 do CPC( proibição das decisões – surpresa ) devendo as partes ser previamente ouvidas, sempre que a subsunção a determinado instituto não corresponda à previsão das mesmas, expressa no processo ou no recurso.
E tendo sido dado por este tribunal adequado cumprimento ao contraditório, à recorrida caberia sim discutir a boa ou má aplicação do direito substantivo, o que não fez, quedando-se por invocar normas de índole processual inaplicáveis à situação.
Donde e ainda que por razões diferentes das invocadas no recurso tenhamos por aderirmos ao entendimento de que o prazo de prescrição da responsabilidade civil previsto no artº 498º é apenas aplicável à responsabilidade civil extra contratual que julgar procedente o recurso, por longe estar decorrido o prazo ordinário de prescrição que é de vinte anos (artº 309º do CCivil), em razão dos danos resultarem de uma prestação alegadamente deficiente de fornecimento de energia a que a recorrida estava contratualmente adstrita para com a A, tornando-se inútil discutir a questão da interrupção verificada, nos termos previstos no artº 660, nº2 do CPC.

V – Nos termos e pelas razões expostas, decidimos, ainda que com diferente fundamentação, julgar procedente o recurso e, como tal, revogar o despacho saneador sentença julgando-se improcedente a excepção peremptória da prescrição do direito peticionado e devendo pois os autos prosseguir termos com a elaboração da base instrutória, inexistindo outras questões que importe apreciar.
Custas a cargo da recorrida.