Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/09.7GEACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: FALTA INJUSTIFICADAS DE COMPARECIMENTO
DETENÇÃO
Data do Acordão: 11/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 116º,254º, 1 B) CPP
Sumário: 1. A detenção para assegurar a comparência de uma pessoa é uma limitação da liberdade individual estando prevista na CRP e no CPP sendo necessária enquanto meio para assegurar a efectivação do processo e da justiça.
2. Não é de aplicar uma medida de privação da liberdade sem ajuizar primeiro eventual justificação da falta ou sem assegurar a notificação pessoal e directa do mesmo, tanto mais que aquela medida de detenção, para além de se traduzir numa privação temporária da liberdade, pode significar um estigma para o arguido perante familiares e vizinhos.
Decisão Texto Integral: Processo e recurso n.º 111/09.7GEACB-A.C1
Em conferência na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
1- No 2° Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, no processo acima referido, foi o arguido I... notificado pelos serviços do Ministério Público para comparecer no tribunal no dia 14-9-2009 para aí ser inquirido, notificação essa que foi por via postal simples, com prova de depósito e depositada no receptáculo postal do arguido ( fls 7 e 8 ). Porém , tendo aquele faltado à diligência para o efeito designada, e porque não comunicou e nem justificou atempadamente a sua impossibilidade de comparência, promoveu o MP que lhe fosse aplicada a multa devida e a emissão de mandados de detenção para comparência, tudo nos termos do art. 116.º 1 e 2 e 254.º-1-b) do CodProcPenal ( fls 10 ) .
Porém, por despacho de fls 11 ss, o sr juiz do processo indeferiu a promoção no que se refere à emissão dos mandados de detenção.

2- Inconformado, interpôs recurso o MP, concluindo as alegações de recurso deste modo :
No caso em apreço, dos autos resulta : a) O ofendido foi expressamente advertido do disposto nos artigos 113° e 145° n°s. 5 e 6, do Código de Processo Penal ; b) Foi notificação por via postal simples, com prova de depósito ; e) Essa notificação foi depositada no seu receptáculo postal dela tendo tomado conhecimento ; d) Teve conhecimento, conforme consta expressamente da referida notificação, das consequências legais da sua falta ; e) Faltou à diligência para o efeito designada, não comunicou e nem justificou atempadamente a sua impossibilidade de comparência ; f) Não veio aos autos indicar ter mudado de residência ; g) Pelo que o seu comportamento, não só é culposo, assim como deliberada foi a sua falta.
Tendo sido observado o estabelecido nas disposições legais conjugadas dos artigos 112°, n° 3, al. b), 113°, n°s, 1, al.. c) e 3 e 145°, n° 5 e 6, do Código de Processo Penal, na redacção que lhes foi dada pelo D.L. n° 320-C/2000, de 15 de Dezembro, há que considerar que o ofendido não só se mostra notificado, como de facto, se mostra regular e legalmente notificado, dado que a lei não exige a notificação pessoal para a sua presença no acto processual em apreço;
Nos termos do disposto nos artigos 137° e 138°, n° 1, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4°, do Código de Processo Penal, « não é lícito realizar no processo actos inúteis", sendo que "os actos processuais terão a forma que, nos termos mais simples, melhor corresponda ao fim que visam atingir ».
Contrariamente aos fundamentos de facto enunciados no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, sufragados no igualmente douto despacho a quo, dado que naquele a situação fáctica se reportava à circunstância "do aviso postal que foi remetido ao arguido ter sido devolvido com a indicação de que o mesmo já não residia naquele local e isto significar que a subsequente falta de comparência não resultar do facto de ter tido conhecimento dessa convocatória ;
Exigir-se, como pressuposto prévio à emissão de mandados de detenção para comparência em diligência nos Serviços do Ministério Público de Alcobaça, a realização de outras diligências, designadamente a notificação pessoal do faltoso, tal exigência traduz-se na prática de um acto processual desnecessário, supérfluo, inútil, dilatório, e que não tem por fim "pôr cobro à morosidade processual";
Ao ter assim decidido, violou a Mma. Juiz a quo o disposto nos artigos 112°, n° 3, ai. b), 113°, n°s, 1, al. c) e 3, 116°, n° 2, 145°, n° 5 e 6, 254°, al. b), todos do Código de Processo Penal e 137° e 138°, n° 1, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4°, do primeiro Diploma legal citado.
Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, porque provado, devendo V'. Ex's. ordenar ao Mm°. Juiz a quo que substitua o despacho recorrido por outro, no qual ordene a emissão de mandados de detenção

3- Neste tribunal, o Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso

4- Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência

5- O despacho recorrido tem, em resumo e com interesse, o seguinte teor : « (...) não pode de forma alguma ser olvidada a circunstância de ( o arguido ) não ter sido notificado pessoalmente. Na verdade, tendo a notificação sido efectuada por carta simples, com prova de depósito, ficará sempre a dúvida se o ofendido reside efectivamente na morada que indicou nos autos, ou, eventualmente, se ausentou temporariamente para outro local. Em nosso entendimento, deverão previamente ser esgotados outros meios (eventualmente por intermédio do OPC) para que se possa concluir, com segurança, que o visado reside na morada que indicou e que foram realizadas todas as diligências possíveis para que o mesmo fique ciente da notificação efectuada. Assim sendo, e em face de todo o exposto, temos para nós que, muito embora tenha havido uma falta injustificada por banda do ofendido, tal falta não pode ser vista como um comportamento faltoso negligente ou deliberado de índole a justificar a emissão dos requeridos mandados de detenção. Termos em que, e por não se nos afigurar proporcionado e adequado, proceder, por ora, à comparência forçada, mediante detenção, decide-se pelo indeferimento da requerida emissão dos mandados de detenção »
Entretanto, o art. 116.º do CodProcPenal dispõe como segue : « 1 — Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC. 2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado injustificadamente pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem assim, condenar o faltoso ao pagamento das despesas ocasionadas pela sua não comparência, nomeadamente das relacionadas com notificações, expediente e deslocação de pessoas. Tratando -se do arguido, pode ainda ser-lhe aplicada medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível (...) »
Em fundamento do seu despacho o sr. juiz invoca ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-2-2008 ( www.dgsi.pt ), que diz em resumo e com interesse : « o que resulta literalmente deste texto ( art. 116.º2 do CodProcPenal ) é que muito embora a falta de comparência injustificada seja desde logo sancionada com o pagamento de uma multa – no n.º 1 alude-se “o juiz condena o faltoso” –, tal não significa que tenha como consequência imediata a emissão de mandados de detenção para comparência – no n.º 2 menciona-se “o juiz pode ordenar”.
(...) estando em causa os direitos e liberdades de um cidadão a sua restrição, ainda que provisória, deve ter sempre carácter excepcional, devendo sujeitar-se aos critérios de proporcionalidade, adequação e necessidade impostos pelo art. 18.º, n.º 2 da C. Rep. – veja-se ainda o seu art. 27.º, n.º 3, al. f).
Convém assim precisar, sob pena de se cair no arbítrio, em que justa medida deve ser decretada a comparência forçada daquele que falta injustificadamente perante os Serviços do Ministério Público, quando regularmente convocado para o efeito (...).
A propósito estipula-se no art. 27.º, n.º 1 da C. Rep. que “Todos têm direito à liberdade e à segurança”, precisando-se de seguida no seu n.º 2 quais as situações em que tal direito pode ser restringindo.
Uma dessas situações de excepcionalidade, é a prevista na sua al. f), cuja redacção é a seguinte: “Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante a autoridade judiciária competente”.
Esta imposição constitucional vem na sequência do preceituado, praticamente em termos similares, no art. 5.º, n.º 1 da CEDH, segundo o qual “Toda a pessoa tem direito à liberdade e à segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal”, designadamente, “Se for preso ou detido legalmente, por desobediência a uma decisão tomada em conformidade com a lei, por um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma obrigação prescrita na lei.” (...) atento o carácter excepcional da restrição dos direitos, liberdades e garantias, não podemos conceber essa comparência forçada do faltoso, como uma medida ordinária(...)
A propósito a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem insistido que nestes casos em que a lei permite a detenção forçada para comparência, deverá estar em causa uma obrigação específica e concreta, onde tenha havido, pelo menos, negligência no seu cumprimento – neste sentido os casos Engels e outros (série A, n.º 22, p. 22, § 69), Guzzardi (p. § 101); Ac. de 1989/Fev./22, no caso Ciulla/Itália (série A, n.º 148, p. 16, § 36); Perks/Reino Unido (1999), 30, 33.
Para o efeito, essa obrigação específica deve- se manter, concedendo-se sempre uma possibilidade efectiva e prévia para o seu cumprimento.
Por outro lado, essa detenção forçada deve ser vista como uma medida necessária ou o único meio possível, sem que exista qualquer outra alternativa possível ou compatível para que se efectue o cumprimento dessa obrigação de comparência e não para sancionar o comportamento faltoso passado ».
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da Repú­blica Portuguesa Anotada, 3." ed., Coimbra, 1993, p; 153), "o princípio da proporcionalidade” (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente prote­gidos); b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); c) principio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa 'justa medida', impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos".
A doutrina alemã utiliza indistintamente as nomenclaturas proporcionalidade e proibição de excesso, enquanto no direito anglo-saxónico se prefere o termorazoabilidade”.
Entre nós, a consagração constitucional do princípio da propor­cionalidade não merece contestação, pelo menos desde 1982. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa, desde a primeira revi­são constitucional, consagra no seu artigo 2.° o Estado de direito demo­crático, sendo certo que o princípio da proporcionalidade se encontra ínsito nesse conceito político-jurídico, do qual constitui uma necessária decorrência. De resto, o Tribunal Constitucional tem sucessivamente reconhe­cido o valor constitucional do princípio da proporcionalidade (cf., de entre muitos outros, os Acórdãos n.os 25/84, inAcórdãos do Tribunal Constitucional, 2.° vol., p. 7, 85/85, in Acórdãos do Tribunal Cons­titucional, 5.° vol., p. 245, 64/88, inAcórdãos do Tribunal Constitucional, 11.° vol., p. 319, 349/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.° vol.,. p. 507, 363/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.° vol., p. 79, 152/93, inAcórdãos do Tribunal Constitucional, 24.° vol., p. 323, 634/93, inAcórdãos do Tribunal Constitucional, 26.° vol., p. 205, 370/94, in Diário .da República, 2.a série, de 7 de Setembro de 1994, 494/94, in Diário da República, 2." série, de 17 de Dezembro de 1994, 59/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.° vol., p. 79, 572/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32.° vol., p. 381, 758/95, inAcór­dãos do Tribunal Constitucional, 32.° vol., p. 803, 958/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.° vol., p. 397, e 1182/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35.° vol., p. 447).
É por isso necessário encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio objectivo da ordem jurídica, princípio geral de direito, em que releva a ideia central de que o meio utilizado para atingir certo objectivo deve estar numa determinada relação com esse objectivo em termos de ido­neidade, necessidade e racionalidade do meio em relação ao fim, necessária ponderação do conflito de valores e de interesses. Aliás, a Constituição da República Portuguesa (CRP) prevê situações de detenção pelo tempo que a lei determinar e que constam, nomeadamente, dos artigos 85.º, 254.º, 273.º, 322.º, 301.º, 331.º e 335.º do CodProcPenal , sendo que a detenção da pessoa que falte, sem justificação, à ordem de comparência cuja presença se revele necessária, está incluída na alínea f) do artigo 27.º, n.º 3, da CRP e prevista nos artigos 116.º, n.º 2, e 254.º, alínea b), do CodProcPenal . Sendo assim, tem de se concluir que a detenção para assegurar a comparência de uma pessoa é uma limitação da liberdade individual estando prevista na CRP e no CodProcPenal, embora necessária enquanto meio para assegurar a efectivação do processo e da justiça
A privação de liberdade por tempo absolutamente necessário surge, então, como um efeito prático da desobediência, da rebeldia de qualquer dos sujeitos ou intervenientes processuais em acatar ordem judicial, contra o imperativo constitucional enunciado no artigo 205.º, n.º 2, da CRP, estabelecendo a obrigatoriedade de observância das decisões dos tribunais.
Mas precisamente aquela dignidade constitucional e processual justifica que a aplicação da medida de detenção para comparência seja condicionada em função de exigências processuais e de controle pelo Ministério Público ou pelo juiz. Não obstante aquela detenção não ter qualquer propósito cautelar, de protecção imediata a bens jurídico-penais, como é característico das medidas de coacção, maxime da prisão preventiva, distinguindo-se também da detenção regulada nos artigos 254.º sgs do CodProcPenal --- que vive e se rege por princípios próximos e comuns àquela prisão preventiva, por exemplo, o da adequação, do pedido, prazo, proporcionalidade e necessidade, não dispensando como a prisão preventiva, condições materiais de justificação e índices racionais de culpabilidade (cf. A Tramitação do Processo Penal, de J. Castro e Sousa, 1985, Coimbra ed., p. 70, nota 60) --- , o facto de configurar uma medida de restrição da liberdade impõe que a necessidade e as modalidades da sua aplicação devam ser entendidas em sentido restritivo, não devendo o aplicador da lei prescindir da dimensão fundamental da “razoabilidade” . Por isso, como refere o Ac RPorto citado , se essa imposição de comparência forçada se mostra em conformidade com o artigo 5.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a ela deve estar ligada, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, uma específica e concreta obrigação onde tenha havido intencionalidade no seu incumprimento ou, pelo menos, negligência. Assim nos casos Engels e outros (série A, n.º 22, p. 22, § 69), Guzzardi (§101); Acórdão de 22 de Fevereiro de 1989, Ciula/Itália (série A, n.º 148, p. 16, § 36), Perks, Reino Unido (1999), 30/33, chamando a atenção para o dever de previamente ser dada a possibilidade de o notificado comparecer livremente ou advertido das consequências dessa falta. ( no mesmo sentido, por ex. Jean François Renucci, in Traité de Droit Européenne des Droits de L'Homme, 2007, p. 306, Ireneu Cabral Barreto, em A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 1999, 95, Christina Ashton & Valerie Finch, in Humans Rights & Scots Law, 2002, p. 69 ).
Por seu turno, o TribConstitucional, nos seus Acórdãos n.os 363 ( in DR, 2.ª série, de 13 de Novembro de 2000 ) e 184/2006 (DR, 2.ª série, de 17 de Abril de 2006 ), invocando o princípio da proporcionalidade, tem decidido no sentido do uso razoável daquela privação de liberdade, no sentido de dela se lançar mão só quando se conclua por uma intolerável indiferença para com a ordem judicial
Ora, no caso presente, como acentua o despacho recorrido, não se sabe, dado o tipo de notificação empregue, se o arguido teve ou não conhecimento da convocatória para comparecer no tribunal a fim de aí ser ouvido. Por isso, seria excessivo estar aplicar uma medida de privação da liberdade sem ajuizar primeiro eventual justificação da falta ou sem assegurar a notificação pessoal e directa do mesmo, tanto mais que aquela medida de detenção, para além de se traduzir numa privação temporária da liberdade, pode significar um estigma para o arguido perante familiares e vizinhos.
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Decisão :
Pelos fundamentos expostos :
I- Nega-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.

II- Sem custas
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( PauloValério )

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( Frederico Cebola )