Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
235/06.2GCFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CRIME DE DANO
DIREITO DE QUEIXA
PROPRIETÁRIO
POSSUIDOR
Data do Acordão: 11/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113º, 1. 212º DO CP, 49º DO CPP
Sumário: 1. No crime de dano, tanto o proprietário como o possuidor são titulares do direito de queixa.
Não resultando que o queixoso fosse portador de qualquer título que o legitimasse a defender a posse e a propriedade do objecto danificado carece o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

Em Processo Comum Singular do Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, por sentença de 09.02.03, foi, com interesse para a apreciação do presente recurso, decidido:

- Condenar o arguido N..., como autor material, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212, n.º 1, do C.P. na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
- Condenar cada um dos arguidos F..., B... e I..., em co-autoria, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 146º, do C.P. na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
Inconformado, o arguido N... interpôs recurso da sentença, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
“ 1º) A douta sentença recorrida violou as seguintes normas jurídicas:
- O artigo 212º, nº 3 do Cód. Penal;
- O artigo 113º, nº 1 do Cód. Penal; e
- O artº 49º, nº 1 do Cód. Proc. Penal.
2º) Dando como não provado que o veiculo danificado (matrícula 00-75-ON) não é pertença de F..., e
3º) Considerando que o referido F... é que apresentou queixa pelos danos provocados no veículo,
4º) Deveria decidir-se na estrita obediência do disposto nos arts. 212.°, nº 3 e 113.°, nº 1 ambos do Cód. Penal e art. 49. °, nº 1. do Cód. Proc. Penal pela absolvição do arguido / recorrente.
5º) Com efeito o "queixoso" não tinha legitimidade para apresentar a queixa e consequentemente o procedimento criminal não deveria ter sequer sido instaurado.
6º) O verdadeiro queixoso, que terá legitimidade para a queixa, não se provou que fosse o F...; será outro que não ele.
7º) A douta sentença deveria ter levado em linha de conta, a aplicação das normas jurídicas supra referidas e nessa sequência absolver o arguido, ora recorrente N...”.
Também o arguido F... interpôs recurso da referida sentença, concluindo a sua motivação, pela seguinte forma:
A) O arguido não praticou o crime pelo qual foi condenado, pelo que deve ser absolvido do mesmo.
B) Salvo o respeito devido a melhor opinião não foi provado em sede de audiência e julgamento que:
Ainda no mesmo dia, mas por volta das 17,30H, quando a ofendida M... (mãe do arguido N…) se encontrava na sua residência, sita em A…, em Figueiró dos Vinhos, os arguidos B…, F...I... acompanhados de C... e de V…, dirigiram-se à mesma, batendo no portão de acesso à sua habitação.
No momento em que a ofendida se aproximou do portão, a arguida I... agarrou a ofendida pelos cabelos e puxou-a para a via pública.
Acto contínuo, o arguido B... começou a desferir-lhe pancadas com um ferro, no braço direito e nas nádegas.
Simultaneamente, o arguido F...desferiu várias pancadas nas costas da ofendida, com um objecto não concretamente apurado.
C) As declarações das testemunhas carreadas para os autos pela acusação foram nos seus depoimentos esclarecedoras que o arguido F...nunca esteve no local onde ocorreram as agressões, bem como.
D) Resulta provado nos autos que no dia 2 de Dezembro de 2.006, não foi praticado qualquer crime pelo arguido.
E) O depoimento da ofendida não deveria ter sido merecido qualquer credibilidade pelo Tribunal;
F) Aliás, apesar de a Meritíssima Juiz a "a quo" afirmar fundar a sua convicção no depoimento da ofendida, a verdade é que após o depoimento da mesma, o Tribunal se viu na necessidade chamar e ouvir novas testemunhas,
G) Atento as contradições entre o depoimento da ofendida, e os depoimentos dos arguidos e das testemunhas de acusação, pelo menos deveria o arguido ter sido absolvido por força do princípio "in dúbio pró réu ".
H) Existe manifesta contradição entre a matéria dada como provada e não provada.
I) Houve erro notório na apreciação da prova, violou o disposto no artº 410º nº 2 c) do CPP.
J) Em suma ao condenar o arguido o Tribunal "a quo", violou o disposto nos artºs 145 nº 1 al. b) nº 1 do Código Penal e artº 410 nº 2 c) e nº 3 todos do CPP e artº 32 nº 2 da CRP.
L) Nesta Sequência, deve a DOUTA Sentença ser substituída por outra em que se absolva o arguido.
O MP respondeu, concluindo que apenas o recurso do arguido N...deverá merecer provimento, mantendo a decisão recorrida quanto ao recorrente F....
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto conclui que apenas deve ser concedido provimento ao recurso do arguido N…, improcedendo o do arguido F....
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO


A matéria fáctica considerada provada na sentença recorrida foi a seguinte:
“ 1. No dia 1.12.2006, pelas 15h, na via pública sita na Urbanização em frente à empresa “S…”, em Figueiró dos Vinhos, os arguidos N... e F... e ainda C... envolveram-se numa discussão, por motivos não concretamente apurados.
2. Na sequência de tal contenda, o arguido N... desferiu um pontapé no farolim de iluminação dianteiro da viatura automóvel de matrícula 00-00-ON que se encontrava parqueada na referida rua.
3. O embate do pontapé no farolim provocou a quebra do mesmo.
4. O arguido N... quis destruir parte componente da viatura em causa, sabendo que a mesma pertencia a outrem e que tal conduta é punida e proibida por lei.
5. Ainda no mesmo dia, mas por volta das 17h30, quando a ofendida M... (mãe do arguido N...) se encontrava na sua residência, sita em A…, em Figueiró dos Vinhos, os arguidos B..., F...e I..., acompanhados de C... e de V…, dirigiram-se à mesma, batendo no portão de acesso à sua habitação.
6. No momento em que a ofendida se aproximou do portão, a arguida I... agarrou a ofendida pelos cabelos e puxou-a para a via pública.
7. Acto contínuo, o arguido B... começou a desferir-lhe pancadas com um ferro, no braço direito e nas nádegas.
8. Simultaneamente, o arguido F... desferiu várias pancadas nas costas da ofendida, com um objecto não concretamente apurado.
9. Enquanto a ofendida era agredida pelos outros arguidos, a arguida I... segurava-a pelos cabelos.
10. A determinada altura, os arguidos pararam as agressões, libertando a ofendida.
11. Nesse momento, o arguido B... deixou cair o ferro com que tinha batido na ofendida e esta, aproveitando-se de tal facto, segurou-o com o objectivo de se defender.
12. Contudo, o referido arguido segurou igualmente no ferro e com um esticão conseguiu arrancá-lo das suas mãos, provocando-lhe um corte na mão direita da mesma.
13. As referidas agressões perpetradas pelos arguidos provocaram a M... hematoma no braço direito, escoriação na região fronto-temporal-direita; duas escoriações no mento; ferida incisiva na flexura do dedo polegar da mão direita, suturada com cinco pontos de seda, ferida incisa no cotovelo direito, suturada com três pontos de seda e várias equimoses na região dorsal, omoplatas e hematoma parieto-occipital direito, que lhe determinaram 14 dias de doença.
14. Em consequência directa e necessária das agressões perpetradas pelos arguidos a ofendida teve dores e desconforto.
15. Ao agir da forma relatada, de forma concertada e em conjugação de esforços, quiseram os arguidos atingir a integridade física da queixosa, o que lograram.
16. Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
17. A ofendida M... deslocou-se, a fim de receber tratamento médico, ao SAP do Centro de Saúde Figueiró dos Vinhos no dia 1.12.2006 tendo sido despendido, por este, em consulta e tratamento, o valor de € 197,90.
18. O arguido N... aufere, da sua actividade profissional, a quantia mensal de € 426,00.
19. Presta ainda serviços de jardinagem auferindo, nos meses de Inverno, em média, uma quantia mensal aproximada de € 100,00 e nos meses de Verão € 200,00.
20. Vive com os pais, em casa destes.
21. Completou o 9º ano de escolaridade.
22. Tem os seguintes antecedentes criminais: por factos praticados em Maio de 2005, foi o arguido condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 e 25º, al. a), do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro na pena de 1 ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, a qual transitou em julgado em 15.1.2007.
23. O arguido F... é vendedor ambulante, auferindo, em média, a quantia mensal de € 500,00/€ 600,00.
24. A arguida I... é também vendedora ambulante, auferindo, em média, a quantia mensal de € 250,00.
25. Estes dois arguidos são casados entre si e têm três filhos menores, de 11, 7 e 2 anos de idade.
26. Moram em casa arrendada, pela qual pagam a quantia mensal de € 250,00.
27. O arguido F... não tem antecedentes criminais,
28. A arguida I... tem antecedentes criminais, por factos praticados em 10.4.97, tendo sido condenada pela prática do crime de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art. 23º, n.º 1, do D.L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 40 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 8.3.2002.
29. O arguido B... é vendedor ambulante e aufere, mensalmente, a quantia aproximada de € 400,00 a € 500,00.
30. Mora com a mãe, em casa desta.
31. O arguido tem antecedentes criminais, tendo sido condenado pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27.6, por factos praticados em 7.3.04, na pena de 60 dias de multa, por decisão transitada em julgado em 13.7.04.”
Factos não provados:
“ - o veículo de matrícula 00-00-ON é pertença de F...;

- instantes depois, o arguido F... desferiu várias pancadas com um ferro no ciclomotor de matrícula não apurada, pertença do arguido N..., que também aí se encontrava parqueada, destruindo e quebrando partes não concretamente determinadas;

- O arguido F... quis destruir partes componentes da viatura em causa, sabendo que a mesma pertencia a outrem e que tal conduta é punida e proibida por lei;

- os factos descritos em 5. tenham ocorrido no dia 2 de Dezembro de 2006;

- o farolim danificado tenha um valor de € 150,00;

- para instalação de um novo farolim, por mecânico, se despenda a quantia de € 100,00;

- o demandante F... tenha perdido tempo e deslocações com a destruição do farolim;

- o demandante F..., ao ver a sua propriedade destruída, tenha ficado chocado, inquieto, triste e psicologicamente abatido;

- as peças do ciclomotor do demandante N... concretamente danificadas tenham sido o radiador, a panela de escape, o cubo da roda de trás, a cremalheira, a cabeça e junta do motor e tampa de válvulas;

- para a reparação de tais peças o demandante N... tenha despendido a quantia de € 1.714,35;

- os arguidos F..., B... e I... sejam pessoas inseridas socialmente, sérias, honestas e trabalhadoras e estimadas no meio onde vivem.

Os demais factos, não especificamente dados como provados ou não provados estão em oposição ou constituem a negação de outros dados como provados ou não provados ou contêm expressões conclusivas ou de direito ou são irrelevantes para a decisão da causa.”.

Motivação de facto:

“A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento e na documental junta aos autos.

Assim, no que respeita aos factos ocorridos entre o arguido N... e o arguido F..., no dia 1.12.06, na via pública junto à empresa S…, no que à conduta do primeiro arguido concerne, o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações do próprio porquanto, neste particular, admitiu ter desferido um pontapé no veículo de matrícula 00-75-ON, com o qual partiu o farolim dianteiro. Ora, se bem que o arguido tenha apresentado uma justificação/motivação para o seu comportamento – como forma de dissuadir o arguido F... de partir o seu ciclomotor – certo é que tal versão não se mostrou convincente. Na verdade, todo o seu depoimento, nesta parte, se mostrou bastante apaixonado, com falta de clareza, objectividade e distanciamento, imputando a conduta de destruição do seu ciclomotor tanto ao arguido F... como a C... quando estes negaram todo o circunstancialismo. Por assim ser e porque o seu depoimento foi dotado de contradições, imprecisões e desconformidades lógicas, o Tribunal desconsiderou-o na parte relativa aos factos imputados ao arguido F....

Diferentemente e quanto ao sucedido na A…, entre os arguidos F..., B... e I... e a ofendida M... , em primeiro lugar, quanto à data e hora, todos os arguidos, bem como a ofendida, foram unânimes e coincidentes na sua determinação. Quanto à dinâmica dos factos, local e autoria, lesões e danos o tribunal alicerçou a sua convicção no depoimento da ofendida a qual, com extrema serenidade, calma, clareza, objectividade e coerência, soube descrever toda a factualidade constante do libelo acusatório. A ofendida descreveu a forma e o motivo por que acedeu ao exterior da sua habitação; identificou, sem qualquer dúvida, todas as pessoas que se encontravam à sua porta, porquanto estiveram junto de si e ainda havia alguma luz na rua e relatou, pormenorizadamente, a forma como cada um dos arguidos a agrediu e as partes do corpo atingidas. Pese embora os arguidos tenham negado, no essencial, a prática dos factos (à excepção da arguida I..., a qual assumiu ter puxado os cabelos da ofendida mas negou qualquer intervenção dos demais) e nenhuma outra testemunha tenha corroborado a versão da ofendida, certo é que esta, encaminhada para o SAP do Centro de Saúde de Figueiró dos Vinhos nesse mesmo dia (cfr. doc. de fls. 346), apresentava as lesões descritas no ponto 13 da factualidade provada as quais são, na íntegra, totalmente compatíveis com toda a descrição factual que fez em relação à conduta dos arguidos. Da conjugação do seu depoimento e da forma como o fez com os relatórios periciais juntos aos autos a fls. 140 e ss., 145 e ss. e ainda da reportagem fotográfica das lesões constantes de fls. 218 a 227, dúvidas não teve o Tribunal em dar por provada tal factualidade.

Relativamente à assistência médica prestada à ofendida no SAP do Centro de Saúde de Figueiró dos Vinhos e seu valor, o Tribunal baseou-se nos documentos de fls. 346 e 347 dos autos.

No que respeita aos antecedentes criminais dos arguidos, analisados foram os respectivos certificados de registo criminal de fls. 451 e 452, 446, 456 e 457 e 453 e 454 dos autos.

No que à situação económica e pessoal dos arguidos concerne, o tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pelos próprios, não tendo sido feita qualquer prova em sentido contrário que as infirme.

No que respeita à matéria de facto dado por não provada, a sua resposta deveu-se à ausência ou insuficiência da prova. Na verdade, relativamente à propriedade o veículo de matrícula 00-00-ON, foi pelo próprio demandante F... referido que o mesmo é pertença do seu irmão – B..., o qual foi corroborado tanto pelo próprio como pela testemunha C..., motivo pelo qual o Tribunal não teve qualquer dúvida em dar o mesmo por não provado.

Já quanto aos factos atinentes à conduta do arguido F... em relação ao ciclomotor e respectivos danos, pelas razões supra expostas – falta de credibilidade do depoimento do ofendido/arguido N... – foram os mesmos dados por não provados.

No que aos danos atinentes ao farolim concerne não foi feita qualquer prova no sentido da sua verificação, nem dos prejuízos sofridos pelo demandante, motivo pelo qual o Tribunal os deu por não verificados.

Quanto à personalidade dos arguidos F..., B... e I..., para além do depoimento do irmão e cunhado dos arguidos – F... – mais nenhuma outra prova foi feita sendo certo que, dadas as relações familiares, não mereceu o depoimento da necessária isenção para fundar a convicção do Tribunal nesse sentido.”.


*
As conclusões das motivações balizam o objecto do recurso.
Assim as divergências dos recorrentes assentam nos seguintes pontos:

- Inexistência de queixa;

- Vícios de contradição entre a matéria dada como provada e não provada e erro notório na apreciação da prova;

- Princípio in dubio pro reo.

Passemos então à sua análise.
A) Da inexistência de queixa
Alega o recorrente N... que, não sendo o veículo, matrícula 00-00-ON, pertença do queixoso F..., não era ele o titular do direito de queixa e, como tal, tem o recorrente de ser absolvido.
Vejamos.
Está em causa um crime de dano, traduzido na quebra do farolim de iluminação dianteiro da identificada viatura automóvel.
Dispõe o artº 212º nº 1 CP:
“ Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Resulta pois que para que um acto possa ser classificado como integrador do referido crime de dano, se torna necessária a verificação dos seguintes elementos constitutivos:
- a destruição, total ou parcial, danificação, desfiguração ou inutilização de uma coisa.
- a qualidade alheia dessa coisa.
- o dolo, traduzido na vontade de praticar o facto, com consciência de que a sua acção sacrifica coisa alheia e de que tal comportamento é ilícito.
Com tal incriminação protege-se a propriedade contra agressões que atingem directamente a existência ou a integridade do estado da coisa.
O procedimento criminal depende de queixa (artº 212º nº 3 CP).
Nos termos do artº 113º nº 1 CP:
“ Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Assim enquanto Costa Andrade entende que o direito de queixa deve ficar restrito ao proprietário Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 237., já Figueiredo Dias As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 669. defende que no crime de dano, tanto o proprietário como o possuidor são titulares do direito de queixa.
Perfilhamos esta última posição, porquanto é a que mais se harmoniza com a letra da lei.
Na verdade o legislador ao utilizar as expressões “ destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável”, quis abranger não só o proprietário pleno mas também aquele que goza, frui ou usa esse bem.
É que não faria qualquer sentido, com todo o respeito que nos merece a opinião contrária, deixar apenas na disponibilidade do proprietário pleno, o direito exclusivo de queixa relativamente a um facto que afecta em primeira linha aquele que goza e frui o bem.
Com efeito é este que estando no gozo da coisa é directamente atingido no seu gozo, fruição e uso, pelo que deve poder defender esse seu direito, sem estar na dependência de uma eventual queixa do proprietário pleno.
Seja como for o certo é que no caso em análise, conforme resulta da matéria de facto provada, não só não ficou demonstrada a titularidade do veículo, já que foi dado como não provado que o mesmo pertencia ao queixoso F..., nem se provou que este o usufruísse.
Quer dizer não resulta que o queixoso fosse portador de qualquer título que o legitimasse a defender a posse e a propriedade da viatura.
Consequentemente, à luz de qualquer uma das citadas teses doutrinárias e jurisprudenciais, o denunciante não era titular do direito de queixa.
Ora sendo este um requisito de procedibilidade da acção penal (artºs 113º nº 1 CP e 49º CPP), carece o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal.
Termos em que sem outras considerações se julga extinto o procedimento criminal referente ao crime de dano por que vinha condenado o arguido N....
B) Dos vícios de contradição entre a matéria dada como provada e não provada e erro notório na apreciação da prova
Conforme decorre da leitura da motivação e das conclusões formuladas pelo recorrente F..., a questão fundamental que é colocada é a de saber se a decisão recorrida padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova;
Sucede porém que ao longo da motivação bem como das conclusões aquilo que verdadeiramente o arguido faz é recorrer da matéria de facto.
Em suma o recorrente assenta a invocação dos vícios na impugnação que faz da matéria de facto, o que não é admissível.
Mistura assim questões que são substancialmente diferentes e que não se podem de modo algum confundir.
A saber: erro de julgamento e os aludidos vícios.
É que o primeiro só existirá quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que tivesse sido feita prova do mesmo e como tal deveria ter sido considerado não provado. Ou então quando se dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Por sua vez o vício do erro notório na apreciação da prova a que alude o artº 410º nº 2 c) CPP, nada tem a ver com aquele.
Com efeito como escrevem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740. “ Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.”
Por sua vez a contradição insanável de fundamentação consubstancia um vício previsto no artº 410º b) CPP o qual se verifica, segundo Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, pág. 739., “ quando de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados.”
E referem ainda os referidos autores que “ Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade ou na qualidade.
Para os fins do preceito (al. b) do nº 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência”
E acrescentam os referidos autores que “ As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de ser decretada a renovação da prova são somente as contradições internas, rectius intrínsecas da própria decisão considerada como peça autónoma.”
E compreende-se que assim seja, porquanto nos termos do artº 410º nº 2 CPP os vícios em causa têm de resultar do texto da sentença, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo admissível a consulta a outros elementos que constem do processo.

Assim as raízes de tais vícios têm de estar implantadas na decisão recorrida.
Ora no presente caso, ao fim e ao cabo o que o recorrente pretende é que a prova produzida não pode levar a que se tenham sido dados como provados os pontos 5, 7 e 8. Daí que invoque várias declarações e depoimentos.
É pois patente que a alegação nada tem a ver com tais vícios, mas apenas com a divergência sobre a forma como o tribunal apreciou a prova.
Seja com for, não deixará este tribunal de interpretar o recurso interposto como pretendendo impugnar a referida matéria de facto.
Passemos então a apreciá-la.
Argumenta o recorrente que a matéria de facto constante daqueles pontos foi incorrectamente julgada, pois na sua perspectiva o depoimento da ofendida não merece credibilidade.
Em defesa da sua versão que nega a prática do crime invoca as declarações que foram prestadas pelos arguidos B... e I... e o depoimento da testemunha C… .
Pois bem como é sabido o artº 127º CPP estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo.
Como refere Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
Por outro lado a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade é que uma coisa é ouvir, ver, apreciar gestos, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente, é ouvir Cds ou cassetes ou ler transcrições do que foi dito de viva voz.
E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. Alberto dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
E estes factores têm de ser tidos em conta mesmo no caso dos presentes autos, em que as provas se encontram gravadas.
De resto, e como é sabido, o recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas antes constitui um mero remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre tal matéria.
Vejamos então em pormenor a relevância da invocada prova relativamente à facticidade impugnada.
Na motivação do seu recurso o recorrente, como vimos reconhece que as conclusões sobre a facticidade provada têm o seu suporte no depoimento da ofendida.

Porém entende que a versão por si defendida é que deveria ser aquela a ter acolhimento pelo tribunal.
E o que desde já se dirá é que da audição dessas declarações e depoimento, resulta claramente que o arguido não tem absolutamente qualquer razão.
Desde logo temos que à luz das regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto na ordem jurídica que o normal é que as pessoas apresentem queixa contra quem efectivamente as agrediu. Dizem-nos ainda que é muito pouco provável que alguém se auto-flagele ou se deixe ferir em zonas tão sensíveis e diversificadas, apenas com o objectivo de imputar a outrem um crime relativamente grave.
Acresce que os ferimentos que a ofendida apresentava – hematoma no braço direito, escoriação na região fronto-temporal-direita; duas escoriações no mento; ferida incisiva na flexura do dedo polegar da mão direita, suturada com cinco pontos de seda, ferida incisa no cotovelo direito, suturada com três pontos de seda e várias equimoses na região dorsal, omoplatas e hematoma parieto-occipital direito – são compatíveis com a existência de uma agressão com um ferro.
Mas há mais, conjugando aqueles elementos probatórios com o teor do depoimento da testemunha M... , ofendida, esta, depois de fazer todo o enquadramento temporal e circunstancial da forma como os factos ocorreram, relata a sua dinâmica de uma forma muito convincente nos seguintes termos:
“ …. depois vi o portão abrir e eu desci o muro e fui para fechar o portão e ao chegar ao portão apareceu a I..., o F...e o B..., ela agarrou-me para fora e puxou-me para a rua pelos cabelos e daí comecei a sentir o B... com o ferro a bater-me no braço e na nádega fiquei toda preta das várias pancadas que levei e também nas minhas costas e foi o F...que estava por trás de mim que presumo que foi com um objecto duro que eu senti, o F...deixou-me bem marcada… a D. I... continuava a segurar-me pelo cabelo para eles me darem pancadas….. depois caiu o ferro que o B... tinha na mão e eu apanhei o ferro e depois o B... veio e arrancou o ferro das minhas mãos e eu fiquei com um corte na mão direita, ele foi-se embora todo contente”
Argumenta no entanto o recorrente que o arguido F...nunca esteve junto à residência da ofendida nem nunca a agrediu, invocando as declarações dos arguidos B... e I... e o depoimento da testemunha C...
É um facto que o arguido F...nega que tenha estado presente no local onde os factos relatados pela M... se desenrolaram.
E a arguida I... igualmente confirma a versão do seu marido F...no sentido de que este não estava no local aquando dos factos, assumindo que foi ela quem puxou os cabelos da ofendida e também que foi ela que lhe bateu “ com um ferro ou com um pau que por lá havia, eu não sei o que era”.
Mais refere que o seu cunhado B..., única pessoa que a acompanhava, não fez nada e que a única coisa que fez foi tirar um ferro da mão da ofendida “ para ela não me dar na cabeça”.
Por sua vez o arguido B... dá uma versão em que manifestamente procura não só não se comprometer a si próprio, como ao irmão e à cunhada e quanto ao ferro como instrumento de agressão diz que quem o tinha era a ofendida e pretendia atingir com ele a cunhada, sendo que no seu relato apenas houve uma zaragata entre a cunhada e a ofendida.

Quer dizer, viu um ferro nas mãos da ofendida, mas já não viu o “ ferro ou o pau” que a cunhada assumidamente disse ter tido nas suas mãos.

Finalmente a testemunha C..., que trabalha para a mãe do arguido F..., referiu que quando se dirigia à A…, acompanhado do arguido F...e da mãe deste, viu a I... e o B... a regressarem ao carro e que não viu mais nada.

Ora o que decorre de tal prova é que há uma clara preocupação por parte desta testemunha e co-arguidos, em tentar não envolver o F...nos factos.

Por outro é natural que a ofendida saiba identificar quem lhe vibrou as várias pancadas nas costas.

Em suma diremos que as declarações prestadas pelos arguidos B... e I... e o depoimento da testemunha C..., suscitam muitas dúvidas sobre a veracidade relativamente aos relatos feitos, sobretudo tendo em conta a restante convincente prova sobre a agressão, como muito bem se observa na decisão recorrida, a qual tendo beneficiado do princípio da oralidade e imediação, se encontra em posição vantajosa relativamente a este tribunal de recurso, pelo que inexistem quaisquer razões que permitam censurar o facto do Mmº juiz não lhes ter atribuído credibilidade.
Seja como for é exactamente nestes casos em que se dá credibilidade a uns depoimentos e não se dá tal credibilidade a outros, que o princípio da livre apreciação da prova acima referido tem aplicação.
Daí que, na ausência de qualquer um dos vícios a que alude o artº 410º nº 2 CPP, se considere definitivamente assente a matéria de facto que foi considerada provada.
Por isso improcede o recurso quanto a esta matéria.
C) Do princípio in dubio pro reo
Diz o recorrente F...que atentas as contradições entre a ofendida e arguidos e testemunhas de acusação, deveria ter sido absolvido, por força do referido princípio.
Mas também aqui sem qualquer razão.
Este princípio é uma imposição feita ao juiz no sentido de que, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, dever pronunciar-se de forma favorável ao arguido.
A violação de um tal princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só se verificando quando decorrer de forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou contra o arguido
Ora não resultando, como vimos, que exista qualquer dúvida sobre os factos que foram considerados provados, improcede também o recurso neste ponto.
Tem pois de ser negado provimento ao recurso na sua totalidade.

DECISÃO


Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam em:
a) Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido N...e, consequentemente revogam a sentença na parte em que o condenava pela prática de um crime de dano, e julgam agora extinto o respectivo procedimento criminal
b) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido F..., confirmando a restante decisão recorrida.
Fixam a taxa de justiça devida pelo recorrente F...em cinco Ucs.

Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP).

Tribunal da Relação de Coimbra, 11 de Novembro de 2009.