Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
562/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
VALOR DA RECUSA DO RÉU EM SE SUBMETER A EXAMES HEMATOLÓGICOS
DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS
SUA APRECIAÇÃO
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 12/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 3ª JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 519º, Nº 2, DO CPC, E 1871º, Nº 1, AL. E), DO C. CIV., NA REDACÇÃO DA LEI Nº 21/98, DE 12/05
Sumário: I – As testemunhas relatam factos e situações das quais se aperceberam sensorialmente, projectando a realidade por elas apercebida à percepção de terceiros.

II – Os comportamentos das pessoas são em si mesmos significativos e abrem-se, por isso, à interpretação pelos outros, relativamente ao significado que encerram.

III – Um comportamento persistente de recusa a exames médico-legais permite ao tribunal interpretá-lo à luz dos motivos de recusa invocados, o que se reconduz aos poderes do juiz relativos à valoração da prova, nos termos do artº 510º, nº 2, do CPC.

IV – O alargamento, pela Lei nº 21/98, de 12/05, da presunção de paternidade consubstanciado no aditamento da al. e) ao nº 1 do artº 1871º do C. Civ., é de aplicar a todos os casos que hajam de ser julgados após a sua entrada em vigor, embora os factos respectivos tenham ocorrido anteriormente.

V – Assim, justifica-se a aplicação da presunção constante da al.e) do nº 1 do artº 1871º do C. Civ., vigente desde 13/05/1998, às acções cujo elemento – integrante da presunção – traduzido na prova da existência de relações sexuais durante o período legal de concepção ocorreu – e se esgotou – no domínio da lei antiga.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

1. A... (A., neste recurso Apelado), menor, representado por sua mãe, B... [ A acção foi intentada inicialmente pela mãe do menor, em seu próprio nome. Posteriormente, correspondendo ao convite formulado, nos termos do artigo 265º, nº 2 do Código de Processo Civil, através do Despacho de fls. 34, foi apresentada uma nova petição (cfr. fls. 45/47) na qual figura como A. o próprio menor, representado por sua mãe (v. artigo 1869º do Código Civil).], intentou, em 3 de Setembro de 2002, no Tribunal de Viseu (3º Juízo Cível), a presente acção ordinária, dirigindo-a contra C... (R. , neste recurso Apelante) e pedindo o reconhecimento judicial de ser este (o R.) o seu (dele A.) pai. Logo na petição inicial – na qual alegou ser ele A. fruto das relações sexuais havidas entre a sua mãe e o R., concretamente das ocorridas entre Janeiro e Setembro de 1998[ O A. nasceu em 3 de Novembro de 1998, sendo que o respectivo “período legal da concepção” – ou seja, os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento (artigo 1798º do Código Civil) – mediou entre 7/01/1998 e 6/05/1998. ] – requereu a realização de “exames hematológicos” visando comprovar o vinculo biológico de paternidade do R. relativamente a ele.

O R. contestou (fls. 27/30), negando ter mantido “[…] quaisquer relações de sexo […]” com a mãe do A..

Culminando a fase dos articulados foi proferido Despacho Saneador, fixados os factos (então) assentes e elaborada a base instrutória (fls. 51/53), apresentando A. e R. os respectivos requerimentos de prova (cfr. fls. 56/57 e 60), tendo o A. reiterado o pedido de realização de prova pericial consubstanciada no mencionado “exame hematológico”.

1.1. Em sede de instrução do processo, foi admitida, através do Despacho de fls. 70, a realização desse exame, solicitando-se a marcação do mesmo ao Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), o que viria a ocorrer por três vezes (fls. 74, 87 e 100), frustrando-se sempre a realização do mesmo por falta do R. (fls. 79, 92 e 105), não obstante ter sido sempre notificado para esse efeito (fls. 76, 88 e 104)[ O que motivou a sua condenação em multa a fls. 82, 95 e 108.]. A fls. 121 foi o R. pessoalmente notificado para esclarecer se estava disposto a submeter-se a tal exame[ Sendo no mesmo acto informado que o exame implicaria para ele, tão só, a “colheita de saliva” (v. o mandado junto a fls. 118).], apresentando, em função dessa notificação, o seguinte requerimento:

“[…]
António Campos Cardoso, […], tendo em conta o mui douto despacho de Vª. Exª. […] vem dizer que não está disposto a submeter-se aos exames requeridos, pois que, segundo o seu entendimento […] os mesmos têm para ele uma carga psicológica e social de vexame, que não está disposto a assumir.
[…]”
[transcrição de fls. 123]

Face a este esclarecimento, foi proferido – e notificado ao R. – o seguinte Despacho:

“[…]
Face à expressa recusa do réu em submeter-se a exame hematológico e sem prejuízo das consequências daí decorrentes em sede de repartição do ónus da prova, atento o disposto no artigo 519º do [Código de Processo Civil], determino o prosseguimento dos autos sem prévia realização do aludido exame.
[…]”
[transcrição de fls. 126]

1.2. Realizou-se, então, a audiência de julgamento, na qual se procedeu à gravação da prova testemunhal produzida, finda a qual se fixou, através do Despacho de fls. 172/178, por referência à base instrutória, a matéria de facto provada. Fundamentando a resposta (conjunta) aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 8º[

O R. manteve com a [mãe do A.] um relacionamento amoroso, concretizado em relações sexuais completas?

Desde há mais de 10 anos?

Sempre que o réu realizava serviços para a [mãe do A.] ou a encontrava casualmente, convidava-la para manterem relações sexuais?

O que se concretizava?

Os comportamentos referidos em 1º a 4º ocorreram, também, nos meses de Janeiro a Setembro de 1998?

O relacionamento sexual da [mãe do A.] com o réu foi exclusivo, sendo apenas com o réu que a [mãe do autor] manteve relações sexuais nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do [autor]?] [
Resposta que foi: “Provado apenas que em virtude dos serviços que realizava para a mãe do menor A... […], o réu encontrava-se várias vezes com a B...na residência desta e nas suas propriedades, tendo com a mesma mantido relações sexuais pelo menos nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do menor.”], disse-se nesse Despacho:

“[…]
A convicção do tribunal no sentido de que o réu manteve relações sexuais com a B... pelo menos nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do menor, assentou nas regras da experiência comum, à luz das quais e socorrendo-se do disposto no artigo 351º do Código Civil, se entendeu presumir a existência de tal relacionamento, conjugando o facto objectivo de a B... e o réu se conhecerem, trabalharem juntos e se encontrarem com bastante frequência durante o período que antecedeu o nascimento do menor, quer na residência daquela, quer nas propriedades agrícolas onde trabalhavam, com a persistente recusa por parte do réu em se submeter aos exames de sangue.
Estabelece o artigo 519º, nº 2, 2ª parte do Código de Processo Civil, para além do mais, que se aquele que recuse a colaboração for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, recusa essa que, no caso do réu, evidencia, no entender do tribunal, que este se considera, no plano subjectivo, como o verdadeiro pai biológico do menor A..., recusando a feitura do exame com o fundado receio de que o seu resultado venha a comprovar esse facto.
[…]”
[transcrição de fls. 175/176]

E, depois de lembrar as sucessivas recusas do R. em se submeter a exame, culminando com a já referida recusa expressa, acrescentou-se nessa fundamentação:

“Com tal actuação e sem invocar uma causa legítima para a sua recusa, sem dúvida que o réu inviabilizou ao autor a produção de um meio de prova de especial relevância sobre um facto essencial para o julgamento da causa.
Entende assim este tribunal que há que extrair consequências da recusa assumida pelo pretenso progenitor em fazer os exames com vista à averiguação da paternidade do menor A..., o qual apostando objectivamente na eventual escassez e/ou fragilidade da prova testemunhal, no facto de a mãe do menor ter outros filhos sem a paternidade estabelecida e sabendo, como sabia, nunca ter sido assumido publicamente qualquer relacionamento amoroso com a mãe do menor, optou assim por inviabilizar a utilização de tal meio de prova.
[…]
Por tudo o exposto, valorando a recusa do réu nos termos supra referidos e conjugando a mesma com a demais prova testemunhal produzida, a qual permitiu apurar que a B...e o réu se encontraram com bastante frequência, quer na residência daquela, quer nas propriedades agrícolas onde trabalhavam, durante o período que antecedeu o nascimento do menor, entendeu o tribunal, à luz das regras da experiência, o aludido relacionamento sexual entre a mãe do menor e o réu, pelo menos, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento.
[…]”
[transcrição de fls. 176 e 178]

Consignou-se, ainda, no mesmo Despacho, fundamentando desta feita a resposta “não provado” ao quesito 9º da base instrutória[

Deste relacionamento resultou a gravidez que sobreveio à [mãe do menor] e da qual [este] nasceu […]?], o seguinte:

“Todavia, se tal conjugação é suficiente e bastante para permitir ao tribunal concluir no sentido apontado, já o não será para, a partir de tal relacionamento sexual em tal período, se dar como estabelecido o vínculo biológico e, daí, ter o tribunal considerado não provado ter sido dessas relações que resultou a gravidez que sobreveio à B... e da qual nasceu o A..., matéria objecto do artigo 9º da base instrutória.
Na verdade, entendemos que para a prova de tal vínculo biológico os elementos probatórios apontados não são suficientes para, com segurança, se concluir nesse sentido.
[…]”
[transcrição de fls. 178]

Proferiu, então, a Exmª Juíza do Círculo de Viseu a Sentença de fls. 181/189, a Decisão ora apelada, julgando a acção procedente e reconhecendo, consequentemente, o A. como pai do R.. Assentou este pronunciamento na circunstância, que o Tribunal entendeu emergir da matéria de facto, de se ter considerado integrada a presunção de paternidade constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil (CC) e não ter a mesma sido ilidida pelo R., nos termos do nº 2 da mesma disposição. Reconhecendo o Tribunal que essa presunção entrou em vigor (o diploma que a acrescentou ao artigo 1871º) em data posterior ao termo do período legal da concepção, considerou-a, não obstante, aplicável por estarem em causa (v. artigo 12º, nº 2, trecho final do CC) relações – as relações biológicas de paternidade – constituídas anteriormente à entrada em vigor da lei, mas subsistentes nessa data.

1.3. Inconformado, interpôs o R. o presente recurso de apelação, alegando-o a fls. 217/231 e sintetizando a sua pretensão através das seguintes conclusões:

“[…]
1- A douta sentença recorrida não valorou correctamente a recusa do R. em realizar o exame hematológico solicitado nos autos;
2- Ao alegar que não se submetia a exame por o mesmo «envolver uma carga psicológica e social de vexame que não está disposto a assumir», essa recusa é perfeitamente entendível face às especificas condições Culturais do R., resultantes do meio onde reside e do estigma social que não mais o livraria de ser apontado como o pai do menor, ainda que a presente acção fosse julgada improcedente;
3- É entendimento da doutrina e da jurisprudência que não é legal mente possível obrigar o investigando a submeter-se a tais exames hematológicos, devendo essa recusa ser livremente apreciada pelo tribunal para efeitos probatórios, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 357º do [CC];
4- No caso vertente, e não obstante gozar dessa liberdade da apreciação da prova, a M. Juiz a quo deveria ter ponderado os factos que resultaram provados nos autos, designadamente que a mãe do menor tem ao longo da vida adulta mantido relações de sexo com vários homens, de tal sorte que dos cinco filhos que tem, apenas um tem a paternidade reconhecida e o facto de os próprios filhos ouvidos em audiência de julgamento, tal como as demais testemunhas, terem referido inequivocamente que nunca viram no comportamento do R. e da mãe do menor o mínimo sinal que apontasse para um relacionamento intimo e, muito menos, para a existência de relações sexuais entre ambos;
5- A M. Juiz a quo errou na apreciação da prova, no que tange à resposta conjunta dada aos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 8º da base instrutória;
6- Na verdade, não se descortina nos autos donde possa a M. Juiz ter concluído factualmente que o R. e a mãe do menor mantiveram relações sexuais pelo menos nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do menor;
7- Da inquirição das testemunhas D..., E... (ambos tios da mãe do menor), F..., G... (ambos filhos da B... e, consequentemente, irmãos do menor) e H..., cujos depoimentos se encontram gravados, resultam clara e inequivocamente que o R. não era o único homem que frequentava a casa da mãe do menor antes do nascimento deste;
8- Tal como resulta manifesto que as mesmas razões que ditaram a errada convicção do Tribunal de que a mãe do menor se relacionou sexualmente com o R. pelo menos durante os primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento da criança, são também válidas para se chegar à conclusão de que ela se relacionou sexualmente também com um tal Agostinho da Neta, entre outros, designadamente durante aqueles mesmos 120 dias;
9- O Tribunal a quo não podia com base nas regras da experiência comum e sem mais dar como provado que o R. manteve relações sexuais com a Maria da Conceição, pelo menos nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do menor;
10- O R. conseguiu ilidir a presunção de paternidade imposta pela al. e) do artigo 1871º do CC;
11- Ao responder «não provado» à matéria do artigo 9º da base instrutória, o Tribunal a quo contradiz a resposta dada aos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 8º dessa mesma base instrutória;
12- Decorre do artigo 12º do [CC] que a Lei aplicável ao presente caso é aquela que se encontrava em vigor ao tempo da verificação dos factos ou actos que precisam de ser provados;
13- Daí resulta que in casu não é aplicável a al. e) do artigo 1871º do CC, resultante da Lei 21/98, de 12 de Maio;
14- A douta sentença recorrida, violou, entre outras, as disposições dos artigos 12º, 1871º, 357º, nº 2 e 1847º do CC.
[transcrição de fls. 229/231]

O A. não respondeu.

II – Fundamentação

2. Respeita a presente apelação, desde logo, à matéria de facto que o Tribunal a quo considerou provada, visando o Apelante a reapreciação desta e a sua modificação por esta Relação, pretendendo, então (depois), como corolário lógico dessa almejada alteração dos factos, o julgamento da acção – ou seja, a aplicação do direito aos (novos) factos – no sentido da improcedência da investigação de paternidade.

São estes, pois, os dois momentos lógicos que o julgamento da presente apelação pressupõe.

Da questão de facto:

2.1. Ao impugnar os factos, suscitando a reapreciação por esta Relação desse aspecto do julgamento, por referência ao artigo 712º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC), indica o Apelante como “[…] concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (artigo 690º-A, nº1 do CPC) os traduzidos na resposta conjunta aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 8º da base instrutória, ou seja, os factos dos quais resultou a existência de relações sexuais entre o R. e a mãe do A. durante o período legal da concepção. E indica, ainda, cumprindo desta feita o nº 1, alínea b) e o nº 2 do mencionado artigo 690º-A, como meio probatório gravado que impunha decisão diversa, os depoimentos das testemunhas D..., E..., F..., G... e H....

A prova destes factos foi explicitada pelo Tribunal a quo como decorrente da conjugação de dois elementos: os depoimentos das quatro primeiras testemunhas antes referidas; a valoração pelo julgador da recusa do R. em se submeter aos exames de determinação da paternidade. As testemunhas relatam factos e situações das quais se aperceberam sensorialmente, projectando a realidade por elas apercebida à percepção de terceiros. Os comportamentos das pessoas são em si mesmos significativos e abrem-se, por isso, à interpretação – à compreensão inteligente – pelos outros, relativamente ao significado que encerram. Embora essa interpretação seja sempre a interpretação de alguém, a possibilidade de reconstrução lógica dos seus elementos de base destaca-a da subjectividade em que nasce, tornando-a num elemento passível de reconstrução pelos demais e, em função disso, exteriormente controlável nos seus pressupostos. Esta possibilidade de comprovação do sentido da interpretação de alguém relativamente ao comportamento de outrem, torna-a (a essa interpretação) compatível, enquanto ferramenta argumentativa de justificação no quadro de um discurso racional, com o carácter justo e leal que um processo judicial tem, necessariamente, de revestir. Adiante, quando apreciar-mos a interpretação do comportamento do Apelante (de recusa aos exames) que subjaz à Decisão apelada, voltaremos a esta questão.

2.1.1. Por agora, referindo-nos ao primeiro elemento de justificação apontado pelo Tribunal apelado (o sentido do depoimento das quatro primeiras testemunhas), cumpre sublinhar o exacto sentido dos factos em causa nas respostas à base instrutória questionadas pelo Apelante. Reduzem-se estas – reduzem-se, porque a matéria quesitada de base era bem mais ampla – à afirmação positiva de que o R. e a mãe do A. se encontravam várias vezes na residência desta e nas suas propriedades, tendo mantido entre eles, na sequência desses encontros, relações sexuais, temporalmente coincidentes com os primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o dia 3 de Novembro de 1998, ou seja a data do nascimento do menor.

Este Tribunal, tendo procedido à audição integral destes quatro depoimentos – tendo procedido, aliás, à audição de todos os depoimentos prestados em julgamento –, colhe, quanto ao sentido e à credibilidade dos mesmos, uma impressão inteiramente coincidente com a manifestada pelo Tribunal de primeira instância. Com efeito, começando pelos depoimentos dos dois filhos mais velhos da mãe do A.[ As testemunhas F... e G... , ouvidos em terceiro e quarto lugar na manhã do julgamento.], capta-se deles, inequivocamente, e não obstante o carácter mais aberto do primeiro (José Carlos), comparativamente ao segundo (G...), que o relacionamento da mãe de ambos com o A., durante largos anos e concretamente no período em causa na resposta aos quesitos, era por eles intuído como algo de substancialmente distinto do que sucedia relativamente a outras pessoas que, por razões de trabalho, de vizinhança ou de visita ao avô materno destas testemunhas, também se deslocavam (nunca com a mesma frequência do R.) à casa da mãe do A.[ Valem estas considerações relativamente à imputação, feita pelo R., de existência de um relacionamento do mesmo tipo do que lhe é atribuído a ele, entre a mãe do A. e alguém referido (parece tratar-se de um anexim) como “Agostinho Neto”. Esta pessoa – como resulta dos depoimentos destas testemunhas – deslocava-se à casa delas, da qual era vizinho imediato, num quadro de contratação da mãe delas para trabalhos rurais específicos, ou de visitas ao avô (quando se zangou com este essas visitas cessaram, disse-o o Raul), sempre em circunstâncias que sugeriram a estas testemunhas uma realidade distinta da do A.. ]. De tal forma, que a atribuição da paternidade do seu irmão ao A. (ao “Sr. João”, como ambos se lhe referem), não constitua para eles – e não tenha constituído na altura do nascimento do irmão – um facto surpreendente[ Aliás, a testemunha José Carlos, não deixou de mencionar um episódio, passado durante uns trabalhos no campo, no mês de Fevereiro de 1998, no Carnaval (todo o mês de Fevereiro de 1998 cai no período legal da concepção), episódio este que, a posteriori, lhe sugeriu a existência de uma procura pelo R. de momentos de intimidade com a sua mãe. ]. Essa não surpresa, aliás, é partilhada pelas testemunhas D... e E... , tios da mãe do A., que, também eles[ A primeira destas testemunhas denotando no seu depoimento um indisfarçavel receio de ser desagradável ao R.. ], em virtude da frequência com que viam o R. em casa da sobrinha (no período aqui em causa, praticamente sempre que aí se deslocavam), e em função da familiaridade que o comportamento do R. aí denotava[ A testemunha E... ilustrou este aspecto de forma particularmente expressiva.] (tomando refeições e permanecendo mesmo durante os domingos), também estas testemunhas, dizíamos, não demonstraram surpresa alguma com a atribuição da paternidade ao R.. Isto, aliás, não deixa de se reflectir num círculo social mais alargado, que a testemunha E... referiu como a “voz do povo”, e cujo sentido foi aqui captado através dos depoimentos das testemunhas H... e José Manuel Almeida Figueiredo, no qual, pese embora o olhar social que suscita a circunstância de a mãe do A. ter, de cinco filhos, quatro sem a paternidade estabelecida, pese embora as sequelas disto, a paternidade do A. não deixa, também neste ambiente social, de ser atribuída ao R..

Ora, em função destes elementos, o sentido que este Tribunal colhe da prova testemunhal – da mencionada pelo R. no recurso, bem como de toda a outra –, sendo inteiramente coincidente com o expresso pela primeira instância, tanto nas respostas como na fundamentação delas, não aponta, bem longe disso, para a existência de qualquer erro de percepção ou de interpretação da realidade transmitida por esses depoimentos.

2.1.2. De qualquer forma, a interpretação do sentido da prova testemunhal aparece-nos, na fundamentação das respostas, compaginada com a valoração do comportamento do R., traduzido na recusa sistemática[ Que, reiterada três vezes nesta acção e assumida expressamente uma outra, já tinha antecedentes na averiguação oficiosa que, aliás, inviabilizou. ] de se sujeitar aos exames médico-legais que permitiriam determinar, com um rigor cientifico só não coincidente com a certeza absoluta numa percentagem desprezível[ V. o texto da autoria de Paula Costa e Silva A realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento da filiação, disponível em www.apdi.pt/APDI/DOUTRINA; cfr. a entrada “Paternity testing” na Wikipedia, disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Paternity_testing.], se a derivação biológica do A. ocorre relativamente ao R.. Note-se que este exame excluiria a paternidade do R. na ausência dessa derivação[ O R. foi pessoalmente notificado a fls. 121 que esse exame implicaria para ele, tão só, a recolha de saliva.].

O significado deste comportamento persistente de recusa aos exames, interpretado à luz dos motivos de recusa invocados (foram estes transcritos no item 1.1. deste Acórdão), foi encarado pelo Tribunal apelado enquanto elemento de confirmação da existência de um relacionamento sexual do R./Apelante com a mãe do A., no decurso do período relevante. Trata-se de uma extrapolação, relativamente ao significado do comportamento do R., que se reconduz, na conjugação dos poderes do juiz relativos à valoração da prova, ao disposto no artigo 519º, nº 2 do CPC[ “[s]e o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente de preceituado no nº 2 do artigo 344º do [CC]”.].

Esta valoração desse comportamento, implicando uma interpretação do significado dele pelo julgador, implica igualmente, conforme já atrás se explicitou, a possibilidade da reconstrução dos respectivos pressupostos lógicos, em termos que permitem o controlo da respectiva racionalidade. Neste caso, face ao comportamento do R., a compreensão da sua valoração feita pelo julgador, apresenta contornos tão nítidos que se torna quase intuitiva. Com efeito, a invocação de uma suposta “carga psicológica e social de vexame” insuportável, decorrente, tão só, de uma deslocação a Coimbra ao INML, não constitui justificação legitima, tanto mais que essa suposta carga, a ocorrer[ E este Tribunal não deixa de considerar duvidoso que ocorra essa carga, pois fica com a ideia, ao ouvir a prova testemunhal gravada, que, no contexto sócio-cultural de Vila Chã de Sá, a consideração social do R., tal qual ela emerge da circunstância de ter ele mantido uma relação extra-matrimonial, não sai propriamente afectada, ou que, pelo menos, não o será nos termos em que a sua justificação pretende sugeri-lo. ], não deixaria de resultar da simples existência desta acção, em termos que tornariam, desse ponto de vista, perfeitamente inócua a deslocação ao exame. O problema não é – não foi –, seguramente, a suposta carga negativa da realização do exame, o problema residiu, outrossim, no receio do resultado desse exame, e esse receio o que expressa, para a generalidade das pessoas, é um reflexo de defesa de quem, por saber que manteve naquele período relações sexuais com a mãe do investigando, percebe que pode ser o pai desse investigando, pretendendo, assim, obviar a esse resultado[ Se a afirmação do R. – afirmação constante da sua contestação – de que não manteve “quaisquer relações de sexo” com a mãe do A. correspondesse à realidade, não se justificaria qualquer receio de se submeter ao exame, pois este nunca lhe poderia atribuir uma paternidade cientificamente impossível. Trata-se este, aliás, de um facto básico da vida que todas as pessoas intuem sem grande dificuldade.].

2.1.2.1. Claro que a aferição do carácter legítimo de uma recusa deste tipo não pode prescindir da consideração de que aquele que assume essa recusa pretenda fazê-lo no quadro do exercício de um direito fundamental, reportado ao livre desenvolvimento da personalidade, enquanto direito geral de agir livremente. Com efeito, as pessoas devem, na significativa expressão que constitui o título do livro de Ronald Dworkin[ Taking Rights Seriously, Harvard, 1977.], “tomar os direitos a sério”, e desde logo os seus. Porém, esses direitos, exercendo-se num mundo de complexas relações intersubjectivas, não deixam de ser “tomados a sério”, quando são compatibilizados com os direitos conflituantes dos outros. Ora, neste caso – em casos como este –, conforme sublinhou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 616/98[ Disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.], precisamente numa situação de recusa de sujeição a exames de paternidade:

“[…]
[M]esmo pressupondo [o] constrangimento [decorrente do citado artigo 519º, nº 2 do CPC] sempre resultaria um adequado equilíbrio, constitucionalmente admissível, na tutela dos direitos em presença.

É notório o valor probatório, em acções de investigação de paternidade, dos exames de sangue, cujos resultados – saliente-se – tanto podem ser favoráveis ao A. como ao R. pretenso progenitor.

Presente no caso o direito do R. à sua integridade física, não deixa de estar igualmente em causa, naquelas acções, um outro direito fundamental – o direito do menor à identidade pessoal, consagrado no artigo 26º nº 1 da CRP.

No ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, o sentido deste último direito «é o de garantir aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo, singular e irredutível (abrangendo) seguramente, além do direito ao nome, um direito à "historicidade pessoal» ("Constituição da República Anotada", anotação II ao artigo 26º).

E mais adiante dizem os mesmos autores:

«O direito à historicidade pessoal designa o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores, podendo fundamentar um direito à investigação da paternidade ou da maternidade».

[…]

Ora, neste confronto de direitos e interesse, a normação ordinária pertinente não se afiguraria arbitrária ou gratuita se se entendesse limitado o direito do R. à sua integridade física, tendo muito especialmente em conta, por um lado, o objectivo da norma que admitiu o exame de sangue como meio probatório na acção de investigação de paternidade e os efeitos, em sede probatória, da recusa em efectuá-lo e, por outro, o grau mínimo de ofensa corporal em que se traduz esse mesmo exame.

Violado não é, assim, o artigo 25º da CRP pelos artigos 1801º do Código Civil e 519º nº 2 da CPC. […]”[ Num sentido inteiramente concordante com esta argumentação, cfr. Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. II, tomo I, Coimbra, 2006, pp. 41/44.]

2.1.3. Assim, ponderando que o que está em causa é, apenas, a valoração da recusa de sujeição do Apelante a exame, que essa recusa é ostensivamente significativa, que a valoração dela pelo Tribunal recorrido se prefigura como uma interpretação racional do comportamento do R., ponderando tudo isto, dizíamos, não tem este Tribunal qualquer dificuldade em aceitar o entendimento da primeira instância e, compaginando-o com o sentido da prova testemunhal atrás apontado, em aceitar como correcta a fixação dos factos provados feita pelo Tribunal de Viseu, rectius no trecho deles corresponde à resposta conjunta aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 8º da base instrutória.

2.2. Numa outra linha argumentativa, também ela reportada à matéria de facto, alega o Apelante existir contradição entre a resposta positiva aos quesitos antes mencionados e a resposta “não provado” ao quesito 9º (a transcrição deste consta da nota 7). A Decisão respeitante à matéria de facto contém a justificação desta situação (em trecho também ele transcrito no item 1.2. deste Acórdão), que, aliás, se tornará evidente quando, adiante, se apreciar o sentido da prova por presunção, enquanto regra de decisão aplicável neste caso[ Directamente, por aplicação da presunção decorrente da alínea e), do nº 1 do artigo 1871º do CC, ou até, neste caso específico, de forma indirecta, por inversão do ónus da prova decorrente do artigo 344º, nº 2 do CC.]. Por agora, interessa sublinhar que uma resposta de não provado, não significa a prova do contrário, correspondendo, tão só, à inexistência desse facto concreto para aquela decisão. Ou seja, “[a] prova do facto contrário diverge da resposta puramente negativa [equivalendo esta] à não alegação do facto não provado, fazendo jogar as regras da distribuição do ónus da prova”[ José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 2º, Coimbra, 2001, p. 630.]. Neste caso, a não prova do teor do quesito 9º, afastando a demonstração directa – sublinha-se, directa – do facto naturalístico concreto consistente na procriação biológica[ A demonstração deste facto – que o Tribunal, correctamente, entendeu não ter ocorrido – teria, aliás, o efeito de resolver, por si e desde logo, a acção, consumindo a questão da existência de relações no período legal da concepção, e tornando irrelevante o funcionamento de qualquer presunção de paternidade.

], restringe a factualidade a tomar em conta à circunstância de ter ocorrido, no espaço de tempo correspondente ao período legal da concepção, relacionamento sexual entre o R. e a mãe do A.. Não sendo esta factualidade irrelevante para o destino da acção, é em função dela que importa apreciar a pretensão do A.

2.3. Sendo correcta, conforme resulta do anteriormente exposto, a fixação dos factos feita pelo Tribunal de primeira instância, resta aqui recordá-los e considerá-los definitivamente fixados, nos exactos termos decorrentes do Despacho de fls. 172/178, que, tal qual foram enunciados na Sentença apelada a fls. 183/184, são os seguintes:

“[…]
Em 3 de Novembro de 1998, na freguesia de Vila Chã de Sá, concelho de Viseu, nasceu A..., o qual foi registado na Conservatória do Registo Civil de Viseu como filho de B..., sem menção de paternidade (alíneas A),B) e C), da factualidade assente).
O réu é casado (alínea D)da factualidade assente).
O réu deslocava-se à residência da autora e a pequenos terrenos para lavrar, frezar e de onde transportava a lenha, milho, batatas e demais géneros agrícolas (alínea E) da factualidade assente).
Em virtude dos serviços que realizava para a mãe do menor F... e referidos em E), o réu encontrava-se várias vezes com a B... na residência desta e nas suas propriedades, tendo com a mesma mantido relações sexuais pelo menos nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam nascimento do menor (resp. aos arts. 1º,2º, 3º,4º,5º e 8º da base instrutória).
O réu teve conhecimento da gravidez da autora (resp. ao art.10º).
É comentado entre algumas pessoas do povo de Vila Chã de Sá que o réu é o pai do menor A... (resp. ao art.11º).
Ao longo da sua vida adulta a B... foi mantendo relações de sexo, sendo mãe de 5 filhos, quatro dos quais não têm a paternidade estabelecida (resp.aos arts.12º e 13º).
[…]”
[transcrição de fls. 183/184]

Da questão de direito:

2.4. Emerge da factualidade provada – e assim entramos no segundo momento lógico que a presente apelação pressupõe – que o R., durante o espaço de tempo que a lei define como correspondente ao período legal da concepção (artigo 1798º do CC), ou seja, nos “[…] limites temporais máximo[ Aqui correspondente ao dia 7 de Janeiro de 1998.] e mínimo[ Que corresponde ao dia 6 de Maio de 1998.] dentro dos quais a concepção necessariamente ocorreu […]”[ Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso…, cit., p. 26.], manteve relações sexuais com a mãe do A.. Trata-se este de um facto relevante para o direito, que lhe associa, no artigo 1871º, nº 1, alínea e) do CC, a consequência de presumir correspondente ao investigado a paternidade do investigante.

Sendo certo que esta presunção de paternidade vigora no nosso ordenamento jurídico desde momento posterior ao período legal da concepção aqui em causa[ Introduzida, esta presunção, pela Lei nº 21/98, de 12 de Maio, vigora, como decorre do seu artigo 2º, desde 13/05/1998, ou seja, desde oito dias depois do fim do período legal da concepção, na situação configurada neste processo.], coloca-se – colocou-a o Apelante neste recurso e colocou-a a Sentença apelada, que a resolveu expressamente – uma questão de aplicação da lei no tempo, consistente em determinar se esta “lei nova” (nova presunção) se aplica, tendo presentes os princípios decorrentes do artigo 12º do CC, às situações nas quais, como aqui sucede, o período legal da concepção se esgotou na fase anterior à vigência desta presunção.

A afirmação da aplicação imediata da (nova) alínea e) do nº1 do artigo 1871º, foi feita pela primeira vez, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no contexto do Acórdão de 11/03/1999[ BMJ 485, 418; este aresto é apreciado pelo Exm. Desembargador Paulo Távora Victor, na Colectânea de Jurisprudência (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça), Ano XI, tomo III/2003, pp. 14/16 (“Investigação de paternidade – breves notas sobre a sua evolução”).], tendo sido invariavelmente seguida pela jurisprudência posterior daquele Tribunal[ Cfr., por exemplo, o Acórdão de 28/05/2002 [Colectânea de Jurisprudência (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça), Ano X, tomo II/2002, pp. 92/93].]. Esta Relação, através do Acórdão de 22/01/2002[ Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVII, tomo I/2002, pp. 18/21.], relatado pelo Exm. Desembargador Artur Dias, considerou que “[o] alargamento pela Lei 21/98 […] da presunção de paternidade consubstanciado no aditamento da alínea e), ao nº 1 do artigo 1871º […], é de aplicar a todos os casos que hajam de ser julgados após a sua entrada em vigor, embora os factos respectivos tenham ocorrido anteriormente”[ Item IV do sumário na Colectânea…, cit..].

2.4.1. Integra, o regime respeitante às presunções de paternidade, o chamado direito probatório material, por estar em causa, relativamente a ele, aquilo que João Baptista Machado qualifica como “[…] leis sobre a prova que simultaneamente afectam o fundo ou substância do direito, repercutindo-se sobre a própria viabilidade deste (decisorie litis), e que, por isso, pertencem (pelo menos para certos efeitos, designadamente para fins de conflitos de leis, no tempo e no espaço) ao direito substancial”[ Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, p. 273]. Ora, não sendo, em princípio, as leis novas que alteram este direito (o direito probatório material) de aplicação imediata[ Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra, 1982, p. 60.], pode essa aplicação (imediata) ocorrer, no quadro “[…] da constituição de uma [situação jurídica] nova, [aplicando-se a lei nova] a «estados de facto» ou «qualidades» que, tendo embora a sua origem no passado, subsistem no momento da sua entrada em vigor ou no momento da sua actuação”[ Baptista Machado, Sobre a aplicação…, cit., p. 204.].

Ocorre, relativamente a estes “estados de facto”, um perdurar da sua localização temporal, que os projecta no presente e os torna susceptíveis à aplicação da lei nova, na medida em que esta venha atribuir a esse estado de facto um efeito novo que “[…] se report[e] efectivamente a esse estado de facto e não ao facto que o originou […]”[ Ibidem, p. 210.]. Constitui verdadeiro paradigma de uma situação deste tipo a relação biológica de filiação quando a esta, sendo um facto situado no passado, é encarada pela lei nova em termos de atribuição de uma (nova) eficácia constitutiva, pois tal lei, dispondo directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, deve entender-se – e estamos a parafrasear o trecho final do nº 2 do artigo 12º do CC – que abrange as relações que, já constituídas anteriormente, subsistam à data da entrada em vigor da lei nova. Contrariamente, na hipótese inversa (situação validamente constituída no passado, que perdura no momento da entrada em vigor da lei nova, que não se constituiria validamente face a esta), o trecho inicial do nº 2 do artigo 12º do CC, manda respeitar a situação preexistente[ “ Figuremos o seguinte exemplo: segundo a [lei antiga], não podia ser investigada judicialmente a paternidade natural; consequentemente, o facto «relação biológica de filiação» era insusceptível de fundamentar uma acção de investigação, Sobrevém uma [lei nova] que atribui aos filhos naturais o direito de estabelecerem judicialmente a relação de filiação ilegítima, em certos casos. Ora bem, a relação biológica de filiação, que é estado de facto duradoiro (ou, se se preferir, uma qualidade do investigante), pode ser atingida pela [lei nova] como facto jurídico do presente. Na hipótese inversa, isto é, no caso de a [lei nova] vir suprimir a investigação judicial da paternidade, ela não pode ter efeito sobre a constituição e a subsistência da [situação jurídica] de filho ilegítimo estabelecida através duma anterior acção judicial” (Baptista Machado, Sobre a aplicação…, cit., p. 211).].

Servem estas considerações[ Nas quais, aliás, assentou o Acórdão desta Relação referido na nota 31.] para justificar a aplicação da presunção constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do CC, vigente desde 13/05/1998, às acções cujo elemento – integrante da presunção – traduzido na prova da existência de “[…] relações sexuais […] durante o período legal de concepção”, ocorreu – e, logicamente, se esgotou – no domínio da lei antiga. Até porque, à data da propositura da presente acção (03/09/2002), já essa presunção vigorava à muito, sendo que o efeito perverso geralmente associado à aplicação da presunção às acções pendentes à data da entrada em vigor da Lei nº 21/98[ “[T]enho dificuldade de aceitar que se aplique a lei nova, fazendo funcionar uma presunção de paternidade com base na coabitação, quando o processo já atingiu uma fase em que o réu não pode organizar o contraditório em função disso […]” (Francisco Pereira Coelho, Guilherme de Oliveira, Curso…, cit., p. 234).], não se verifica neste caso, no qual o R. foi confrontado, desde o início da acção (como já sucedera na averiguação oficiosa), com as mesmas regras de direito probatório material, respeitantes a presunções de paternidade. Aliás, na formulação clássica da teoria da sucessão das leis no tempo, quando estava em causa o aparecimento, ou o desaparecimento, de uma presunção juris tantum, entendia-se como aplicável a lei do momento em que o ónus da prova era atribuído a uma das partes na acção[ “ Visto que a presunção constitui uma operação intelectual do mesmo tipo daquela através da qual um facto é considerado provado […]. Pela mesma razão que dizemos que o juiz não pode considerar suficientes as provas de um facto, se o não fizer de acordo com a lei vigente no dia em que julga essas provas, também afirmamos que ele deve, igualmente, presumir a existência dos factos segundo a lei que regula tal presunção no dia em que o ónus da prova é atribuído a uma das partes em conflito [nel giorno in cui l’onere della prova viene attribuito ad una delle parti contendenti]” (Carlo Francesco Gabba, Teoria della Retroattività Delle Leggi, vol. IV, Turim, 1898, p. 530).].

2.4.2. A presunção de paternidade decorrente de qualquer das alíneas do nº 1 do artigo 1871º do CC, maxime da constante da alínea e) mencionada, é afastada pela existência de “dúvidas sérias” sobre a paternidade do investigado (nº 2 do mesmo artigo). Trata-se este de um regime divergente daquele que, em termos gerais, resultaria do artigo 350º, nº 2 do CC. Este, pressupondo a prova do contrário, implicaria aqui a exigência da prova de que se não é o pai do investigante.

A questão levantada pelo Apelante, respeitante à existência de dúvidas sérias sobre o facto de ser pai, foi resolvida pelos factos provados, na medida em que estes não reportam ao espaço temporal relevante para a concepção do R., qualquer facto que tenha (tido) a virtualidade de alicerçar dúvidas relevantes respeitantes à situação concreta ora ajuizada. A projecção das situações implicadas naquela resposta aos quesitos 12º e 13º, relativamente à situação presente, pressupõe retirá-las – a essas situações bem como à situação presente – do respectivo contexto. As dúvidas sérias referem-se ao contexto em que ocorreu o nascimento do A., e não a uma espécie de profiling da mãe do A., assente numa operação de “rotulagem”, mais ou menos inspirada na teoria do “labeling approach”[ Assente em estereótipos comportamentais (cfr. a entrada Labeling na Wikipedia, disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Labeling_theory). ], em função do seu comportamento passado. Assentando a paternidade presumida na ideia de uma probabilidade concreta de alguém ser pai, o afastamento dessa presunção assentará num considerável aumento (a norma refere uma dúvida séria) da margem de erro dessa probabilidade concreta. Ora, porque nada nos dizem os factos subjacentes aos quesitos 12º e 13º sobre esta probabilidade concreta, relativamente ao período e à situação aqui em causa – não sustentando eles qualquer situação de “coabitação concorrente” com a do R. –, não podem eles fundar uma “dúvida séria” quanto à probabilidade expressa nessa presunção.

2.5. Aqui chegados, resta-nos, pois, a presunção de paternidade daquele (o Apelante) que teve relações sexuais com a mãe do A. no período legal de concepção. A uma presunção equivalente chegaríamos, aliás, relativamente ao R., se nos ativéssemos, tão só, à recusa (ilegítima) deste a sujeitar-se aos exames (por aplicação conjugada dos artigos 519º, n 2 e 344º, nº 2, respectivamente do CPC e do CC).

A existência de uma presunção não ilidida, ou seja de uma presunção cujo facto-base não foi afastado, faz funcionar, através do preenchimento por esse facto-base do facti species da norma, a “regra de decisão”[ As normas contendo presunções, quando actuantes no momento da decisão, assumem um estatuto idêntico às normas respeitantes ao ónus da prova: “[d]elas decorre o tratamento do caso como se houvesse certeza, ora quanto à presença, ora quanto à ausência” (Pedro Ferreira Múrias, Por uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, p. 63).] do caso concreto, decorrente dessa presunção. Implica o funcionamento dessa regra, neste caso, a consideração de ser o R. o pai do A.. Tendo sido esse o sentido da Decisão apelada – com base, aliás, numa fundamentação em tudo coincidente com a deste Acórdão – nenhuma outra opção se justifica, que não seja a da sua integral confirmação.

É o que importa fazer.

III – Decisão

3. Assim, tudo visto, na total improcedência da apelação, confirma-se integralmente a Sentença recorrida.

Custas pelo Apelante.