Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
530/04.5TBSEI-X.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CRÉDITO LABORAL
HIPOTECA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA - 2º J.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 377º Nº1 AL.B) DO CÓDIGO DO TRABALHO, 748º, 751º DO CC E 2º DA CRP
Sumário: 1. Os créditos laborais gozando de privilégio imobiliário especial, graduando-se antes dos créditos referidos no art. 748º do CC e ainda antes dos créditos de contribuições devidas à segurança social;

2. E gozando de tal privilégio são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.

3. É constitucional a norma constante da alínea b) do n.º1 do art. 377º do Código de Trabalho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário especial dos créditos dos trabalhadores prefere à hipoteca, ainda que esta garantia seja anterior, nos termos do art. 751º do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



1)-Por sentença transitada em julgado, proferida pelo Tribunal Judicial de Seia, em19.07.2005, foi declarada a falência de A...”.
Aberto o concurso de credores, foram reclamados e reconhecidos, entre outros, créditos laborais, bem como um crédito da titularidade do B..., garantido por hipoteca constituída, desde 09.07.2001, sobre 8 imóveis.
Na graduação a que se procedeu, e relativamente ao produto da liquidação de alguns dos imóveis, foi dada preferência de pagamento a alguns créditos laborais relativamente ao crédito hipotecário reconhecido ao B....

O Reclamante B..., não concordando com tal graduação, apelou para este Tribunal, pugnando pelo pagamento preferencial do crédito hipotecário relativamente aos créditos laborais, com a seguinte argumentação conclusiva:
1ª-Os ex-trabalhadoes da falida, a que couberam os números 21 a 107, 109 a 112, 115 a 123, 129 e o reconhecido no apenso E) não alegaram, expressa e especificamente, a qual, ou quais, os bens imóveis do empregador no qual, ou quais, prestavam a sua actividade;
2ª-Os créditos emergentes do contrato de trabalho só gozam de privilégio imobiliário especial relativamente ao produto da venda dos prédios em que os trabalhadores, efectivamente, prestavam trabalho;
3ª-A sentença em apreciação determinou a existência de privilégio imobiliário especial de todos aqueles trabalhadores relativamente a toda uma universalidade de imóveis- ditos afectos à actividade industrial- sem especificar quais os respectivos imóveis em que os trabalhadores prestavam trabalho;
4ª-A sentença recorrida, caso tal tivesse sido devidamente alegado pelos credores ex-trabalhadores, que não foi, deveria especificar quais os imóveis sobre os quais cada uma dos trabalhadores poderia gozar do privilégio contido no art. 377º do Código do Trabalho;
5ª-O art. 377º, n.º1, alínea b) do Código do Trabalho, interpretado no sentido de que o privilégio imobiliário dos créditos dos trabalhadores constituídos após o registo da hipoteca prefere a esta, nos termos do art. 751º do Código Civil, é inconstitucional por violação do art. 2º da Constituição da República.

Não foi apresentada contra-alegação.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


2)- Definido, em princípio, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação (arts. 690º, n.º1 e 684º, n.º3, ambos do CPC), verifica-se que o Banco Apelante coloca a julgamento deste Tribunal as seguintes questões:

1ª-Saber se ocorrem os requisitos de que depende a existência do privilégio imobiliário especial concedido aos créditos laborais;
2ª-Definir se é conforme à Constituição a norma constante da alínea b) do n.º1 do art. 377º do Código do Trabalho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário especial dos créditos dos trabalhadores prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil.

2-a)- Vejamos a 1ª questão.
Segundo o Apelante os ex-trabalhadores da falida não alegaram, expressa e especificamente, qual, ou quais, os bens imóveis do empregador no qual, ou quais, prestavam a sua actividade.
Decorre, na verdade, do alínea b) do n.º1 do art. 377º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, que “os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade”. Portanto, tal privilégio creditório não abrange todos os imóveis pertencentes ao empregador, sendo facto constitutivo de tal privilégio a prova dos imóveis nos quais o trabalhador presta a sua actividade, cabendo tal ónus aos trabalhadores reclamantes.

Analisada a sentença sob exame, ressalta uma clara distinção entre um conjunto de imóveis afectos à actividade industrial da falida, registado sob o n.º 01544 e outros não afectos a tal actividade, sob o registo n.º 1545. Conforme salientado, tal distinção foi extraída da escritura pública datada de 09.07.2001, nos termos da qual a “falida constituiu hipoteca sobre 8 prédios a favor da Reclamante, sendo sete directamente afectos à actividade industrial da primeira e um a respeito do qual se não vislumbra tal conexão”. Portanto, foram considerados provados quais os imóveis da falida nos quais os trabalhadores reclamantes prestaram a sua actividade, e não vem impugnada pelo Recorrente tal matéria de facto.
E obviamente, contra a tese do Recorrente, os trabalhadores reclamantes gozam do privilégio relativamente à universalidade dos bens imóveis existentes no património da falida e afectos à sua actividade industrial, e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalharam, v.g., um escritório, um armazém, um prédio destinado à produção, etc., supondo que o património da empresa é constituído por vários prédios. Ou seja, o trabalhador do escritório, de armazém, e da produção não gozam apenas de privilégio creditório, respectivamente, sobre o escritório, sobre o armazém e sobre o pavilhão de produção. Salvo o devido respeito, a distinção defendida pelo Recorrente carece de qualquer sentido, nem essa é a “ratio legis”, pois conduziria a uma injustificada discriminação entre os trabalhadores de uma mesma empresa. O que restaria, por exemplo, para um motorista?
Embora concedendo o legislador tal privilégio imobiliário especial, com a eficácia e amplitude prevista no art. 751º do Código Civil, logo o restringiu ao património do empregador onde o trabalhador presta a sua actividade, excluindo todo o demais património, mas sem estabelecer qualquer discriminação entre os trabalhadores. Portanto, o trabalhador integrado numa unidade empresarial, e relativamente aos seus créditos laborais, goza de privilégio sobre todos os imóveis afectos a essa actividade e apenas sobre esses prédios.
Em suma, emerge da matéria de facto assente, sem impugnação, quais os imóveis onde os ex-trabalhadores da falida prestaram a sua actividade, e, desta forma, satisfeita está a previsão da alínea b) do n.º1 do art. 377º do Código do Trabalho no que tange aos créditos constituídos ou nascidos após a entrada em vigor da Lei que aprovou aquele diploma.

2-b)- Atentemos, agora, na 2ª questão.
Invoca, ainda, o Apelante a inconstitucionalidade material da alínea b) do n.º1 do art. 377º do Código de Trabalho, em vigor, porque, interpretado em conjugação com o disposto no art. 751º do Código Civil, fazendo prevalecer o pagamento dos créditos dos trabalhadores sobre crédito garantido por hipoteca anteriormente registada, viola o art. 2º da Constituição da República Portuguesa.
Gozando, pois, os créditos laborais constituídos após a entrada em vigor do Código do Trabalho do citado privilégio imobiliário especial, prescreve o art. 751º do CC que “os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.
Tal redacção foi introduzida pelo art. 5º do DL n.º 38/2003, de 08.03, pretendendo o legislador vincar que na previsão dessa norma só cabem os privilégios especiais, face às dúvidas que vinham surgindo na jurisprudência e doutrina, na interpretação, designadamente, do n.º1 do art. 12º da Lei n.º 17/86[ Este diploma foi revogado com a entrada em vigor das normas regulamentares do Código de Trabalho (alínea e) n.º2 do art. 21º da Lei n.º 99/2003, de 27.08). A Lei n.º 35/2004, de 29.07, regulamentou o Código do Trabalho, e entrou em vigor no dia 28.08.2004. ], de 14.06, ao determinar que “os créditos emergentes do contrato individual de trabalho regulados pela presente lei” gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral. Aceitando-se, numa das interpretações, que na previsão do art. 751º, cabiam, também, os privilégios imobiliários gerais.
O credor cujo crédito seja garantido por privilégio imobiliário especial goza, pois, do direito de sequela, pelo que a garantia é oponível ao titular de direito de propriedade ou outro direito real que venham a ser constituídos sobre o prédio onerado em benefício de terceiro. Goza, ainda, o credor, nos termos do art. 751º, da prevalência ou da faculdade de ser pago, com preferência a outros credores, também, titulares de outras garantias reais, mesmo que estas sejam constituídas com prioridade temporal.
Sendo essa a amplitude do privilégio imobiliário especial, a norma que estabelece tal garantia a favor dos créditos dos trabalhadores (alínea b) do n.º1 do art. 377º do Código de Trabalho) está ferida de inconstitucionalidade na parte em que dá preferência no pagamento a tais créditos relativamente a um crédito garantido por anterior hipoteca [ Obviamente registada, para produzir efeitos, mesmo em relação às partes (art. 687º do CC).]?

Muito embora o Tribunal Constitucional tenha já apreciado a constitucionalidade de certas normas Código do Trabalho, em vigor[ Cfr. Acórdão n.º 306/2003, proferido em 25.06.2003, mediante pedido de fiscalização preventiva, e disponível em http.www.tribunal constitucional.pt], que se saiba ainda não se debruçou sobre a questionada norma. Contudo, conforme acórdão n.º 498/2003- Proc. n.º 317/2002, proferido em 22.10.2003, publicado do Diário da República, II Série, de 03.01.2004, veio a julgar constitucional a norma constante da alínea b) do n.º1 do art. 12º da Lei n.º 17/86, de 14.06, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca nos termos do art. 751º do Código Civil[ Nos acórdãos n.sº 362/02 e 363/02, o TC veio a declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas que conferiam o privilégio imobiliário geral a créditos fiscais e da Segurança Social, na interpretação segundo a qual tal privilégio preferia à hipoteca, nos termos do art. 751º do CC.]. Ou seja, a norma da Lei que anteriormente à vigência do actual Código de Trabalho prescrevia garantias aos créditos dos trabalhadores (privilégio mobiliário geral e imobiliário geral).

Nesse processo, como aqui, é invocada a violação do princípio da confiança, ínsito do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2º da Constituição, donde ressalta, além do mais, a garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais. Com efeito, o Princípio do Estado de direito contempla os subprincípios concretizadores da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, porque, e na lição de Gomes Canotilho[ Cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, p. 257.], “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida”. E, “o princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção de confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem o direito de poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixados pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico”. Tal princípio da confiança postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar[ Cfr., entre outros, acórdãos do TC n.º 160/2000, n. 303/90 e n.º 625/98].

Sem dúvida que a prevalência do privilégio imobiliário especial relativamente a uma hipoteca anteriormente registada pode frustrar as expectativas dos negócios constitutivos de garantias reais, como é o caso da hipoteca, vindo o credor hipotecário a ser ultrapassado no pagamento por credores com garantia posterior sobre o bem onerado, quando confiava que o pagamento do seu crédito estava assegurado. Como, também, a sua legítima expectativa pode sair frustrada relativamente a créditos, gozando de privilégio e anteriormente constituídos, mas cuja existência o credor hipotecário não poderia conhecer, atento o carácter oculto da garantia. Dir-se-á, de uma maneira geral, que os privilégios creditórios constituem “um grande perigo para segurança do comércio jurídico, porque valem em face de terceiros, independentemente de registo, podendo atingir seriamente os terceiros que contratam com o devedor, na ignorância da sua existência e dos seus reflexos sobre a garantia patrimonial por ele oferecida[ Cfr. “Das Obrigações em Geral”, vol. 2º., p. 572, de Antunes Varela.]”. Atento o seu carácter oculto, porque não sujeitos a registo, devem os privilégios ser reduzidos ao mínimo indispensável, na salvaguarda de interesses relevantes, porque a sua existência torna precária e insegura a situação do credor hipotecário, sujeito a ver reduzida a sua garantia ao limite zero, havendo mesmo quem defenda, pura e simplesmente, a abolição total dos privilégios creditórios[ Cfr. “Dos Privilégios Creditórios”, p. 87 e 466, de Miguel Lucas Pires].
Salienta-se, também, que o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário[ Cf. acórdão do TC n.º 362/2002, de 16.10].

Como assinala o citado acórdão do Tribunal Constitucional, que apreciou a constitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º1 do art. 12º da Lei n.º17/86, e cuja fundamentação seguimos de perto, “do lado do credor está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo art. 2º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo”, (…) “mas de outro lado encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa garantir uma existência condigna, conforme preceitua o art. 59º, n.º1, alínea a) da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias”. E, como é típico do privilégio imobiliário especial, ocorre, no caso, conexão entre os créditos laborais garantidos e os imóveis, porque apenas abrangendo a garantia os imóveis do empregador nos quais o trabalhador presta a sua actividade. E, no confronto desses dois direitos fundamentais, de natureza análoga, “parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva sobrevivência condigna”. Está, assim, constitucionalmente justificada a restrição à tutela da confiança do credor hipotecário, emergente das regras de registo, na satisfação do seu crédito.
Em suma, é conforme à Constituição a norma da alínea b) do n.º 1 do art. 377º do Código do Trablho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, na interpretação segundo o qual o privilégio imobiliário especial nela conferido aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, prefere à hipoteca, ainda que esta garantia real seja anterior.
Consequentemente, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, não é de sufragar a argumentação da Recorrente sobre a inconstitucionalidade de norma, mantendo-se inalterada a graduação de créditos.

3)- Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença impugnada.
As custas do recurso ficarão a cargo do Recorrente.