Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3118/00
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 02/13/2001
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Área Temática: DIREITO CIVIL REAIS
Legislação Nacional: ARTº 1380º DO CC ARTº 18º DO DEC. LEI Nº 384/88, DE 25/10 Nº 2
BASE VI DA LEI Nº 2116, DE 14/08/62
Sumário: I. Da conjugação dos artigos 1.380º, n.º 1 do Código Civil e 18º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, resulta que gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes no caso de venda a quem não seja proprietário confinante, desde que um dos prédios - o confinante ou o vendido - tenha área inferior à unidade de cultura.
II. A al. b) do n.º 2 do artigo 1.380º do Código Civil só se aplica aos proprietários de terrenos confinantes com área inferior à unidade de cultura. Sendo dois os preferentes, proprietários de terrenos confinantes com o vendido, e só um deles proprietário de terreno com área inferior à unidade de cultura, é a este que cabe o direito de preferência.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 3118/00
Comarca de Porto de Mós
 
 
 
 
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
 
1. José e mulher, demandaram, António e mulher e João e mulher, para exercerem o direito de preferência na venda de prédios rústicos que os primeiros fizeram aos segundos réus.
Alegam, em síntese, que são comproprietários na proporção de 1/3 dum prédio indiviso, do qual foram agora vendidos 2/3 a quem não era comproprietário. Admitindo que as três fracções possam já ter sido divididas e separadas de forma a constituírem prédios autónomos, alega que, desse modo, é proprietário confinante com área inferior à unidade de cultura e que o seu prédio está onerado com uma servidão de passagem a favor dos prédios alienados.
Os réus contestam, alegando os réus compradores que também são (porque já eram) proprietários de um prédio que confinava com o todo e agora confina com aquelas fracções autonomizadas, sendo que a respectiva área, apesar de superior à unidade de cultura, já não obsta à preferência. Também o seu prédio está onerado com uma servidão de passagem a favor dos prédios vendidos.
Houve réplica e tréplica, posto o que foi saneado o processo. Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e declarou iguais os direitos de preferência.
 
2. Inconformados, autores e réus compradores apelam da decisão, para que esta Relação lhes reconheça o direito de preferência em exclusivo.
Conclusões dos autores:
3. Conclusões dos réus:
4. Houve contra-alegações. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir.
Antes, vejamos os factos provados:
5. Com estes factos o Sr. Juiz considerou que ambos (autores e réus compradores) tinham direito de preferência, na medida em que ambos eram proprietários de terrenos confinantes e que os direitos eram iguais, porque também os terrenos de ambos estavam onerados com uma servidão de passagem para os terrenos vendidos. Nesta perspectiva restaria agora o processo de licitação.
Os apelantes autores insurgem-se contra a decisão, porque: a) o que se declarou vender na escritura de 16/10/95 foram 2/3 de um terreno do qual eles já são donos de 1/3. Daí que, sendo comproprietários, são os primeiros preferentes, nos termos do artigo 1.409º, n.º 1 do Código Civil; b) porque o seu terreno (admitindo a autonomização das parcelas) está onerado com uma servidão de passagem a favor dos terrenos vendidos; c) são eles os proprietários que, pela preferência, obtém a área que mais se aproxima da unidade de cultura (artigo 1.380º, n.º 2, al. b) do Código Civil).
Os apelantes réus também se insurgem contra a sentença recorrida porque; a) em face da autonomização das parcelas, eles confinam com as parcelas 2 e 3, enquanto os autores só confinam com a parcela 2 ; b) só o seu terreno está onerado com uma servidão legal - o dos autores está apenas onerado com uma servidão constituída por destinação de pai de família, irrelevante para a determinação do melhor direito; d) os autores deviam ter utilizado o processo previsto no artigo 1.465º do Código de Processo Civil.
Vejamos então. Da matéria de facto provada resulta que se tratava de um terreno que foi dividido em três partes iguais. Os autores compraram uma (1/3) e os réus depois compraram as outras duas (2/3). Em face do registo não restava aos contraentes (vendedores e compradores), na respectiva escritura, se não a declaração de que se alienavam fracções indivisas correspondentes a 1/3 e 2/3, respectivamente.
Pretendem, por isso, os apelantes autores que deve continuar a considerar-se o terreno como indiviso, pois é esta a realidade jurídica que se nos apresenta. Não há uma sentença que diga estarem constituídos direitos de propriedade autónomos em relação a cada uma daquelas fracções e a lei proíbe o fraccionamento dos terrenos abaixo da unidade de cultura (artigo 1.376º, n.º 1 do Código Civil).
Não tem razão, a nosso ver. Com efeito, são os réus que, na contestação opõem a divisão do prédio, invocando a usucapião. Ou seja, os réus defendem-se aqui por excepção e os factos provados permitem considerá-la procedente. Daí que se tenha, e bem, concluído que aquelas fracções estão autonomizadas, como aliás os próprios apelantes admitem no seu articulado.
A lei proíbe o fraccionamento, mas não condiciona a aquisição do direito de propriedade por usucapião. Verificados que sejam os respectivos pressupostos, o titular adquire o direito, independentemente da área do terreno. Por isso o artigo 1.376º, n.º 1 do Código Civil não obsta a que se adquira por usucapião uma parcela de terreno inferior à unidade de cultura. E nem a circunstância de se continuar a manter o registo nos termos em que está altera a constituição do direito. Obviamente que a situação registral deverá ser alterada pelos procedimentos adequados, de forma a que esta corresponda à situação jurídica real. Mas isso não impede que desde já se considere o prédio inscrito já divido em três partes.
Sendo assim, os autores não são comproprietários do prédio vendido, mas sim confinantes, não com ele todo, mas apenas com a parcela autonomizada que se designa por "P 2" (parcela n.º 2), sendo deles a P1 e havendo ainda a P3. Na verdade, tudo indica que, a começar pelo levantamento topográfico junto a fls. 84 e os factos provados sob os pontos 6), 7), 8) e 9) do respectivo capítulo, o terreno dos réus apelantes confinava inicialmente com todo o terreno que se veio a fraccionar e agora confina com as três fracções ou parcelas autónomas. O dos autores é que apenas confina com o destes réus e ainda com a parcela n.º 2 ou P2.
Logo, a preferência sobre a compra da parcela 3 é uma questão que deixa de fazer sentido. Só se questiona a preferência relativamente à Parcela 2 que confina com a Parcela 1 (dos autores) e com o terreno que já era dos réus apelantes.
Trata-se, então, de um terreno com 22.000 m2 (o dos réus) e outro com 6.026 m2 (o vendido). A unidade de cultura para a região, atenta a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, e a natureza do terreno (sequeiro) é de 2 hectares. Logo, estamos confrontados com a venda de um prédio rústico de área inferior à unidade de cultura, sobre a qual pretendem preferir quem é proprietário de um terreno com área superior àquela unidade (réus) e quem é proprietário de terreno com área inferior (autores).E qualquer deles goza do direito de preferência sobre a P2.
Na verdade, resulta do artigo 1.380º, n.º 1 do Código Civil que os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em pagamento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. Significa isto que o Código Civil, na senda da anterior legislação sobre o emparcelamento (Base VI da Lei n.º 2116, de 14 de Agosto de 1962) limitou o exercício do direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, mantendo a limitação do exercício desse direito em relação à alienação de terrenos com área inferior à unidade de cultura, que já constava da Lei n.º 2116.
Melhor dizendo, a Lei n.º 2116 permitia o exercício do direito de preferência aos proprietários confinantes, qualquer que fosse a área dos seus prédios, nos casos de alienação de terrenos de área inferior à unidade de cultura. O objectivo era o emparcelamento da propriedade rústica, com vista a conseguir explorações economicamente rentáveis.
O Código Civil, mantendo o mesmo objectivo, veio, todavia, restringir o exercício do direito, limitando-o agora aos proprietários de terrenos com área inferior à unidade de cultura, com a finalidade de evitar que a grande propriedade pudesse, pela via da preferência, absorver a pequena propriedade. O tempo, porém, veio demonstrar que o objectivo do emparcelamento acabou muitas vezes por não ser conseguido, porque o preferente confinante era proprietário de terreno com área igual ou superior à unidade de cultura. Se o objectivo do legislador era acabar com a excessiva fragmentação da propriedade, a solução do Código Civil acabava assim por não o atingir, na medida em que a dita restrição o impedia.
Foi para obviar a esses inconvenientes que, em 1988, através do Dec. Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, o legislador veio repristinar a primitiva solução da Lei n.º 2116, que veio a revelar-se mais vantajosa. Veio, então, dizer-se - artigo 18º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 384/88 - que "os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no artigo 1380º do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura".
Ao remeter para o Código Civil, o legislador de 1988 veio manter duas coisas: 1ª) só nos casos de venda, dação em pagamento ou aforamento, de terrenos com área inferior à unidade de cultura há direito de preferência; 2ª) a reciprocidade de gozo do direito de preferência; ou seja, tanto pode exercer a preferência o proprietário de terreno confinante de área igual ou superior à unidade de cultura sobre a alienação de terreno de área inferior a unidade de cultura, como pode o proprietário de terreno confinante de área inferior à unidade de cultura exercer a preferência sobre a alienação de terreno de área igual ou superior à unidade de cultura.
Num caso como noutro cumpre-se o objectivo do legislador - lutar contra a excessiva fragmentação de terrenos sem criar latifúndios e criar condições para a exploração agrícola economicamente rendível. (Veja-se, a propósito, o parecer do Prof. Henrique Mesquita, publicado na Col. Jur. (1991), Tomo II, págs. 35 e sgs. E o Acórdão do STJ, de 13/10/93, CJ, (1993), III, pág. 64.)
Podemos então afirmar, sem receio, que da conjugação dos artigos 1.380º, n.º 1 do Código Civil e 18º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, resulta que gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes no caso de venda a quem não seja proprietário confinante, desde que um dos prédios - o confinante ou o vendido - tenha área inferior à unidade de cultura. (Neste sentido cfr. Acórdão da RC, 09/02/99, Proc. nº 1611/98 - 2ª Secção Cível, em http://www.trc.pt em Acção de preferência 74/1; da R.E., de 7/7/92, CJ, IV, 298. E de 17/11/94, CJ, V, 283.)
No nosso caso, portanto, quer os autores quer os réus compradores gozam do direito de preferência em relação à venda, que a estes últimos foi feita, do terreno designado por parcela 2 ou P2. Há, então que recorrer aos critérios de desempate previstos no próprio artigo 1.380º do Código Civil. Como qualquer dos prédios está onerado com servidão de passagem - servidão que foi constituída por afectação de terreno pelos proprietários confinantes, nos termos que constam dos números 15 e 16 dos factos provados - não há lugar à aplicação da regra da al. a), do n.º 2 do artigo 1.380º. Essa servidão, independentemente da forma como foi constituída, onera ambos prédios e por isso nenhum dos respectivos proprietários se pode arrogar um direito prioritário.
Mas já pode ser de aplicar o critério da al. b). Aí se diz que, sendo vários o proprietários com direito de preferência, cabe este direito ao proprietário que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxima da unidade de cultura para a respectiva zona.
Ora, os autores são proprietários do terreno com 6.700 m2, enquanto o terreno dos réus apelantes tem 22.000 m2 e o terreno vendido (parcela 2) tem 6.026 m2. Pela preferência, os autores obteriam um terreno com a área de 12.726 m2 e os réus um terreno com a área de 28.026 m2. Ou seja, com a preferência os autores obteriam um terreno cuja área ainda não atingia a unidade de cultura, enquanto os réus já têm um terreno que ultrapassa essa área. Se o espírito da lei é terminar com o minifúndio e contra o latifúndio, então é aos autores que dá a primazia. O objectivo da lei, como vimos, é o emparcelamento para a obtenção de uma área mínima como condição tida por satisfatória à exploração agrícola rentável, mas sempre contra o latifúndio.
Como se escreveu no acórdão do STJ já citado (v. pág. 67) o Dec. Lei n.º 384/88 "visa o progresso da agricultura prevendo, entre outros meios, a extinção progressiva de minifúndios mas não incentiva nem faculta a criação de grandes latifúndios o que, aliás, seria inconstitucional, em face dos preceitos contidos nos art.os 81.º, 97.º, 98.º, 99.º, n.º 2 e 290.º, al. f), da Constituição da República."
Isto justifica que a preferência entre dois ou mais proprietários confinantes seja atribuída àquele que, pela preferência, obtenha a área que mais se aproxima da unidade de cultura. É, assim, o espírito e letra da lei que apontam para eleger o proprietário do terreno com área inferior à unidade de cultura, face aos que já são proprietários de terrenos de área superior a essa unidade, pois só daqueles se pode falar em aproximar da unidade de cultura. Se o terreno do proprietário confinante já tem uma área que ultrapassa a unidade de cultura deixa de haver interesse económico em lhe aumentar a superfície e não se justifica a aplicação da doutrina da al. b) citada. (Cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, 2ª edição, vol. III, pág. 275.)
Ou seja, a al. b) do n.º 2 do artigo 1.380º do Código Civil só se aplica aos proprietários de terrenos confinantes com área inferior à unidade de cultura. Sendo dois os preferentes, proprietários de terrenos confinantes com o vendido, e só um deles proprietário de terreno com área inferior à unidade de cultura, é a este que cabe o direito de preferência.
Sendo assim, como nos parece, o direito de preferência na venda da parcela 2 cabe aos autores. A parcela 3 foi comprada pelos réus apelantes e está fora de questão, como já vimos. Logo, contrariamente ao que foi entendido em Primeira Instância, não há aqui um direito de preferência igual, mas um melhor direito, ainda que tendo em conta apenas uma das duas parcelas vendidas. Foi, por isso, violado o disposto al. b) do n.º 2 do artigo 1.380º do Código Civil.
6. Decisão
Pelo que vem de se expor, acordam os juizes desta Relação em julgar parcialmente procedentes as apelações, com o que revogam a sentença recorrida, para conceder aos autores o direito de preferirem na venda da parcela n.º 2, tal como vem identificada nos autos.
As custas em ambas as instâncias ficam a cargo de autores e réus em partes iguais.
Coimbra, 13 de Fevereiro de 2001
NB. Tem voto de vencido do Desembargador Custódio Costa, que entende poder o autor preferir nos dois lots de terreno, por se tratar de venda simultânea.