Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3454/03.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PROVA PLENA
SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 03/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARADA PARCIALMENTE NULA
Legislação Nacional: ARTºS 511º, Nº 1, E 659º, Nº 3, DO CPC
Sumário: I – O Tribunal, singular ou colectivo, que julgue a matéria de facto não se pronuncia sobre os meios de prova com força probatória plena nem sobre os factos que só por um meio com essa força podem ser provados. Cabe-lhes apenas apreciar as provas sujeitas à livre apreciação do julgador, através das quais, no confronto entre elas, se forma a sua íntima convicção sobre os factos da causa.

II – Justifica-se a ausência dos factos provados por meios de prova com força probatória plena do despacho que fixou a matéria de facto dada como provada ou assente, mas já não se justifica essa não indicação no texto da sentença de mérito, concretamente no local em que esta peça processual procede ao elenco dos factos que vão servir de base à aplicação do direito e à decisão da causa.

III – Na sentença, o juiz deve considerar, além dos factos dados como provados e cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador, os outros factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção de um meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante, independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I – A Causa


1. A... (A. e Apelado no presente recurso) intentou no Tribunal Judicial de Leiria a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário, demandando B... (R. e Apelante no presente recurso), pedindo a condenação deste a satisfazer-lhe a indemnização global de €14.125,00 respeitante à cessação de uma relação contratual existente entre os dois, traduzida no exercício por aquele da actividade de venda e distribuição de carnes por conta do R., mediante uma “comissão sobre os valores vendidos” de 2%. Tal cessação ocorreu na sequência de uma baixa por acidente que sofreu o A. (em 09/10/2001, quando “trabalhava” para o R.), tendo nessas circunstâncias ficado por pagar comissões no montante de €6.757,75[1], sendo-lhe devida, ainda, uma indemnização correspondente ao período de convalescença que liquida em €10.135,00[ 2], além de €3.990,00 por danos não patrimoniais respeitantes à cessação do contrato[ 3].

O R. contestou[4], impugnando a alegação de ter sido ele a fazer cessar o contrato com o A.[5] e acrescentando que a quantia peticionada a título de comissões não pagas (€6.757,75) se refere a todo o tempo que o A. trabalhou para o R., e não apenas, contrariamente ao que aquele refere, ao período de 1 de Julho a 8 de Outubro[6].

1.1. Findo o julgamento foi fixada, por referência à petição inicial e à contestação[7], a matéria de facto provada (Despacho de fls. 98/99), proferindo-se a Sentença de fls. 130/137 (a Decisão objecto da presente apelação) que culminou com o seguinte pronunciamento decisório:

“[…]
Em face do exposto e sem outras considerações, julgo a acção parcialmente procedente e consequentemente condeno o R. a pagar ao A. as seguintes quantias:
I- €6.757.75 correspondente às comissões devidas;
II- €3.000,00 correspondente ao prejuízo sofrido pelo A. em consequência do mandato;
III- €500,00 a título de danos não patrimoniais;
IV- Sobre as quantias referidas de I a III acrescem juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
[…]”
[transcrição de fls. 137]


Justificando esta decisão, excluiu a Sentença a qualificação do acordo celebrado entre o A. e o R. como “contrato de agência”, atribuindo-lhe a qualificação genérica de contrato de prestação de serviços. No mais, naquilo que em função da delimitação do objecto do recurso[8] apresenta interesse para a presente apelação, consignou-se na mesma Sentença:

“[…]
Alega o A. que esteve durante um período de seis meses ao serviço do R., [o] qual foi interrompid[o] em 09.10.2001 em consequência de um acidente havido no exercício da actividade que desenvolvia para aquele. De acordo com esta alegação, podemos concluir que o contrato entre A. e R. iniciou-se em Abril de 2001.
Alega ainda o A. que ficaram por pagar comissões devidas, pela actividade desenvolvida de 01.07.2001 a 08.10.2001, no valor de € 6.757,75.
Como resulta da resposta negativa ao facto 9 da p.i, o autor não logrou provar que vendeu e distribuiu carnes num montante sobre o qual receberia 2% de comissão, no valor peticionado a este título.
Nos termos das regras do ónus probatório constantes do artº 342º [do Código Civil], cabia ao A. provar, em primeira-mão, que efectuou tais vendas e respectivo valor, incumbindo ao R., por sua vez, a prova de que efectuou o pagamento dos montantes correspondentes.
Porém, como resulta do teor do facto 18 da contestação, o R. aceita que no período de 01.07.2001 a 08.10.2001 alguma actividade terá sido desenvolvida pelo A., entendendo, no entanto, que o montante peticionado corresponde a todo o período em que o A. prestou serviços ao R., portanto desde Abril de 2001 até à data do acidente, 08.10.2001 (6 meses). Não alega, todavia que tenha pago tais montantes, ónus que lhe competia.
Assim sendo, podemos dar por assente, a favor do A., já que a si lhe competia tal prova, que prestou serviços ao réu de 01.07.2001 a 08.10.2001, pois tal facto é aceite pelo R..
Quanto ao montante devido, é certo que o A. não o provou em concreto, todavia, independentemente do período a que se reporta, a verdade é que não tendo o R. alegado que tal quantia foi paga, aceita que a mesma é devida ao A.. Assim sendo, procede o pedido da condenação do réu no pagamento da quantia de € 6.757,75.
[…]”
[transcrição de fls. 134]



1.2. Inconformado, interpôs o R. a presente apelação, alegando-a a fls. 165/170 e formulando, a rematar tal peça processual, as conclusões que aqui se transcrevem:

“[…]
1- A Sentença revidenda viola as alíneas b), c) d) e e) do artigo 668º do Código de Processo Civil.
2- A Sentença revidenda viola o artigo 342º do Código Civil.
3- Viola a alínea b) porque não específica os factos provados donde retira a condenação.
4- Viola a alínea c), porque os fundamentos invocados nomeadamente a alegação do A. de que ficaram por pagar comissões devidas pela actividade de 01/07/2001 a 08/10/2001, entra em contradição com a Sentença, pois esta não específica a que título condena.
5- Viola a alínea d) porque a Mmª Juiz se pronunciou sobre as comissões de 09/10/2001 a 30/04/2002 e condena quando os mesmos não tinham sido pedidos.
6- Viola a alínea e), porque a Sentença condena em objecto diverso do pedido, pois o pedido não contém as comissões de 01/07/2001 a 08/10/2001 e é por essas e com esse fundamento que há condenação.
7- Viola o artigo 342º do Código Civil, pois a repartição do ónus da prova não foi respeitado:
1- o A. invoca um facto constitutivo e não o prova.
2- em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do direito.
8- O ónus da prova era do A., que não provou o que alegou.
9- A Sentença ao considerar como pedido as comissões devidas de 07/07/2001 a 08/10/2001, vai contra o que o A. pede na petição inicial, que são as comissões supostamente e no futuro a ganhar com o trabalho que não pôde fazer em virtude da baixa.
10- No articulado 21º da petição inicial, o A. escreve que ganhou e recebeu.
11- Ao considerar como devidas estas comissões a Sentença erra de facto.
12- Ao considerar que o R. não alegou o pagamento volta a errar, pois perante a confissão do A. de que havia recebido não era necessário contestar.
[…]”
[transcrição de fls. 169/170]



Face à invocação nestas alegações de nulidades da Sentença apelada, pronunciou-se a Exma. Juíza a quo[ 9] a fls. 176/177, rejeitando que a Decisão não esteja fundamentada, seja omissa, contraditória ou condene extravasando o pedido formulado pelo A..


II – Fundamentação


2. Delimitam as conclusões acabadas de transcrever o objecto do presente recurso [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)][10]. Fora deste objecto encontra-se, assim – e, aliás, por expressa opção do Apelante, como se transcreveu na nota 8 –, a parte da Sentença que fixa a indemnização que identifica como respeitante aos prejuízos decorrentes do mandato e aos danos não patrimoniais[11]. Note-se que o Apelante não procedeu a esta delimitação temática (objectiva) do recurso no requerimento de interposição do mesmo, fazendo-o, porém, no segundo momento do iter de interposição – nas alegações e conclusões respectivas – em que tal opção (ainda) era possível (leitura conjugada dos nºs 2 e 3 do artigo 684º do CPC). Note-se, enfim, que a existência de uma pluralidade de pedidos, referidos a espécies indemnizatórias específicas e que determinaram distintas condenações, preenche o requisito, também ele atinente à delimitação objectiva do recurso, da existência (na Sentença) de “decisões distintas” (mesmo artigo 684º, nº 2[12]).

Assentes estes pressupostos da ulterior exposição, cumpre apreciar os fundamentos da apelação.

2.1. Referem-se estes, por um lado, à alegada existência de determinados desvalores intrínsecos da própria Sentença (nulidades previstas no artigo 668º do CPC) e, por outro lado, a uma incorrecta alocação do ónus da prova, sendo que, em qualquer dos casos, o Apelante pressupõe, de um ponto de vista argumentativo, a factualidade consignada como provada pelo Tribunal a quo, encarando-a, aliás, na sua integralidade operante para a parte questionada da Decisão.

Tal factualidade, nos termos em que ela resulta do Despacho que após a audiência de julgamento a fixou, a fls. 98/99, e tal como foi enunciada na Sentença apelada, a fls. 131/132, é a seguinte:

“[…]
1- O autor exerceu a actividade de vendedor e distribuidor de carnes ao serviço do réu.
2- A actividade referida em 1 era paga na modalidade de comissão sobre os valores vendidos e que era de 2%.
3- A actividade referida em 1 foi interrompida por causa de um acidente sofrido pelo autor em 09.10.2001, e em plena execução da mesma actividade.
4- O acidente referido em 3 ocorreu no matadouro C..., sito em Ponte das Mestras, Leiria, pelas 06 horas e 15 minutos no interior da viatura que pertence ainda hoje ao réu.
5- Em consequência do acidente, o autor esteve de baixa ordenada pelos serviços clínicos do Hospital de Stº André em Leiria, até 30.04.2002, onde recebeu regularmente os tratamentos adequados.
6- Até à data referida em 5, o autor ficou impossibilitado de realizar o trabalho que vinha efectuando.
7- Após o acidente referido em 3, o réu recusou os serviços do autor.
8- O autor, quando exercia a actividade ao serviço do réu, utilizava a viatura de transporte deste, e levantava a mercadoria na empresa de matança designada por C....
9- A actividade referida em 1 era a única actividade que o A. exercia para ganhar o seu sustento e de sua família, constituída por mulher e dois filhos, sendo um deles na altura ainda menor.
10- O filho mais velho do autor deixou de estudar por sentir a necessidade de ajudar a família financeiramente.
11- Em Julho de 2002 o autor começou a trabalhar por conta de D..., tendo-se aí mantido até Janeiro de 2003.
[…]”
[transcrição de fls. 131/132]


2.1.1. Cumpre sublinhar que a enumeração que ora se transcreveu não contém qualquer referência à circunstância – mais à frente referida no texto da Sentença (cfr. fls. 134 no trecho transcrito no item 1.1. deste Acórdão) – de estar provado que: o A. trabalhou para o R. durante seis meses (desde Abril de 2001), concretamente entre 01/07/2001 e 08/10/2001; de a remuneração correspondente a este período (ao período de 01/07 a 08/10/2001) não ter sido paga pelo R. ao A.; e, enfim, de o valor desta, ou seja, da importância não paga, corresponder a €6.757,75. Esta ausência, sendo correcta no âmbito do Despacho de fls. 98/99, que fixou a matéria de facto provada, já que estando em causa factos assentes pelo funcionamento de regras probatórias não estão eles sujeitos à livre apreciação do julgador[13], a ausência de enumeração destes factos, dizíamos, já não se justifica no texto da Sentença, concretamente no local em que esta peça processual procede ao elencar dos factos que vão servir de base à aplicação do direito e à decisão da causa[ 14]. É certo que na Sentença apelada, mais adiante (no trecho transcrito no item 1.1. deste Acórdão), não deixam de ser indicados os concretos factos a que nos vimos referindo, sendo-o, porém, como que diluídos na argumentação jurídica justificativa dos pronunciamentos decisórios, fica-nos, além de uma Sentença menos perfeita do ponto de vista da sua arrumação formal, uma argumentação algo confusa, na qual parece que a matéria de facto – a matéria como tal expressamente indicada na Sentença – não apresentou relevância para a decisão da causa.

2.1.2. Cumpre, pois, no quadro de um processo argumentativo lógico, indicar aqui, ainda em sede de enumeração dos factos aos quais haverá (subsequentemente) que aplicar o direito, os outros factos que, por acréscimo aos anteriormente transcritos a partir de fls. 131/132 da Sentença, também estão provados, ou melhor, também foram considerados provados na Sentença, a saber: (1) que o A. esteve, durante um período de seis meses iniciado em Abril de 2001, ao serviço do R., nos termos referidos nos itens 1 e 2 dos factos provados; (2) que, relativamente ao período compreendido entre 01/07/2001 e 08/10/2001, nenhuma remuneração lhe foi paga pelo R. pelo serviço prestado; (3) que a remuneração correspondente a este último período atinge €6.757,75.

Importa sublinhar, no entanto, que a enumeração destes três trechos factuais – que, repete-se, também foram considerados provados pelo Tribunal a quo – constitui apenas um passo argumentativo deste Acórdão, não significando, como veremos posteriormente, que a articulação dos diversos ónus da prova e admissões por não impugnação especificada que originaram a fixação destes concretos factos na Decisão apelada, tenha sido inteiramente correcta. Trata-se esta de uma questão que, note-se bem, este Acórdão ainda não resolveu e à qual haverá, mais à frente, que voltar.

2.2. Por agora, interessa-nos apreciar – e este constitui, como já se indicou no item 2.1., um dos fundamentos do presente recurso – se a Sentença (enquanto Sentença) enferma de alguma das nulidades[15] que lhe aponta o Apelante.

2.2.1. No que respeita às invocações reconduzidas pelo Apelante às alíneas b), c) e d) do artigo 668º, nº 1 do CPC, constata-se – e trata-se de uma evidência – que a Sentença não contém uma insuficiente especificação dos fundamentos de facto e de direito, que estes não são intrinsecamente contraditórios com o sentido da Decisão, e que o Tribunal apelado cobriu, no processo conducente a essa mesma Decisão, as diversas questões suscitadas pelas partes, já que conheceu – e é este o sentido da alínea d) do artigo 668º, nº 1 referido – “[…] de todos os pedidos deduzidos, [de] todas as causas de pedir e excepções invocadas e [de] todas as excepções [das quais] oficiosamente lhe [competia] conhecer […]”[ 16 ].

2.2.1.1. Tudo se reconduz, assim, à alínea e) do mesmo artigo 668º, nº1, e à questão de uma possível condenação em objecto diverso do pedido, alicerçando o Apelante essa invocada diversidade, entre aquilo que se pediu e aquilo em que se condenou, na circunstância de estarem pedidas pelo Apelado remunerações correspondentes a uma parcela da totalidade do tempo de serviço por ele prestado ao Apelante [um pouco menos de três meses (01/07 a 08/10/2001), num total de seis meses prestados] e de a Sentença ter condenado numa quantia que, segundo o seu próprio percurso argumentativo, se refere, nos termos em que isso, como veremos de seguida, foi admitido pelo Apelante, à totalidade do tempo de serviço prestado.

Está em causa uma Decisão que decorreu, relativamente a este trecho fáctico, da não prova concreta de determinados factos e, consequentemente, da articulação entre os ónus da prova das partes e a não impugnação por uma delas de um trecho relevante desses factos. Teve isto que ver, no percurso decisório do Tribunal a quo, com a circunstância de nenhum dos três factos elencados no item 2.1.2. ter sido demonstrado através da prova documental ou testemunhal produzida por qualquer das partes, sendo que a essencialidade desses factos para a apreciação da causa, não levou, todavia, a que fosse observada a regra que manda imputar as consequências dessa não demonstração à parte carregada com o ónus da respectiva demonstração. Com efeito, não se discutindo neste particular a alocação dos ónus subjectivos de prova[17] indicada na Sentença – como se lê a fls. 134: “[…] cabia ao A. provar, em primeira mão, que efectuou tais vendas e respectivo valor, incumbindo ao R., por sua vez, a prova de que efectuou o pagamento dos montantes correspondentes” –, não se discutindo isto, dizíamos, constata-se que, em rigor, esta distribuição de ónus (subjectivos) não veio a adquirir – ou não veio a adquirir totalmente –, no sentido já apontado na nota 17, natureza objectiva, não se tendo plasmado num resultado ficcionado pela chamada “norma de decisão” (artigos 342º, nºs 1 e 2 do CC e 516º do CPC), a partir da constatação de quem teria que demonstrar determinado facto e não logrou fazê-lo[18]. Contrariamente a isto, o Tribunal apelado deu os factos aqui em causa por demonstrados, concretamente na determinação do montante de €6.757,75 como sendo o devido, em função de ter considerado compreendidos esses factos num entendimento amplo de admissão pelo R./Apelante no articulado de contestação.

A repetição aqui do trecho da Sentença (já transcrito no item 1.1.) contendo esta asserção, facilita a compreensão de como as coisas se passaram, dentro da lógica argumentativa da Decisão apelada:

“[…]
[C]omo resulta do teor do facto 18 da contestação, o R. aceita que no período de 01.07.2001 a 08.10.2001 alguma actividade terá sido desenvolvida pelo A., entendendo, no entanto, que o montante peticionado corresponde a todo o período em que o A. prestou serviços ao R., portanto desde Abril de 2001 até à data do acidente, 08.10.2001 (6 meses). Não alega, todavia que tenha pago tais montantes, ónus que lhe competia.
Assim sendo, podemos dar por assente, a favor do A., já que a si lhe competia tal prova, que prestou serviços ao réu de 01.07.2001 a 08.10.2001, pois tal facto é aceite pelo R..
Quanto ao montante devido, é certo que o A. não o provou em concreto, todavia, independentemente do período a que se reporta, a verdade é que não tendo o R. alegado que tal quantia foi paga, aceita que a mesma é devida ao A.. Assim sendo, procede o pedido da condenação do réu no pagamento da quantia de € 6.757,75.
[…]”
[transcrição de fls. 134, com sublinhado acrescentado]


Ora, lendo este trecho à luz do – por ele próprio citado – artigo 18º da contestação[ 19], percebe-se que a admissão pelo R. de que o A. lhe prestou serviço durante seis meses, sem que afirme que lhe pagou a remuneração, deve ser situada no contexto exacto no qual o Apelante se expressa, ou seja, no contexto da afirmação pelo A. de que o valor (€6.757,75) por ele peticionado se refere – e só se refere – ao período de 01.07.2001 a 08.10.2001, que é o período em causa no pedido do A.. Aliás, deve ainda esta posição do R./Apelante ser interpretada no seu exacto e inequívoco contexto intrínseco: os €6.757,75 referem-se aos seis meses de serviço e não aos três meses pedidos pelo A.. E, enfim, deve também atender-se – e a Sentença apelada olvidou-o – que o R./Apelante no mencionado artigo 18º da contestação impugnou expressamente os artigos da petição inicial contendo a quantificação dos três meses peticionados (os artigos 9º e 21º transcritos nas notas 1 e 6 deste Acórdão), ou seja, referindo os €6.757,75 aos três meses peticionados[20].

A este respeito cumpre sublinhar a particular natureza, enquanto fonte de prova, da admissão de factos por não impugnação especificada. Esta, com efeito, como sublinha Lebre de Freitas, embora apresente algum paralelismo com a confissão prevista nos artigos 352º a 361º do CC, não se confunde com esta[21], desde logo pelo seu carácter irretratável e divisível[22], sendo que esta característica impõe uma leitura parcelar das diversas situações referidas pelo R./Apelante no âmbito do artigo 18º da sua contestação. A Sentença apelada não procedeu nestes moldes, enredando-se numa teia argumentativa confusa, e o resultado foi considerar admitido pelo Apelante o que este, pura e simplesmente, não admitira: que a remuneração que ele dissera corresponder a seis meses de serviço era a correspondente a três meses de actividade.

Decidindo assim, fixou a Decisão apelada erradamente os factos com base nos quais decidiu a causa e, porque isso se traduziu na prolação de uma condenação reportada a uma realidade distinta da em causa no pedido – pedia o A. três meses de remuneração e deu-se na Sentença o que, nos termos em que isso fora admitido (“confessado”), correspondia a seis meses –, extravasando-se, assim, não a quantidade (o valor monetário) do pedido, mas o seu objecto (o lapso de tempo correspondente). Consubstancia este desvalor da Sentença apelada a nulidade prevista no segmento final da alínea e) do nº 1 do artigo 668º do CPC[23], cumprindo, por isso, declará-la nula, nessa específica parte, procedendo de seguida, por aplicação da regra da substituição ao tribunal recorrido (artigo 715º, nº 1 CPC[24]), ao julgamento da causa, nos termos decorrentes da supressão dessa nulidade.

2.2.2. Tal supressão afasta (anula) o ponto I do pronunciamento decisório de fls. 137 – “[…] condeno o R. a pagar ao A. […] I- €6.757,75 correspondente às comissões devidas […]” – e recompõe a matéria de facto à qual importa (agora) aplicar o direito em termos de deixar assente, tão-só, que a remuneração correspondente ao período de serviço prestado entre 01/07/2001 e 08/10/2001 não foi paga pelo R., não se tendo apurado o seu valor [cfr. a (outra) versão pressuposta no julgamento em primeira instância no ponto 3 do item 2.1.2. deste Acórdão].

Esta configuração dos factos – deste facto em concreto – conduzirá à prolação de uma condenação, relativamente a este elemento do pedido, no que se vier a liquidar em execução de sentença, nos termos do artigo 661º, nº 2 do CPC[25]. Assim, o valor exacto da remuneração atinente aos quase três meses de serviço prestados pelo A./Apelado e a este – “confessadamente” – não pagos, terá como limite máximo os €6.757,75 pedidos, de acordo com o princípio do dispositivo, e haverá, nessa fase de liquidação de uma futura execução, que ser determinado em concreto.

É o que resta fazer, porém, não sem que antes se diga que este resultado, não correspondendo exactamente à consequência indicada pelo Apelante a culminar o respectivo recurso – com efeito, aí pedia (v. fls. 170) a absolvição pura e simples do pagamento da quantia de €6.757,75 –, não deixa de representar um triunfo da pretensão recursória do Apelante, sendo certo que esta Relação não deixou de considerar que a Sentença Apelada era, tal como propugnou o Apelante, nula na parte por ele questionada – e nula por um dos concretos fundamentos por ele indicados.

III – Decisão


3. Assim, tudo visto, na procedência da apelação, decide-se:

A) Declarar nula a Sentença apelada, nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea e) do CPC, na parte em que esta condena o R./Apelante a pagar ao A./Apelado a quantia de “€6.757,75 correspondente [a] comissões devidas”;

B) e, consequentemente, substituindo essa parte do julgamento[26.], condenar o R./Apelante a satisfazer ao A./Apelado, relativamente às “comissões” respeitantes ao período de 01/07/2001 a 08/10/2001, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, nos termos do artigo 661º, nº 2 do CPC.

Custas pelo Apelado.
_____________________
[1] Indica a este respeito o A. na petição inicial:
No período de 1 de Julho de 2001 a 8 de Outubro de 2001 [véspera do acidente] o A. vendeu e distribuiu carnes num montante sobre o qual recebeu 2% de comissão no valor de €6.757,75.
[transcrição de fls. 3]
[2] Na petição inicial refere a este propósito o A.:
23º
Deste modo, o A. arroga o seu legítimo direito de ser indemnizado no valor de €10.135,00, correspondente ao período de baixa que vai de 09/10/2001 a 30/04/2002.
[transcrição de fls. 5]

[3] Indica o A. na Petição inicial:
31º
Por todos os danos não patrimoniais, o A. pede que lhe seja pago o valor de €3.990,00.
[transcrição de fls. 5]

[4] Além do mais excepcionando a incompetência material da jurisdição comum, assente numa invocada natureza laboral do contrato do A., excepção esta julgada improcedente na audiência preliminar documentada a fls. 52/55.

[5] Afirma na sua contestação:
19º
Ao contrário do alegado em 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 19º e 20º da petição inicial o R. sempre esteve na disposição de aceitar o A. a trabalhar, só que este em 1 de Junho de 2002, começou a trabalhar por conta de José de Almeida Cruz, em Leiria, tendo-se aí mantido até Janeiro de 2003.
[transcrição de fls. 22]

[6] Por apresentar interesse para a determinação do cumprimento do ónus de impugnação pelo R., transcreve-se aqui o pertinente artigo da contestação:
18º
É falso o alegado em 9º, 14º, 21º, 22º e 23º da petição inicial, pois a quantia indicada refere-se a todo o tempo em que o A. trabalhou para o R. e não existem períodos de maior e menor consumo.
[transcrição de fls. 22]
Dos artigos da petição inicial impugnados pelo R. neste trecho da contestação, importa ter presente, além do artigo 9º transcrito na nota 1, o seguinte:
21º
Do dia 1 de Julho a 8 de Outubro de 2001, o A. ganhou e recebeu a importância de €6.757,75.
[transcrição de fls. 4]

[7] Já que a fls. 56 fora dispensada a elaboração de base instrutória.
[8] Lê-se, com efeito, nas alegações:
O presente recurso apenas visa impugnar a quantia de €6.757,75 […] correspondente às comissões devidas e constante do ponto I da parte decisória da Sentença.
Aceita assim o R. a condenação em €3000,00 […] a título de prejuízos sofridos pela quebra do mandato e aos €500,00 […] arbitrados a título de danos não patrimoniais.
[transcrição de fls. 156]
[9] Possibilidade que lhe era conferida pelo artigo 668º, nº 4 do CPC.
[10] V. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V (reimp.), Coimbra, 1981, pp. 362/363; cfr., entre muitos outros possíveis, os Acórdãos do STJ de 6/05/1987 e de 14/04/1999, respectivamente na Tribuna da Justiça, nºs 32/33, Agosto/Setembro de 1987, p. 30, e no BMJ, 486,279.

[11] O Apelante também não discute a qualificação do contrato como não sendo de agência. Esta questão, que sempre estaria aberta à liberdade desta Relação em sede de aplicação do direito, não apresenta uma particular relevância para o trecho questionado da condenação. De qualquer forma, este Tribunal não diverge da qualificação do contrato efectuada pelo Tribunal de primeira instância.

[12] V. José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, vol. 3º, Coimbra, 2003, p. 33, reportando o conceito de “decisões distintas” à existência de pluralidade de pedidos.
[13] E, como indicam José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “[o] tribunal, singular ou colectivo, que julgue a matéria de facto não se pronuncia sobre os meios de prova com força probatória plena nem sobre os factos que só por um meio com essa força podem ser provados […]. Cabe-lhe apenas apreciar as provas sujeitas à livre apreciação do julgador, através das quais, no confronto entre elas, se forma a sua íntima convicção sobre os factos da causa” (Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, Coimbra, 2001, p. 635).

[14] Pois, e continuamos a citar José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “[a] aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material. Na anterior decisão sobre matéria de facto (do tribunal colectivo ou do tribunal singular que presidiu à audiência final), foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador […]. Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção de um meio de prova co força probatória pleníssima, plena ou bastante […], independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação […]” (Código…, cit., vol 2º, p. 643).

[15] Note-se que o recurso, nos termos do artigo 668º, nº 3 do CPC, pode ter por fundamento a invocação da nulidade da sentença.
[16] José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto Código…, cit., vol 2º, p. 670.
[17] Utilizamos aqui a dicotomia ónus objectivo – ónus subjectivo, nos termos em que esta é enunciada, no quadro da chamada “teoria das normas”, por Pedro Ferreira Múrias: “[…] o ónus da prova objectivo é o instituto que determina segundo qual das versões disputadas deve decidir-se quando é incerta a verificação de algum facto pertinente. O instituto do ónus subjectivo ou ónus da produção de prova prescreve a qual das partes processuais incumbe alguma actividade probatória, sob pena de ver a sua pretensão desatendida” (Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 20/21).

[18] “[A]s normas do ónus da prova, em cuja facti species se encontra a incerteza processual sobre um elemento que preenchesse a previsão da norma material […,] [s]ão normas de decisão […] são, «quanto à questão da [sua] eficácia», apenas um meio auxiliar da decisão de mérito que autoriza o juiz a decidir como se tivesse obtido um resultado positivo ou negativo quanto à verificação de certo facto, i.e., através da ficção […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição…, cit., pp. 62/63).
[19] Já transcrito na nota 6 e que aqui se repete:
18º
É falso o alegado em 9º, 14º, 21º, 22º e 23º da petição inicial, pois a quantia indicada refere-se a todo o tempo em que o A. trabalhou para o R. e não existem períodos de maior e menor consumo.




[20] Embora, contrariamente ao que diz o Apelante nas alegações, não seja exacto que a sua não impugnação da circunstância de não ter pago as “comissões” respeitantes ao período pedido pelo A. se tenha devido a uma suposta confissão do A. de que as havia recebido (cfr. conclusão 12 do recurso). De facto, embora o A. se tenha sempre exprimido de forma confusa – “[d]o dia 1 de Julho a 8 de Outubro de 2001, o A. ganhou e recebeu a importância de €6.757,75” – , o R./Apelante não deixou, como se intui da sua contestação, de “perceber” que o A. estava a alegar que, efectivamente, não tinha recebido esse valor.

[21]A Confissão no Direito Probatório, Coimbra, 1991, pp. 474/484.

[22] “Outro importante ponto de divergência entre o regime da admissão e o da confissão respeita à retratabilidade desta quando feita nos articulados: a confissão (expressa) pode ser retirada enquanto não for especificadamente aceite pela parte contrária ou não ocorrer o termo do prazo de apresentação do último articulado do confitente […]; mas o efeito da admissão não deixa de se produzir, fora os casos de justo impedimento e de conhecimento superveniente duma situação de facto contrária à admitida […], se, não obstante o silêncio da parte contrária, o admitente vier alegar em articulado posterior factos contrários àqueles que começou por não impugnar.
Já no que se refere ao princípio da indivisibilidade, que não joga também no caso da admissão, não se verifica uma divergência de regime em face da confissão espontânea em articulado, pois entendemos que também esta produz efeito facto por facto […]” (Ibidem, pp. 478/479).
[23] “É […] nula a sentença que, violando o princípio dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância […], não observe os limites impostos pelo artigo 661º, nº 1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido.
A nulidade da sentença pode ser total. Mas é meramente parcial quando o vício apenas em parte a afecte. Assim acontece quando, havendo vários pedidos, o vício respeite apenas à apreciação de um deles.” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto Código…, cit., vol 2º, p. 670).

[24] “Embora o tribunal de recurso declare nula a sentença proferida na 1ª instância, não deixará de conhecer do objecto da apelação”.

[25] E não “[…] no que vier a ser liquidado […]”, como preceitua actualmente o artigo 661º, nº 2, por se tratar aqui de processo instaurado antes de 15 de Setembro de 2003 (foi-o em 08/05/2003; cfr. fls. 2), não lhe sendo, por isso, aplicável a redacção introduzida nesse nº 2 pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (cfr. artigo 21º, nº 1 deste Diploma).

[26] Nos termos do artigo 715º, nº 1 do CPC.