Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1962/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Data do Acordão: 07/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTº 376º DO C.CIV. .
Sumário: Só as declarações contrárias aos interesses do declarante, constantes de documento particular, é que devem ser consideradas como provadas .
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., residente em Figueiredo, Tourais, Seia, propõe contra B..., com sede em Carvalhas de S.Pedro 3300-106, Arganil, a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe o montante de 2.234,43 euros, acrescido da quantia de 25 euros diários desde a data da paralisação do veículo (que identifica ) e enquanto esta se mantiver.
Fundamenta este seu pedido, em síntese, em virtude de ter adquirido à R. o veículo automóvel usado que referencia, viatura que avariou pouco tempo após a aquisição, recusando-se a R. a repará-la, com o argumento de que não lho vendeu.
1-2- A R. contestou sustentando, também em síntese, que a viatura em causa foi, por si, vendida à empresa “C...”, que a pagou, pelo que não tem qualquer responsabilidade pela avaria detectada. Por cautela, impugna os valores indicados pelo A.
Termina pedindo a improcedência da acção com a sua absolvição do pedido.
1-3- O A. respondeu afirmando, em resumo, que na data da transacção a R. emitiu uma declaração de venda e que, além do mais, desconhece a existência da sociedade “C...”. Sabe a R. que os factos que alega na contestação, não correspondem à verdade, motivo por que litiga de má fé.
Termina pedindo, se julgue improcedente a excepção deduzida pela R. e que esta seja condenada como litigante de má fé.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, fixado os factos assentes e a base instrutória, realizado a audiência de discussão e julgamento e respondido ao questionário, após o que foi proferida a sentença.
1-5- Nesta considerou-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se a R. do pedido.
Mais se condenou o A. como litigante de má fé na multa de 18 UCs.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer o A., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- O recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- O A. juntou a fls. 22 documento comprovativo de que a R. lhe vendeu o veículo automóvel em causa.
2ª- Tal documento, da autoria da R., não foi impugnado por ela, nem acerca dele emitiu qualquer declaração, aceitando-o.
3ª- Assim sendo, tal documento é um documento particular cuja autoria por parte da R. se encontra reconhecida.
4ª- Fazendo o mesmo prova plena das declarações atribuídas ao declarante e que são desfavoráveis aos seus interesses.
5ª- Tais declarações não podem ser infirmadas por prova testemunhal.
6ª- As declarações da testemunha Rui Travassos, não podem por em causa o conteúdo do documento.
7ª- Demais, tais declarações, são elas sim, postas em causa pelo depoimento objectivo, claro e com razão de ciência da testemunha António Manuel, bem como quando confrontadas com o documento de fls. 22 e com o junto na audiência de discussão e julgamento.
8ª- Para a transmissão de móveis sujeito a registo é exigida a forma escrita.
9ª- O único escrito existente nos autos que documenta a compra e venda, é o documento de fls. 22.
10ª- Assim, deveria o tribunal recorrido dado como provado o nº 1 da base instrutória e como não provado o nº 5.
11ª- Condenando a R. nos termos peticionados ou, quando assim se não entenda, no montante que se vier apurar em execução de sentença.
12ª- O A. não litigou de má fé.
13ª- A decisão recorrida, violou os arts. 373º, 374º, 375º e 376º do C.Civil e os arts. 456º e 554º do C.P.Civil e Dec-Lei 277/95 de 25/10.
1-8- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após a resposta aos quesitos, fixou-se a seguinte matéria de facto:
1- A R. tem como actividade comercial, que efectivamente exerce, a compra e venda de veículos automóveis novos e usados ( al. A dos factos assentes );
2- Em 15 de Julho de 2003, o veículo automóvel ligeiro de passageiros “Opel Corsa”, matrícula 06-12-JN, avariou, manifestando-se um defeito de que era portador e que consistiu na avaria da correia de transmissão, que partiu ( resposta ao quesito 2º );
3- O dito em 2 causou danos que levam à necessidade de substituição, além daquela peça, dos pernos da cabeça, de juntas, de guias, das válvulas de escape e de admissão, dos roletes de distribuição, da bomba de água, bem como aplicação de parafusos, tuches, rectificadora, anti-gelo e mão de obra inerente ( resposta ao quesito 3º);
4- O A alertou a R. para a avaria dita em 2, imediatamente após a sua verificação - pessoalmente e por carta enviada pelo seu mandatário, em 7 de Agosto de 2003 e por aquela recebida – exigindo-lhe que assumisse a responsabilidade pela mesma (al. B dos factos assentes);
5- A R. recusou-se a reparar a avaria dita em 2, alegando que o A não é seu cliente nem lhe vendeu a viatura ( al. C dos factos assentes );
6- Face a esta posição da R., o A fez várias tentativas e insistências junto desta para que reparasse o veículo ( al. D dos factos assentes );
7- A R. não vendeu a viatura dita em 2 ao A., mas sim à empresa “C...”, que, por sua vez, a vendeu àquele ( resposta ao quesito 5º)---------------------
2-3- A argumentação principal do apelante vai no sentido deste Tribunal da Relação alterar as respostas aos quesitos 1º e 5º, no sentido de se dar como provado que o veículo em causa foi vendido ao A., pela R., e não pela empresa C..., circunstâncias não aceites na 1ª instância.
Esta foi a posição assumida pelo A. na sua petição inicial, posição que foi negada pela R. na contestação. Esta, por sua vez, mostrou-se alheia à venda do veículo ao A., sustentando, antes, que vendeu a viatura à empresa que indica ( que a pagou ) e não ao A. e que foi essa empresa que procedeu à venda do carro, ao A..
Foi esta conjuntura que acabou por ser aceite no tribunal recorrido.
Por conseguinte, a pergunta que haverá a formular será a de saber se será possível a alteração das resposta a ditos quesitos.
Para além doutros casos, sem relevância aqui e agora salientar, este tribunal poderá modificar as respostas aos quesitos, “se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas” ( art. 712º nº 1 al. b) do C.P.Civil ).
Apesar de o não mencionar expressamente, é nesta disposição que o recorrente se baseia para pedir a alteração das ditas respostas, face ao documento que referencia, nos autos a fls. 22.
Este documento, exarado pela R. ( e não impugnado por esta ), é uma declaração em que se referiu ( para além do mais ):
Declaramos para os devidos efeitos e em especial para fazer fé perante as autoridades de trânsito, que está em curso nos organismos oficiais competentes o processo de documentação do livrete, título de propriedade e licenciamento do veículo com as seguintes características ... Este veículo foi vendido em 15/4/2003 ao senhor A..., Rua Stº António nº 4 6270 Seia. Nota: Declaração autorizada pela Direcção das Contribuições e Impostos, por despacho do Exmo Senhor Secretário de Estado do Orçamento”.
Segundo o apelante, este documento é comprovativo de que a R. lhe vendeu o veículo automóvel em causa. Ainda, no prisma do recorrente, o mesmo, da autoria da R., não foi impugnado por ela, nem acerca dele emitiu qualquer declaração, aceitando-o. Assim sendo, tal documento é um documento particular cuja autoria por parte da R. se encontra reconhecida, fazendo o mesmo prova plena das declarações atribuídas ao declarante e que são desfavoráveis aos seus interesses. Tais declarações não podem ser infirmadas por prova testemunhal, pelo que as declarações da testemunha Rui Travassos, não podem colocar em causa o conteúdo do documento.
Vejamos:
Diz o art. 376º do C.Civil:
1- O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2- Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que foram contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão”.
Desta disposição ressalta, nas circunstâncias referenciadas no artigo, que só as declarações contrárias aos interesses do declarante se devem considerar provadas, regime não aplicável às favoráveis.
Analisando o documento elaborado pela R., verifica-se que se trata de uma declaração dirigida, em especial, às autoridades de trânsito informando estar em curso a legalização do automóvel em causa. Verifica-se, porém, que em nenhuma parte do documento existe qualquer menção, por parte da R., em que ela refira ter vendido o veículo, ao A..
A propósito do exame a este escrito, haverá a sublinhar que, as consequências gravosas da força probatória de um documento particular, exige, a nosso ver, uma observação rigorosa do conteúdo exacto da declaração. Neste contexto, teremos que concluir que das declarações do documento, apenas se pode inferir, com um grau de certeza apreciável, que estará a R. a tratar, junto das entidades públicas competentes, da legalização do automóvel e que o veículo terá sido vendido, em 15-4-2003, ao R.. Com rigor, dele não consta, a entidade que o vendeu.
Mas será que não se poderá depreender do conteúdo do documento, ter sido a R. quem vendeu o veículo ao A. ?
A esta questão diremos que seríamos tentados a responder afirmativamente visto que, numa primeira análise, não se veria, a não se entender assim, muitas razões plausíveis para a R. o ter lavrado ( mas essas razões existem11 Essas razões terão a ver com o comprometimento, por banda da R., de tratar da «papelada» do veículo a pedido do vendedor, o já referido António Figueiredo, compromisso que derivou de a R. ter consigo a declaração de venda do anterior proprietário do automóvel., como o Mº Juiz exarou na fundamentação às respostas da base instrutória ). Sucede, porém, que isto extrava já a força probatória plena da declaração, entrando-se no campo da convicção do elemento de prova, no sentido da demonstração da realidade dos factos. E nestas circunstâncias, somos em crer, que o documento é apenas um dos elementos de prova colocados, para apreciação, à disposição do tribunal, existindo outros, designadamente, o cheque de 6.983,18 euros ( nos autos a fls. 65 ), que o António Manuel Santos Figueiredo terá entregue à R. para pagamento do veiculo e ainda a fotografia da traseira do mesmo, de fls. 78. Desta, faz parte um autocolante da firma, o qual, como refere o Mº Juiz na já dita fundamentação da base instrutória, de acordo com os dados de experiência comum, costuma ser colocado, pela vendedora, nas traseiras ou debaixo da matrícula das viaturas, sendo que a firma em questão é pertença desse mesmo António Figueiredo, tal como este admitiu em audiência. Ainda em matéria de convicção do tribunal de 1ª instância ( que como se sabe, não cabe a este tribunal sindicar - art. 655º nº 1 do C.P.Civil - ) outros elementos serviram para a formar, como se refere nessa mesma fundamentação.
Tudo isto serve para dizer que o documento de fls. 22 não impõe, a nosso ver, decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, pelo que a alteração das respostas aos quesitos 1º e 5º defendida pelo apelante, face a esse documento, não é, pois, possível.
Sustenta também o apelante que as declarações da testemunha Rui Travassos, são postas em causa pelo depoimento objectivo, claro e com razão de ciência da testemunha António Manuel, bem como quando confrontadas com o documento de fls. 22 e com o junto na audiência de discussão e julgamento.
Também, por esta razão, pretende o recorrente a alteração das respostas aos ditos quesitos.
Esta posição é absolutamente insubsistente, já que, ainda que não houvesse outras razões, o apelante, formalmente, não poderia pedir a modificabilidade da decisão, visto que no processo não constam todos os elementos de prova ( existiram depoimentos orais de outras testemunhas ) e não ocorreu gravação dos depoimentos, nos termos do art. 690º A. do C.P.Civil ( art. 712º nº 1 al. a) deste mesmo Código ). De resto, quanto aos depoimentos de uma e outra testemunha, o Mº Juiz na bem elaborada fundamentação das respostas aos quesitos, referiu por que razão o depoimento de uma delas ( do Rui Travassos ) lhe pareceu mais consistente e assim, serviu para formar a sua convicção em relação aos factos.
Sustenta depois o apelante que para a transmissão de móveis sujeito a registo é exigida a forma escrita, sendo que o único escrito existente nos autos que documenta a compra e venda, é o documento de fls. 22.
Já nos referimos ao documento de fls. 22, tendo concluído que nele não existe qualquer declaração por parte da R., em que ela refira ter vendido o veículo, ao A.. Daí que a consequência que o apelante pretende retirar da argumentação ( alterar as respostas aos ditos quesitos ) não se justifica.
Se existiu, ou não, outro documento titulando a venda, elaborado pela R. ou por outra entidade, não sabemos. Naturalmente, para efeitos de documentação (concretamente para averbamento do registo de propriedade do adquirente ), terá sido elaborado o necessário documento, desconhecendo-se quem o terá lavrado (provavelmente terá sido, como nos parece ser prática comum, o titular do anterior registo, ficando omissas, as eventuais vendas entre as empresas em causa ).
Sustenta, por fim o A., que não litigou de má fé.
Parece-nos, face à posição das partes, à prova produzida e principalmente pelo facto de o A. possuir o documento de fls. 22, que pode ele ter ficado na dúvida sobre quem, formal e legalmente, lhe vendeu o automóvel. Isto é, pode o A. ter interiorizado que, quem, efectivamente, foi a vendedora do veículo, foi a R., tanto mais que, posteriormente, essa mesma R., o convidou a fazer um «check-up» gratuito ao automóvel, nos meses de Julho e Agosto de 2003 ( documento de fls. 77 ).
Isto serve para nos colocar a fundada dúvida sobre se, na realidade, a alegação do A., de ter comprado o veículo à R., foi feita com consciência da sua falsidade.
Nesta conformidade não podemos ter como assente que o R. tenha alterado a verdade dos factos, ou deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devesse ignorar ( art. 456º nº 2 als. a) e b) do C.P.Civil ), pelo que a sua condenação, como litigante de má fé, se não justificou.
Nesta parte o recurso será procedente.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, confirma-se a douta sentença recorrida, excepto no que toca à condenação do A. como litigante de má fé, absolvendo-se o mesmo da respectiva condenação.
Custas pelo apelante, consoante o vencimento.